sexta-feira, 19 de abril de 2024

Em memória de Eugénio Lisboa (1930-2024)

Na minha idade, o que menos que me convinha era assistir a mais uma revolução. Mas a tentação é grande, só para ver metidos na pildra, sumariamente, alguns destes meninos.

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula

Por certo que as palavras de Eugénio Lisboa citadas aqui não transmitem de modo algum o centro do que são os temas predominantes do V volume das suas memórias, Acta Est Fabula: Regresso a Portugal (1995-2015). Por outro lado, essas palavras resumem perfeitamente o estado de espírito do autor não só enquanto escrevia as páginas que agora tenho aqui à minha frente, como descrevem o estado em que Portugal se encontra desde há décadas a esta parte. Eugénio Lisboa regressa a Portugal depois de ter vivido e trabalhado em Londres durante 17 anos como Conselheiro Cultural da nossa embaixada naquela cidade, e muito depois de ter deixado Moçambique, a sua terra de nascença, em 1976, nas condições que bem sabemos. Aos 85 anos de idade, um dos nossos mais proeminentes escritores tem esse direito – e dever – de também denunciar a sua sorte num livro que dá conta da uma vida ao serviço da nação, em várias frentes. O seu passado na ex-colónia africana está documentado em volumes anteriores destas memórias e escritas-outras. Com a sua chegada permanente ao nosso país, seria ainda Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, Professor Catedrático Visitante na Universidade de Aveiro, e participante constante em inúmeros encontros literários e culturais nos mais diversos países, sempre em defesa e divulgação do que é nosso, do que é o nosso melhor e o menos corrompido. A memória coletiva de um povo reside aí, nas suas artes, na sua literatura, nas suas academias, nenhuma destas instâncias da realidade ou da imaginação, no entanto, aqui como em toda a parte, estão livres dos roedores parasitas escondidos nas suas brechas. Um escritor, pois, fala de si e das circunstâncias em que escreve as memórias de um percurso intelectual, as memórias que vão muito além de si próprio, debruçando-se constantemente sobre todos os outros que deram forma e sentido à sua existência numa vida constantemente examinada, avaliada, contextualizada. Antes de mais, pois, seria um lapso de enorme desonestidade literária ignorar esse estado de espírito num preciso momento, que suspeito afligir muitos mais para além de Eugénio Lisboa. “Pilhar muito e depressa, do mesmo passo que se aconselha às vítimas as virtudes cristãs da pobreza resignada é o breviário por que se regem os que atualmente nos desgovernam. Nunca tantos foram tão roubados por tão poucos”.

    Este volume de Acta Est Fabula intercala a prosa narrativa de Eugénio Lisboa com abundantes entradas do seu diário correspondente aos vinte anos aqui relatados. É um recurso formal que nos conta o mais memorável dos dias vividos, e desperta no leitor a vontade de agora ler o diário integralmente, algo que nos está prometido. Vejo nesta opção do autor uma vantagem que reforça a “verdade” desses dias e andanças dispersas, dando-nos não a memória irremediavelmente seletiva com a passagem dos anos e de outros acontecimentos, que tendem a anular ou acrescentar sub-conscientemente ao que na realidade foi experimentado, vivido ou sentido, e sim a sua reação ou pensamento imediato ao que então o envolveu. São páginas fulgurantes pouco comuns entre nós, o falso pudor da maioria dos nossos escritores impede-os de confessar publicamente o que reservam para as mesas dos cafés e outros redutos de má língua e ressentimento. Mais do que isso, Eugénio Lisboa demonstra como a vida de um escritor não precisa de ser a chateza do dias e das noites. Um mero encontro com um livro inesperado numa estante qualquer, uma conversa relaxada e que vá além do último mexerico na república das letras, a visita a um museu, a assistência a uma peça de teatro ou musical, tornam-se tão relevantes e apetecíveis como uma viagem ao país mais desconhecido ou falado. É-me essencial ler Eugénio Lisboa também por estas razões – a vida da mente, a vida intelectual e literária como centro de um percurso totalmente dedicado à contínua reinvenção da Tradição criativa de uma língua global e cultura erudita que contêm em si mais relevância e consequência do que toda a política de um país, ou de que todo o ruído falsamente ideológico. O autor diz-nos a dada altura que numa viagem ao Peru leu num jornal citadino a resposta de um escritor à maldita pergunta de “para que serve a cultura?”, também muito comum entre nós. Serve, respondeu o articulista, para que esta pergunta nunca mais seja feita. Eugénio Lisboa tenta separar aqui a noção de autobiografia e memórias, mas felizmente a sua prosa conjuga os dois géneros perfeitamente. Não é necessário contar-nos pormenorizadamente “os factos”, relembrando aqui Philip Roth, naturalmente noutro contexto e por outros motivos literários. As reações de Eugénio Lisboa às inúmeras figuras familiares, políticas, intelectuais ou do mero acaso que se cruzam na sua vida dizem-nos mais sobre a sua pessoa do que qualquer informação fria sobre si, ou sobre seja quem for. Só um mestre da escrita consegue estes efeitos nos leitores, transpor para o lado de fora os seus estados interiores nas mais variadas situações, nos mais inesperados acontecimentos, ante qualquer interlocutor ou descoberta no vasto campo das artes. Outra grande virtude de memórias escritas numa determinada fase da vida, em que todas as “dívidas” já foram pagas, todas as ambições concretizadas, ou mais realisticamente, ultrapassadas, todos os fretes agora absolutamente desnecessários: as “verdades” relevantes para a sua obra literária estão aqui sem reticências, tudo quanto, para nós leitores, explica ou formaliza o seu lugar numa cultura que se estende por vários continentes e ilhas fica devidamente contextualizado. Entre nós, algumas destas questões raramente vão além do paroquial e do pateticamente tido como sendo imortal, tudo reduzido a dois ou três nomes em cada época lusa. Eugénio Lisboa é-nos a voz rara que está simultaneamente nas margens e no centro, vendo ora árvore na floresta, ou a floresta com todas as suas árvores. Poderá residir há muitos anos ali nos arredores, mas para ele há, sempre houve, mais vida criativa na língua portuguesa noutras geografias longe da nossa capital, e de Coimbra mais acima. Eugénio Lisboa não escreve como um cosmopolita de fabrico nacional – ele é um dos símbolos vivos do cosmopolitismo autêntico, esse que viveu e se sente em casa no mundo, nunca esquecendo as suas origens, neste caso moçambicanas e ancestrais na terra portuguesa.

