O turismo obriga a uma afirmação de identidade que a cidade, no fundo, ainda procura.
Pedro Arruda, (Re)Imaginar Ponta Delgada
Não vou aqui escrever sobre a atual questão do turismo quase em massa nas maiores ilhas dos Açores, com São Miguel a receber todos os anos centenas de milhares de visitantes chegados cá de várias partes do mundo, juntamente com os nossos emigrantes, principalmente da América do Norte. O 7º volume da Avenida Marginal, que tem vindo a ser publicados pela Artes e Letras da Livraria Solmar, é o seu maior volume até hoje. Discute o fenómeno do turismo, e vai ainda muito mais além quando aborda o que cada um dos seus intervenientes escreve no que Pedro Arruda, o coordenador do presente livro, resume na sua introdução juntando as suas temáticas no que resulta uma original narrativa sobre a maior cidade dos Açores, sem nunca a colocar em vantagem ao resto do nosso arquipélago apesar de Ponta Delgada ser a maior e o nosso mais dinâmico centro populacional. A questão da identidade de que ele nos fala – ou alerta – junta-se ao seu cosmopolitismo e à recusa de qualquer sentimento restritivo a todos que nasceram ou optaram por se fazerem parte integral da nossa sociedade, agora em ebulição, que ora é saudade, que ora é criticada por razões, digamos, de ordenamento ou necessidade de se reajustar a uma população felizmente diversa em termos de nacionalidades cá presentes, ou dos constrangimentos e avanços que inevitavelmente certo progresso nos traz. Como em volumes anteriores, este recomenda ainda mais a civilidade que agora convive com mais problemas humanos e estruturais no seu todo. Cabe ao leitor descobrir estas paginas tão serenas como preocupantes nas esferas principais das nossas vidas, da cidade a reinventar-se enquanto lida com o bem estar de todos por entre o que preocupa alguns dos escritores aqui presentes. A minha intenção aqui é outra: a celebração de um grupo de ensaístas que difere saudavelmente em idades e mundividências numa cidade à beira do grande mar que se tornou desde há muito a sua passadeira na ultrapassagem dos horizontes que outrora nos fechavam na nossa pequenez e na angústia da nossa sobrevivência. Pedro Arruda fala da nossa já longa história, desde Gaspar Frutuoso, a questão, uma vez mais, da identidade, que ao longo dos séculos até aos nossos dias foi fluida, e agora apresenta-nos alguns dos outros pensadores nossos conterrâneos, e que pensam não a sua pessoa mas toda a coletividade do seu, do nosso, quotidiano e convivência, e ainda a articulação da cultura com toda a sociedade.
“(Re)Imaginar Ponta Delgada – escreve Pedro Arruda na sua introdução dos variados textos seguintes – foi o repto lançado, neste volume, a todos os que nele colaboraram e aos que o lêem. Repensar a cidade e o seu papel. Os desborderafios e as aspirações de uma cidade e o seu papel. Os desafios e as aspirações de uma cidade atlântica e insular no século XXI. Convidámos, para isso, um conjunto vasto e diversificado de colaboradores: historiadores e médicos, escritores e professores, académicos e artistas, empresários e jornalistas, juristas e arquitetos. Uma pluralidade de vozes que quisemos que fosse, também ela, expressão de uma característica distintiva da cidade: o debate, a controvérsia, a troca de ideias. Recusando os unanimismos