    Acta Est Fabula é um livro de ternura ante família e amigos em Portugal e em toda a parte, e um delicioso ajuste de contas com muitos outros, especialmente certos escritores da nossa praça, para quem o seu umbigo era e é o centro do universo, os que, em retrospetiva ou na atualidade têm dado ou dão muito menos do que a sua imaginação tenta impor. A prosa de Eugénio Lisboa é outra lição de como a linguagem escorreita e de semântica clara se torna arte pura na exposição ou discussão de qualquer tema, por mais complexo que seja. Um dos sinais de um grande escritor é nunca temer os outros, em qualquer língua, nunca deixar de homenagear aqueles ou aquelas que o próprio autor considera seus mestres ou referências essenciais. Dos seus gostos e paixões já sabemos de outros volumes destas memórias. Mesmo assim, Eugénio continua deixando cair passo a passo as suas leituras, os seus outros autores de eleição, em literatura de diversos géneros e temas, os thrillers em língua inglesa sempre presentes nos dias ou momentos de descontração. Vai fazendo o leitor sorrir quando menciona um desses nomes de literatura de aeroporto, e o que pensariam certos “sofredores” da nossa praça, especialmente Vergílio Ferreira, sendo que lhe serve mais frequentemente de gozo sem negar o seu valor literário entre nós, fazendo-nos sorrir em reconhecimento sem desrespeito, relembrando-nos das obsessões do autor de Manhã Submersa pelos prémios literários, que nunca eram suficientes para este e para uns tantos escritores lusos. Sobre outros ainda, como com Eduardo Prado Coelho, mesmo depois da sua morte, não poupa uma letra no seu desdém qualificativo. Não esqueçamos que Eugénio Lisboa pertence a um grupo único na nossa literatura desde meados do século passado até aos nossos dias: os escritores que por razões políticas ou sorte de nascimento e circunstâncias históricas são considerados “estrangeirados”, e cujos nomes, de Adolfo Casais Monteiro a Hélder Macedo são bem conhecidos, todos os eles, queiram ou não os que de cá nunca saíram, ocupando um espaço indelével no nosso cânone literário. Em todas estas questões, Eugénio Lisboa sempre desconsertou os arranjinhos domésticos na nossa feira de vaidades, literárias e académicas. Por fim, expressa a melancolia que é fazer um balanço de uma vida bem vivida, e que continua a ser um ponto de honra nas nossas letras. “O volume V das minhas memórias – escreve já em Abril deste ano – aproxima-se do fim. E ocorre-me tudo quanto lá deveria ter posto e não pus. O que mostra como a nossa vida, na sua riqueza, não cabe nunca, no papel de um livro, mesmo avantajado. Fazemos o que podemos, mas podemos pouco”.

Pouco? Deixe esse juízo com os seus leitores. Eles também vão achar isso, mas por razões diferentes da sua. É muito, afinal – e é do melhor da nossa literatura.

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula. Memórias – V – Regresso a Portugal: (1995-2015), Guimarães, Opera Omnia, 2015.


No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 19 de abril de 2024.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

À conversa com Luís Filipe Borges

 

Agora também é preciso absoluta sinceridade e assumir sem rodeios que a minha visão dos Açores é sempre, e sem pejo, romântica.


    Conheci pessoalmente Luís Filipe Borges há alguns anos numa sessão política na Praia da Vitória entre uma multidão de participantes e alguns outros escritores. É hoje um nome muito referenciado entre nós, particularmente pela sua presença na nossa televisão nacional, quer seja transmitida do continente ou dos Açores. A sua escrita depressa despertou a minha curiosidade e interesse crítico, o que me levaria a recensear alguns dos seus livros, muito especialmente Mal-Amanhados: Os Novos Corsários das Ilhas, a versão em livro (publicado pela editora Letras Lavadas aqui de Ponta Delgada) da inesquecível série na RTP/Açores, depois retransmitida a larga escala, e cuja coordenação traz ainda os nomes dos escritores Alexandre Borges (seu irmão) e Nuno Costa Santos. É mais como o escritor que conversei agora com ele, da sua relação de uma vida em Lisboa e da sua profunda intimidade com a terra natal, as nossas ilhas, a que ele chama “a minha casa”, a que deseja, insinua-me a dada altura, “regressar”, creio que em termos permanentes, como se ele alguma vez a tivesse deixado. É natural de Angra do Heroísmo, com todo o nosso arquipélago como imaginário e solo-pátrio. A sua poesia e prosa inclui já um bom número de distintos títulos. Está neste momento a trabalhar na segunda série dos “Corsários” ilhéus, de que nos fala nesta página.

*

    A tua obra é tão diversificada que tenho dificuldade por onde começar. Vamos à escrita, em primeiro lugar. Para ti as ilhas estão quase sempre presentes, a sua história social ao centro? Fala-me um pouco de um ou outro título teu...

    Penso que tenho feito um caminho de regresso a casa. Os Açores estiveram sempre lá, nomeadamente nos anos de crónicas semanais na imprensa lisboeta, mas foi a idade madura – tenho 46 – sobretudo aquele momento charneira, simbólico, de atingir os 40, de bater de frente com a certeza de que a juventude se finou, que me fizeram responder à única pergunta que, insistente, ecoava no cérebro por essa altura, e que era: o que é que te falta absolutamente fazer? E a resposta era uma só: trabalhar sobre e para a minha terra. Isso tem sido visível sobretudo na minha faceta de produtor, que descobri com os “Mal-Amanhados” e precisamente com essa chegada à meia-idade. Ou seja, é uma escrita para guião, para a pequena tela, um tipo de conteúdo que tenta sempre dar a mão ao literário – sim - mas que não pode sê-lo a todo o tempo porque, nesse meio e género, não podemos esquecer os outros ingredientes do cocktail (que têm, aliás, a mesmíssima percentagem de importância): a imagem, o som, a montagem, a música.

    

  Nos livros, além dos poemas (dispersos) serem relacionados com o espírito ilhéu, diria, em 90% das ocasiões, destacaria o meu livro favorito (que vendeu uma miséria), “Destinos Em Falta para o Passageiro Distraído”, onde – numa viagem por 30 destinos do planeta – os Açores são sempre a escala regular, única, o ponto de partida e chegada.

    Agora também é preciso absoluta sinceridade e assumir sem rodeios que a minha visão dos Açores é sempre, e sem pejo, romântica. Identifico-me como ‘estrangeirado’. Não serei emigrante, mas quase. Percebo perfeitamente o que sentem, pese embora não tenha saído do país. Todavia, a portugalidade será uma coisa, sim senhor (e muito obrigado Eduardo Lourenço), mas a açorianidade é outra (e muito obrigado Nemésio, Onésimo, Natália, Antero, etc. É na segunda que moro apesar de habitar a primeira. Logo, a minha perspectiva do arquipélago é sempre pela positiva, pela saudade, pelo ideal, pelo utópico. E, sabendo que naturalmente isso não corresponderá à nua e crua realidade, orgulho-me de ver as ilhas assim.

    Foste para Lisboa bem novo. Mas estou em crer que o que se passou na Faculdade foi um mero ensaio para dar início a uma vida criativa, inclusive na televisão nacional e em tudo o resto?

    Uma coisa é certa: a criatividade salvou-me da inércia hermética do Direito. Não me arrependo da licenciatura mas percebi muito rapidamente que jamais seria feliz se seguisse aquele percurso. Aliás, até hoje sou absolutamente incapaz de conseguir dar o mais básico nó de gravata (risos)

    Salvou-me o teatro universitário, salvou-me a aventura na Inventio (revista literária fundada na FDL pelo Nuno Costa Santos), salvou-me uma namorada algarvia, os amigos de outros recantos do país com quem me dediquei a conhecer Lisboa a pé - e a perceber, após muita tentativa e erro, que nem todos os dias na capital eram propícios à vida nocturna. Mas nunca, em momento algum, sonhei com a televisão. Escrever, sim, sem dúvida, o resto – contudo – foi aquilo a que gosto de chamar um acidente feliz.

    Agora já nem para ser jovem agricultor tenho idade (risos) Mas sobram sonhos ainda por cumprir: realizar um filme e escrever um romance. Lá chegarei antes dos 50, pelo menos a um deles.

    Nos entretantos, tenho dois livros de poesia na gaveta, programas para produzir, espectáculos para fazer, filhos para criar, os Açores para – em ciclo perpétuo – redescobrir. E tenho o privilégio de, quase sempre, poder fazer tudo isto sem gravata, e antes de calções e chinelos (risos)

    Se foi um ensaio, não tive consciência disso. E talvez tenha sido melhor assim. Até porque, ironicamente, do meu grupo de amigos com quem aterrei em Lisboa (1995), era o único que jurava voltar a casa logo após ter o canudo na mão. E acabei por ser o único que, passados todos estes anos, permaneceu.

    Como é viver constantemente entre Lisboa e os Açores? Encontraste o teu equilíbrio, digamos assim, emocional e apego à terra de nascença e as tuas andanças entre as artes e o jornalismo?

    

    Ainda me falta concretizar a meta final, que será literalmente viver de novo em casa. Sendo que entendo “casa” como qualquer uma das ilhas. Tenho dois filhos muito pequenos, uma mulher apaixonada pelo arquipélago a quem só falta conhecer três ilhas, e o que mais desejo para o Tomé e o Fausto são três coisas apenas: que gostem de ler, que sigam o caminho que muito bem entenderem e, last but decerto not the least, que se sintam açorianos.

    No entretanto, e sensivelmente desde há uma década para cá, tenho – dentro do possível – conciliado o melhor dos dois mundos: vivo no continente por obrigação, porque o meio profissional em que me movo assim obriga; e venho aos Açores por devoção. E o melhor de tudo é que, nos últimos anos, tenho concretizado cada vez mais projectos de/sobre/e para a nossa terra. Ou seja, dá-se o privilégio de conciliar na mesma dança trabalho e paixão. De momento, por exemplo, tenho prestes a estrear uma série de 10 episódios chamada “Caixa Negra – Arca de Memórias Açorianas” (protagonizada por idosos das 9 ilhas); estou em pré-produção da 2ª temporada de “Work In Progress” (também 10 episódios), em que vamos ao encontro de artistas ilhéus, sempre de uma arte diversa, e onde tentamos compreender o que os move, inspira, e testemunhamos a criação de uma obra inédita; tenho dois projectos intitulados “Açoriano Universal” e “Embaixada dos Açores” em fase de criatividade; um livro sobre a magnífica Aldeia da Cuada para sair; e, claro, ainda não abandonei o sonho de uma sequela dos Mal-Amanhados – desta vez no mundo, ao encontro da Diáspora Açoriana.

    O grande problema para tudo isto é chocar constantemente com aparentes – e crónicas, e nefastas – inevitabilidades: a quantia perfeitamente residual que existe na Região dedicada à Cultura e, talvez até pior do que isso, a burocracia e o tempo absurdo que as decisões institucionais levam a ser tomadas (seja quem for que esteja no poder), prejudicando agentes culturais, associações sem fins lucrativos, e principalmente lesando a energia e vontade de quem quer fazer. Não há território deste arquipélago que não tenha almas valentes e vocacionadas para a criação/divulgação cultural. É fundamental, até para a sobrevivência da identidade açoriana, que não lhes sufoquem o espírito. Receio muito que, a manter-se o estado actual da gestão cultural nos Açores, o cenário se torne pura e simplesmente insustentável. Dou um exemplo pessoal, sabendo e ressalvando que há congéneres com situações muito mais precárias: fiz a primeira temporada de “Work in Progress” por um valor total de 26 mil euros. Qualquer produtor continental a quem eu conte isto fica estupefacto: “Como raio é que produziste de fio a pavio um programa de 10 episódios, 25 minutos cada, que implica ainda por cima viagens por ilhas, estadias e alimentação para a equipa, por um valor desses?”. Bom, consegui, e não fiquei a dever a ninguém. Mas, contas feitas, aquilo que sobrou para mim – por conceber, escrever, apresentar, montar, conduzir a carrinha, já agora – foram… 67 euros. Alguém me ajude a explicar isto à minha mulher (risos).

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 12 de abril de 2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Conversa com Ernesto Rodrigues

 


Em última instância, e numa primeira leitura desavisada, todos os clássicos são aborrecidos: por isso, à medida que nós melhoramos, melhora a compreensão das técnicas, do dito e talvez do interdito.

Por certo que é o profundo conhecedor da literatura que nos fala aqui. A própria obra do Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Diretor do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, entre outros cargos de cariz intelectual que exerce noutras instituições, é de todo abrangente quanto a temática e formas, e que vai desde o jornalismo e crítica literária, história da nossa imprensa em determinados períodos, à poesia e ficção. A sua bio-bibliografia é longa demais para que eu a sintetize nestas páginas. Tenho-me focado nos últimos anos na sua também extensa ficção, que inclui alguns dos títulos por ele aqui mencionados. Ler ou falar em direto com Ernesto Rodrigues é fazer um seminário sobre todas estas questões da arte literária e trabalho académico. A sua experiência de Leitor na Universidade de Budapeste torná-lo-ia ainda o grande tradutor da literatura desse país entre nós. É sobre tudo isto e algo mais que falamos nas palavras seguintes.

*

Já escrevi sobre alguns dos seus livros. Só que as notas biográficas sobre uma obra tão grandiosa “intimidam-me”. Ensaio literário, história da imprensa portuguesa, ficção e outros géneros. A escrita de um Professor da Universidade de Lisboa. Tudo isto me inquieta de modo desafiante. Pode comentar essa minha admiração e medo?

Sonhei-me escritor desde os oito anos e, ligado a jornais desde os 14, quis viver do jornalismo profissional, razão pela qual escolhi Lisboa. No quinto ano de Filologia Românica, na Faculdade de Letras, dificuldades financeiras obrigaram-me a trocar o jornalismo pelo ensino, primeiro no Liceu de Passos Manuel e logo no leitorado de Português na Universidade de Budapeste (1981-1986). Continuei ligado à imprensa escrita, donde saiu o essencial de Verso e Prosa de Novecentos (2000) e Literatura Europeia e das Américas (2019).

    No regresso da Hungria, a carreira naquela faculdade exigia provas, e, além do mestrado – sobre Fastigínia (1605), de Tomé Pinheiro da Veiga, de que daria edição crítica na agregação (2011) –, pude, já no doutoramento, conciliar aquelas paixões em Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal (1998; em 2022, acrescido de Crónica Jornalística. Século XIX, de 2004). Coordenar os verbetes de literatura portuguesa e teoria literária nos volumes de Actualização do Dicionário de Literatura (2002-2003) de Jacinto do Prado Coelho mostrou outra faceta, pois eu ensinei sempre na área da cultura portuguesa, da história e linguagem dos media, de que resultaram Cultura Literária Oitocentista (1999, 2022), 28 Ensaios de Cultura (2023) e quatro títulos de 2008-2012, a reunir em Da Corte Luso-Brasileira à República. Dei edições críticas ou rigorosas de Gil Vicente, João de Barros, padre António Vieira, Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Guilherme de Azevedo, As Farpas Completas de Ramalho Ortigão, além de novecentistas, com maior atenção a José Marmelo e Silva e António José Saraiva. Os 40 anos de Camilo estão em A Queda Dum Anjo e Novas Páginas Camilianas (2023).

Recolhido o ensaísmo universitário, desde 1976, em dez densos volumes (os séculos XVI a XVIII virão em Estudos de Literatura Portuguesa), o primeiro sonho é que importa, com a estreia em 1973 e novas colectâneas de poemas até 2020. O dramaturgo deu Teatro (2021). Fundamental é o novelista e contista (1980, 1983, 1996, 2024), embora sejam mais significativos os nove romances editados (1989-2023). Lá virão o cronista e memorialista, cumprindo enfim o sonho de criança.

Assim, a crítica, o ensaio, a edição e a tradução sei-os úteis a alguém: vivi-os como um serviço, enquanto me alimentavam. Podem causar admiração, mas nenhum receio. A criação literária é outro tipo de diálogo, uma espécie de culto a que não acede qualquer profano. Não é grave; como não é grave, aproximando-se, ficar à porta de muitos segredos. Faça seu templo-leitura com os elementos que recolher.

    Foi professor numa faculdade da Hungria em Budapeste durante alguns anos, e tornou-se entre nós um dos grandes tradutores da literatura desse país, ainda para nós misterioso. Pode falar-me dessa experiência e dessa, digamos, devoção?

Cheguei a Budapeste sem conhecer uma palavra de húngaro. Tornei-me o principal tradutor no universo da língua portuguesa. Após artigos de jornal, dossiê na revista da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, edição bilingue do poeta nacional Petőfi Sándor (1999, 2023), Antologia da Poesia Húngara desde o século XV (2002) e, em particular, grandes ficionistas do século XX (o Prémio Nobel Kertéz Imre, Márai Sándor, Szabó Magda, Kosztolanyi Dezső, Füst Milan, Őrkény István, Krasznahorkai László, Pál Dániel Levente), fiz um balanço de 40 anos em Hungarica (2022).

A devoção foi premiada com os mais altos galardões; a relação entre os dois países, que historiei desde a Idade Média, deu azo a trabalhos de investigadores, alunos meus que viraram docentes e mantêm viva essa interlocução. Língua fino-úgrica longe da comunidade indo-europeia, o húngaro é falado por 15 milhões e, pela sua dificuldade, sofre de uma certa guetização, que a política de hoje não ajuda a vencer.

    A minha experiência, todavia, antes da queda do Muro, foi exaltante, e perpassa em contos e romances como A Serpente de Bronze (1989), Um Passado Imprevisível (2018), A Terceira Margem (2022), Liliputine (2023). A Europa Central e a memória austro-húngara mostram-se, ainda, enigmáticas, além de – após a I Guerra Mundial e má definição de fronteiras – perigosas, na emergência dos nacionalismos.

A sua ficção é para mim um misto de dificuldade e prazer. Como diria um grande mestre meu anglo-americano na Califórnia: vai a todas as tuas referências com sofrimento, mas na última página sentirás o prazer da grande arte…

Cito Sperone Sporoni no conto “Série B” (em Cruzeiro Literário, Letras Lavadas, 2024), segundo o qual um autor vê claro, «quando, por vezes, o leitor nada vê ou tudo lhe parece obscuro». Explico com Chamfort: «C’est, dit-il, que l’auteur va de la pensée à l’expression et que le lecteur va de l’expression à la pensée.» No como dizer distinguimos literatura, jornalismo, etc. É um primeiro passo, em que se admira o luxo da escrita ou a arte da ironia.

Mais: é já a nossa vida, como quando, ao olhar o céu, vejo ou imagino uma nuvem ociosa – «nuage oisif», diz Proust – que flana no céu, homologando os meus passos. Vejo expressão e pensamento; reconheço lanços desta existência. Mas quero ir além, à arte de uma composição mais intensa e designá-la romance, entre digressão e incidentes, talvez um nó, um desenlace. Pode a dificuldade de certas arquitecturas conduzir à experiência estética? Sim. Convém uma leitura seguida, demorada, atenta a índices, a comportamentos e relações intra, inter e extratextuais. Cada novo exercício problematiza a tradição conhecida do autor. E só há possíveis a atingir.

Aquando da revolução húngara de 1956, as personagens de A Serpente de Bronze dialogam, frente ao parlamento, com circunstantes: estes respondem com falas de um contista húngaro, também nessa ocasião junto ao Danúbio, e que eu traduzo. Segundo exemplo: em noite de Consoada, seis personagens de Torre de Dona Chama (1994) falam em lugares diferentes. Como ordenar estes discursos? Elas entram em cena segundo a lógica das rimas de uma sextina. Vou aqui dizer o que aprendi com uns tantos autores, alguns ignorados entre nós?

O leitor penetra numa floresta coerente, e nunca se perde: está sempre a tempo de recuar, buscar outra prosa-clareira. Feliz será, se subir um cheiro a renovo (na terra ou no seu horizonte de leitura), se haurir algum perfume, ganhar um canto de aves. Sou um crítico com escritor dentro, mas também um escritor conhecedor de várias literaturas seculares.

Entre a expressão e a composição, há processos a estudar. Recobrindo estas entidades, um céu histórico-cultural, dentro do qual funcionam as galáxias de sentido. Não atingimos todos os seus elementos astrais, ou significados; se só conquistamos alguns, não raro a bom sofrer, acredite-se, ao menos, que o romancista nos propõe um trabalho honesto. Em última instância, e numa primeira leitura desavisada, todos os clássicos são aborrecidos: por isso, à medida que nós melhoramos, melhora a compreensão das técnicas, do dito e talvez do interdito.

A vida é um denso labirinto: especialista do folhetim, sei isso, e como este a simplifica, a lineariza, sem escapar aos impossíveis e anacronismos, até (na maior parte dos casos) cair no esquecimento; qual Teseu animado por Ariadne e seu novelo, o leitor deve armar-se para combater o texto-minotauro. Ninguém tem o exclusivo da vitória, vitória que é à medida de cada um.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 5 de abril de 2024.

sexta-feira, 29 de março de 2024

À conversa com Diogo Ourique, ou como se faz ficção anti-ficção

 

As metrópoles, aos poucos, vão perdendo a piada, o encanto, a novidade – aquele canto da sereia.


    Diogo Ourique é um outro escritor muito especial para mim, para além de toda a sua criatividade enquanto em Lisboa, e agora a partir dos Açores. O seu primeiro romance Tirem-me Deste Livro é um dos atos de ficção mais originais na literatura portuguesa. Natural da freguesia Agualva, da Ilha Terceira, não pede desculpa a ninguém pelo seu regresso à terra natal. Não imaginem a admiração que tenho por ele e por a toda a sua geração. Escritor supremo, que tem múltiplas geografias como ponto de referência, desenvolve a sua carreira como se o mar entre nós todos fosse apenas, e é, uma estrada para o resto do mundo. Tirem-me Deste Livro está prestes a ser lançado nos Estados Unidos na tradução em inglês, agora com título Let Me Out of This Book, da Bruma Publications do Portuguese Beyond Borders Institute da Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, e dirigida por Diniz Borges. Merecido. Bem-vindo.

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    O teu primeiro romance, Tirem-Me Deste Livro, publicado em 2019, foi-me algo mais do que uma surpresa que me deliciou de maneira perversa. Afinal, tinha de ser um autor agualvense a rachar a cabeça de uma personagem logo nas primeiras páginas. O que se segue ainda torna essas páginas mais do que subversivas entre todos os autores açorianos.

    
    

    A ideia foi tentar entrar com um estrondo, seguindo à risca aquela regra literária de se tentar captar a atenção do leitor logo nas primeiras páginas. E, com esse prólogo, pretendi também definir o tom da obra logo à cabeça, para que ninguém fosse ao engano: trata-se de um livro pesado (naquilo que descreve), com sangue, vítimas e más acções. Mas, ao mesmo tempo, contando a história de um protagonista que se apercebe da sua condição de personagem fictícia, o próprio livro acaba por questionar a realidade de tudo o que vai acontecendo ao longo da trama, já que tudo não passa de histórias e acções imaginadas e escritas por outrem – logo, será que realmente aconteceram? É, talvez, reflicto agora, uma estratégia que inventei para poder carregar no terror e no macabro à vontade, ao mesmo tempo que seguro a mão do leitor e lhe digo: “Calma, nada disto é real. Isto não está realmente a acontecer. Por isso, tudo é válido”. Uma estratégia que acabou por me valer de muito, já que me permitiu, neste primeiro fôlego literário, experimentar à vontade, dizer tudo o que me apetecia, e não me limitar exclusivamente às quatro paredes de uma história.

    Porque a motivação também foi essa desde o início, e tem sido ao longo de tudo o que tenho escrito e do que ainda estou para escrever: ir além dessas paredes, o chamado “break the fourth wall”. Embalado por tantas outras histórias – na literatura, no cinema, nos jogos de vídeo – que descrevem pessoas que acordam da sua realidade e percebem que o mundo à volta delas não é verdadeiro, que quebram essa quarta parede, que falam com o público. Muitos de nós já nos imaginámos noutras peles, noutras vidas; questionámos a nossa própria existência. E tentamos desconstruir a realidade à nossa volta, analisando-a por partes, questionando dogmas, refutando certezas. É isso que, para mim, é mais interessante na arte: a desconstrução. Estudar e conhecer bem as regras para, a partir daí, as conseguirmos desmontar, arrumá-las para um canto, fazer troça delas, até.

    Outra regra literária muito popular diz que devemos escrever aquilo que gostaríamos de ter lido. Pois eu gosto sempre de ler o caos: mas um caos estruturado, que conhece as regras – um caos que sabe ser caos.

    A tua carreira em Lisboa tem sido fulgurante como humorista e em tantas outras atividades ligadas às artes e à comunicação. Como chegaste aqui?

    Sempre tive uma paixão pelo humor, mas dificilmente me consideraria humorista ou comediante – talvez um dia, com uma boa dose de autoconfiança e alguns calmantes no bucho antes de entrar em palco. Tento é embutir humor em muito do que faço, porque, a meu ver, o riso é o veículo mais fácil de conseguirmos passar uma mensagem, ou de explicarmos os nossos pontos de vista. Talvez seja, novamente, por esta necessidade que sempre senti da constante desconstrução – ou talvez essa necessidade tenha sido, ela própria, alimentada pelo humor.

    Porque o humor é tudo isso: é desconstrução, é questionamento, é esgravatarmos para encontrar o inesperado, o absurdo. É por isso que gostamos de ouvir piadas, de ler crónicas e histórias engraçadas, de ver programas de humor e filmes de comédia. Por alguma razão, conteúdos como os actuais programas de sátira política – principalmente na cultura anglo-saxónica, que acaba por influenciar todo o mundo –, que apontam um espelho, através do humor, ao que se passa à nossa volta, são tão populares, e líderes de audiências.

    O humor tem esse papel de desconstrução, e de influenciar opiniões, muito importante, apesar de quem o pratica profissionalmente tentar muitas vezes desmarcar-se dessa responsabilidade, alegando que são só piadas. Mas a verdade é que, e sabemo-lo: o humor dispõe bem e incomoda ditadores. Só por isso, já me parece bastante valioso.

    Pertences a uma geração de escritores que muito admiro, e creio que tenho dado conta disso nas páginas do Açoriano Oriental. Quando ir estudar para o continente e por lá ficar era uma espécie de glória perante os outros que ficavam, o que te fez regressar aos Açores e daqui prosseguir com a tua carreira?

    Não só temos registado o interesse do Vamberto nas gerações mais recentes de escritores açorianos como só lhe temos a agradecer por este holofote que nos aponta constantemente, e que acaba por nos guiar o caminho. É óptimo sentirmo-nos vistos, apreciados, reconhecidos por pessoas tão atentas à nossa Cultura, e que já tanto contribuíram para ela.

    De facto, ir estudar para o continente, extravasar, conhecer o além-mar é comum a muitos ilhéus, independentemente da área profissional que venham a escolher. Há um desejo de descoberta, de se conhecer as metrópoles, de se ser um grande cosmopolita. Mas o cosmopolitismo nada pode contra as “Saudades da Terra”. As metrópoles, aos poucos, vão perdendo a piada, o encanto, a novidade – aquele canto da sereia. Passam a ser a roda do hamster em que nos vemos aprisionados, em percursos pendulares e dias rotineiros. Começamos a apreciar a liberdade paradoxal que as ilhas nos garantem, já que estão rodeadas de mar – mas também estão repletas de tudo o que é nosso. Estão repletas do que nos inspira, do ar puro que nos alimenta, da calmaria que – no nosso caso – nos permite escrever, pensar, ter ideias, ter calma; não ter um metro para apanhar nem uma auto-estrada para atravessar em hora de ponta só para darmos um mergulho rápido em praias longínquas e atulhadas e regressarmos para um apartamento arrendado num complexo que nunca será nosso.

    Essa é outra questão, cada vez mais premente. Acredito que há muitos de nós que ainda queiram lá ficar, nas metrópoles, no êxtase da urbe. Mas ser cosmopolita já não é para o bolso dos portugueses. Muitas vezes, o regresso acaba por ser a solução mais económica e, embalada pelo magnetismo da terra-mãe, definitiva.

    Pessoalmente, encontro-me um pouco no meio desses dois cenários. Incentivado por uma pandemia mundial, acabei por regressar à terra natal, e cá fui regando as raízes que nunca chegaram a secar. Deixei de pensar nas metrópoles porque já não me apetecia pagar o que elas me cobravam, nem em termos financeiros, nem em termos de qualidade de vida. Deixei de ver a ilha como um porto de partida para conhecer novos mundos, e encaro-a agora como um porto de abrigo, ainda com tanto a realizar. E aqui consigo, realmente, ver as consequências das minhas acções, perceber a influência daquilo que faço, os efeitos do meu trabalho. A roda do hamster não é só uma roda, tem curvas e contracurvas, sítios para descanso e piqueniques, estações de serviço e apeadeiros. Se as oportunidades não existem, tentamos criá-las. E se, mesmo assim, não conseguirmos, então com certeza, vamos para fora, sejamos cosmopolitas, sem medos – mas também sem nunca nos esquecermos do sítio para onde provavelmente iremos sempre regressar: as nossas ilhas, onde conseguimos realmente viver, em vez de apenas existir.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 29 de março de 2024.

sexta-feira, 22 de março de 2024

À conversa com Teresa Martins Marques: do ensaísmo à ficção


Na minha escrita procuro a clareza alicerçada em microanálises – Close reading –, sem excluir os contextos históricos.


    Teresa Martins Marques tem um longo percurso literário e de docente, doutorada pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre a obra, crítica e biográfica, de David Mourão Ferreira. Foi Presidente do Pen Português ainda há poucos anos, a organização mundial que zela pela liberdade intelectual e outros direitos humanos. É autora do grande romance Não Matarás: Romance de Um Crime (2022), que tem como tema central o assassínio de Aldo Moro em 1978. Publicou antes A Mulher Que Venceu Don Juan (2013), em que a violência que sofrem as mulheres no nosso país e em toda a parte constitui uma espécie de libelo mundial contra essa violência que é doméstica, mas não só. Neste momento escreve uma longa biografia de José Rodrigues Miguéis, um dos supremos escritores portugueses do século passado, e depois de Portugal e outros países da Europa acabaria por viver os seus mais de quarenta anos em Nova Iorque, sem nunca mais querer voltar permanentemente ao seu país de origem. A nossa conversa focou principalmente esta outra faceta da sua vida intelectual. Vive em Lisboa, e olha a luz branca da sua cidade pela janela ou pela sua varanda. Serena, e ainda assim intensa perante uma obra maior da nossa literatura e respetivos estudos.

*


    O
seu romance
Não Matarás foi-me muito significante, quanto a política e decência humana. O que faz uma autora de Estudos Portugueses e outros a rever o assassínio de Aldo Moro?

    Em 2018 evocava-se, em Itália, o quarantennale dos crimes da Via Fani-Roma, perpetrados pelos terroristas das Brigate Rosse e seus cúmplices, em 16 de Março de 1978. Tais crimes consistiram no rapto de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã, e o assassínio de cinco agentes da sua escolta, a que se seguiram 55 dias de sequestro de Aldo Moro, culminando com o seu assassínio, em 9 de Maio, e o seu cadáver deixado no porta-bagagem de um Renault 4 rosso, na Via Caetani, estrategicamente colocado entre as sedes da Democracia Cristã e do Partido Comunista. Ambos os partidos apoiaram o governo de Giulio Andreotti, na recusa de negociar a troca de prisioneiros para a libertação de Aldo Moro. Disseram que não se negoceia com terroristas, mas não tiveram pejo em negociar, com os mesmos terroristas, em 1981, quando sequestraram Ciro Cirillo, também ele membro da Democracia Cristã.

    Partindo do pressuposto de que literatura é um lugar onde a memória se preserva, um romance histórico seria a melhor forma de a evocar, questionar e esclarecer. Após três anos e meio de investigações veio a lume o romance intitulado Não Matarás! (Gradiva, 2022) – porventura o mais importante dos Dez Mandamentos, que neste caso não foi cumprido nem pela Democracia Cristã nem pelo Partido Comunista, direita e esquerda aliada contra um homem bom.

    O romance articula os aspectos ficcionais com os factos históricos, através de uma pseudo-brigadista “Anna”, que acompanha Aldo Moro nos lugares do sequestro. Esta personagem é uma criação ficcional, baseada numa mulher real que deixou dois cabelos ruivos, de 14 e de 18 centímetros, no casaco escuro de Aldo Moro.

    As Brigate Rosse não contaram a verdade sobre múltiplos aspectos que envolveram o crimes conforme apurou a última Comissione Parlamentare d’Inchiesta Moro (2014-2017), dirigida pelo deputado Giuseppe Fioroni. O Memoriale assinado pelos brigadistas Valerio Morucci e Adriana Faranda, em 1984, seis anos após o crime, foi trazido dos cárceres pela freira Teresilla Barrilà, para ser entregue ao Presidente da República, Francesco Cossiga, em 1990. Esse Memoriale chegou ao público doze anos depois dos factos aí narrados e já muito subvertidos, porquanto não foi escrito apenas por aqueles dois brigadistas, mas também por Remigio Cavedon, vice-director de Il Popolo, o jornal da Democracia Cristã. Tal Memoriale é hoje considerado um documento lacunar e falseado. É uma versão de conveniência que terá servido para negociar a redução das penas. Crime contra Aldo Moro é também o seu abandono por parte do Estado e de todos os que, com maquiavélicas estratégias, não permitiram a sua libertação: a loja P2 de Licio Gelli e Umberto Ortolani, o governo de Giulio Andreotti e Francesco Cossiga e certos sectores do Vaticano, entre os quais Monsenhor Paul Marcinkus, envolvido nos escândalos do IOR – Banco do Vaticano, de que era presidente, não esquecendo o omnipresente demiurgo Henry Kissinger. No fim de contas, as Brigate Rosse foram criminosos idiotas úteis!

    Conheço muito bem a tua obra literária no seu todo. Você é a maior especialista, da obra de José Rodrigues Miguéis, um dos mais distintos autores portugueses do século passado. Está prestes a publicar uma grande biografia do nosso escritor que passou boa parte sua vida em Nova Iorque, numa espécie de exílio tranquilo. Como tem sido essa investigação e escrita?

José Rodrigues Miguéis
    Tendo já dedicado abundante atenção crítica à Obra de José Rodrigues Miguéis, entendi que fazia falta uma biografia aprofundada que cobrisse a dimensão vivencial, sem descurar alguns aspectos da obra literária. Escrevo a partir da investigação das fontes primárias: os microfilmes do espólio de José Rodrigues Miguéis, arquivado na Biblioteca Nacional, e os arquivos da PIDE e uma vasta correspondência inédita, com particular relevo a que Miguéis manteve ao longo de toda a vida com David Ferreira, seu afilhado de casamento e com Jacinto Baptista, director do Diário Popular, que acolheu as publicações do escritor na última década. Através dela percebem-se os motivos que o levaram a não voltar a Portugal depois da revolução de Abril e as desconfianças que mantinha durante o PREC. Esclarece-se a verdadeira identidade da filha adoptiva e os problemas tremendos que envolveram o seu primeiro casamento com a tresloucada Pesea Cogan Portnoi, oriunda da Bessarábia, sua colega em Bruxelas, e que aos 17 anos já se tratava, em Viena, com Alfred Adler, mas que nem assim se curou…

    Nesta biografia não poderia deixar de ser contada a saga que corre nos tribunais entre a neta e a caretaker da muito idosa viúva do escritor, Camila Miguéis, por via de um testamento que esta fez aos 101 anos, no consulado de Portugal, em Nova Iorque, em exclusivo favor da caretaker, no qual declarou que não tinha descendentes, quando na realidade tinha uma filha adoptiva, uma neta e duas bisnetas!

    A biografia permitirá corrigir outras falsidades que correm nos documentos oficiais, pálida amostra da desordem que grassa nos arquivos, que inventam factos a partir de erradas traduções e deficientes transcrições. Exemplo disso é o registo nº 157, de 15 de Setembro de 1952, dos Registos Centrais de Lisboa, no qual Miguéis, ateu confesso, duas vezes casado apenas pelo Registo Civil, aí surge casado “catolicamente” por via de uma má tradução, que toma por padre o funcionário do City Hall de Nova Iorque!

    Fale-me das suas opções literárias, ensaístas e críticas

    No que respeita ao ensaísmo, José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira são os dois escritores a que dediquei maior atenção ensaística. Sobre o primeiro escrevi a dissertação de mestrado – a primeira em Portugal sobre o autor – O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis, apresentada na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1992, e publicada em livro pela Editorial Estampa, em 1994 (3ª ed.1997). Dirigi as edições e prefaciei cada um dos treze volumes das Obras Completas, publicadas no Círculo de Leitores, entre 1994-1996.

    Clave de Sol-Chave de Sombra: Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira (Âncora Editora, 2016) foi, noutra versão, tese de doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa. Outros autores a que dei atenção crítica e ensaística foram Cesário Verde, Gomes Leal, Raul Brandão, José Régio, Vitorino Nemésio, Eugénio Lisboa, Fernando Aires, João de Melo, Onésimo Almeida, Adelaide Freitas, Vamberto Freitas, em diversos ensaios e, particularmente, no volume Leituras Poliédricas (Universitária Editora, 2002).

    Na minha escrita procuro a clareza alicerçada em microanálises - close reading -, sem excluir os contextos históricos. Si On Parle du Silence de la Mer (1985) é um estudo da novela Le Silence de la Mer (1942) de Vercors, pseudónimo do escritor francês Jean Marcel Bruller, fundadora das Éditions de Minuit, situando-a na Segunda Guerra Mundial. A aliança entre a ficção, o ensaio e a filosofia pode ser vista no romance A Mulher que Venceu Don Juan (2013) onde uma personagem estuda O Diário do Sedutor de Kierkegaard. Neste país em que a leitura é apanágio de happy few, é meu dever evitar a linguagem críptica, alambicada, logarítmica, que afasta grande parte dos leitores.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 22 de março de 2024.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Conversa com Carlos Bessa, poeta e dinamizador da cultura nos Açores

 


A cultura é isso, não é, ousar, questionar, problematizar? Sem esquecer que a cultura tem, em democracia, direitos.


    Tudo o que eu poderia dizer aqui nesta brevíssima nota de abertura está dito por Carlos Bessa no decurso da nossa conversa por escrito e em direto. Poeta maior, professor, presidente desde há muitos anos do Instituto Açoriano de Cultura (IAC), com sede em Angra do Heroísmo, a sua obra total ergue-se como uma das mais distintas nos Açores modernos. De outros mais, no noutro lado mar, sei que consideram a revista Atlântida a melhor do país. Sem nunca entrar em auto-elogios, só o seu quase incrível trabalho intelectual fala por si.

*

    Há anos que estás responsável pelo Instituto Açoriano de Cultura, em Angra do Heroísmo. Como tem sido essa experiência da atividade contínua juntamente com as tuas responsabilidades de docente numa escola na Praia da Vitória?

    É verdade… Tive a triste lembrança de aceitar, em 2017, o convite que me foi feito para dirigir uma instituição com tantos pergaminhos e com uma história tão rica. Mal sabia no que me estava a meter. O Instituto Açoriano de Cultura (IAC), fundado em meados da década de 1950, leva já várias décadas de atividade ininterrupta, desempenhando um papel de relevo nos Açores. Por ter sabido manifestar, desde logo na sua própria designação, uma abertura ao mundo, relevando a importância do diálogo, da troca e da partilha na afirmação e desenvolvimento da cultura da região e sendo, por isso, um instituto açoriano de cultura e não apenas de cultura açoriana. Ao mesmo tempo que assumia, creio que pela primeira vez e de forma bem explícita, a vontade de pensar os Açores como um todo, não sendo, por isso, apenas instituição de uma cidade só, como aconteceu com outras instituições da mesma época. Essa dimensão de abertura e de diálogo foi sempre complementada por uma ação que se pautou pelo questionamento, ou seja, por um anseio de interrogar e compreender as particularidades das nove ilhas do arquipélago, pensando-as como um todo. Ação que os fundadores desejaram pudesse alavancar, como agora se diz, o desenvolvimento económico e social dos Açores. Ora, quando fui eleito para presidir à direção do IAC, o meu trabalho foi o de, conjuntamente com os demais membros da mesma, dar continuidade a esse desiderato. Não é um trabalho fácil, até porque cada um de nós trabalha e muito por amor à camisola, como se diz. Fazemo-lo porque todos desejamos viver num arquipélago que conheça não só o seu passado, como também, e sobretudo, que seja capaz de encontrar caminhos para o seu futuro. Não faz sentido vivermos para sermos tão-só servidores de um turismo de massas. É, por isso, urgente termos uma classe política que não se limite a repetir e mastigar banalidades e que seja capaz de valorizar os criadores das mais diferentes áreas que aqui nasceram, bem como os que aqui e agora vivem. Ora o que é a criação? Será repetir o que outros já disseram e fizeram ou, pelo contrário, interrogar e transfigurar o presente em obras que o reflitam? A cultura é isso, não é, ousar, questionar, problematizar? Sem esquecer que a cultura tem, em democracia, direitos. Desde logo o de receber uma fatia do bolo orçamental. Não pode ser amesquinhada por uma contabilidade ultrapassada e estéril. Quem conhece outros arquipélagos sabe como a região está atrasada, neste e noutros domínios, e carece de mais e de melhor investimento. Nós, no IAC, tentamos fazer o máximo, apesar de sentirmos que olham para nós com desconfiança, porque não servimos clubes nem partidos, nem trabalhamos para servir egos. Muitos ainda olham para o IAC como se fizéssemos parte da orgânica governamental. Não. Somos uma associação cultural privada. Fazemos muito com muito pouco. Temos estado presentes em várias ilhas e levado a cabo parcerias com várias associações e instituições dessas ilhas. Cuidamos de uma parte do património literário da região. Por exemplo, criámos uma coleção de poesia para reunir obras dispersas de relevantes poetas açorianos, como Pedro da Silveira, Mário Machado Fraião, J.H. Borges Martins ou Madalena Férin. Iniciámos a publicação de guias práticos da fauna e flora terrestres e da geodiversidade, bilingues (em português e em inglês), suprindo uma falta enorme, como se tem verificado pelas vendas. Publicamos, uma vez por ano, aquela que muitos consideram a melhor revista que se publica no nosso país: a Atlântida, onde damos espaço a novos criadores e onde estabelecemos pontes com a Macaronésia (Cabo Verde, Canárias, Madeira), mas também com outros lugares. E poderia falar ainda da divulgação de novos valores nas artes plásticas e perfomativas e na fotografia. Ou na atividade regular de promoção do livro e da leitura, sobretudo do livro entendido como lugar de inquietação, de dúvida e de invenção. Ou, ainda, na parceria estabelecida com a RTP Açores para a realização do programa Lugares de Escrita, que mostrou a aliança entre os lugares e a obra de nove autores açorianos de agora. Gostaríamos de poder fazer outras coisas, mas para isso seria necessário que finalmente se entendesse e apoiasse a sério o trabalho dos agentes culturais.

    A tua poesia e prosa-outra têm estado à nossa espreita. Quanto mais tempo vamos esperar pelo poeta e a sua poesia?

    Como a minha resposta anterior foi longa, aproveito para me referir agora à minha atividade profissional, a docência, que, juntamente com o IAC, me deixam pouco tempo para mim e para a poesia. Entendo a poesia como uma das artes mais nobres e, no caso da nossa língua, aquela onde conseguimos grandes feitos, entenda-se, obras notáveis que nos retratam e que evidenciam as potencialidades do português para expressar pensamentos, ideias, reflexões, fantasias. Para criar é preciso ócio e não tenho tido muito. Mesmo assim, lá encontrei maneira de reler os livros de poesia que fui dando à estampa, depois de ter recebido um convite da Tinta da China para publicar a minha poesia reunida. A saída do livro está para breve, creio que para inícios de abril, e inclui um livro novo que, espero, encontre leitores na região. Como nunca fui de publicar muito e o último livro saiu há já sete anos (o anterior saíra dez anos antes), nem sei se ainda há quem tenha interesse pelos meus versos. Talvez possam encontrar pelo menos um ou dois leitores. De resto, não cuido da minha obra. E isso leva-me à outra parte da tua pergunta, o poeta. Gosto de poetas que olham de frente para o coração da realidade, sejam quais forem as formas e os sons que ela assume. Ora isso não é algo que seja apreciado pela generalidade das pessoas. Como as pessoas vivem escravizadas por valores que as diminuem, que lhes fecham as portas da alegria e passam a maior parte do seu tempo em tarefas que as afastam de si próprias, não têm paciência para a poesia. Embora esta continue a andar à solta por todo o lado, até na fala das gentes. Eu não sei se chego a ser poeta, mas tento que os meus versos meçam a temperatura do coração de que falava há pouco. Não escrevo para saciar a lisonja e a tagarelice, mas para fazer perguntas e tentar olhar de frente para a morte. E faço-o maioritariamente com palavras banais, do dia a dia, procurando preservar um pouco dessa música.

    

    Fala-me um pouco das tuas origens continentais e da tua adaptação e vida em ilha. Quando vieste para cá?

    Vim no século passado, no início da década de 1990. Vim para me deslumbrar com cada uma das nove ilhas. E acabei por ficar numa delas, na Terceira. Encantado com o sentido de humor das pessoas e com a sua maneira peculiar de saber dar a volta aos desatinos da sobrevivência. Vim para aprender e descobrir as especificidades do ser ilhéu e viver em solos vulcânicos. Depois de ter crescido suburbano, assistindo à voracidade com que se trocavam árvores e campos por prédios e alcatrão. É curioso recordar isso, pois houve um tempo em que se dizia que os seres humanos teriam de trabalhar menos e ter mais tempo para si mesmos, mas, apesar da robótica e de tanta maquinaria, continuamos sem tempo nem condições para viver uma vida plena. Nas ilhas encontrei um saber viver devagar, um gostar de estar à mesa com amigos e até com desconhecidos que se me afiguram extremamente poéticos. Além disso, posso encantar-me com os dias de densos nevoeiros e recordar Novalis, “toda a cinza é pólen”, ou com o murmúrio incessante da luz vívida das manhãs e tardes de sol.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 15 de março de 2024.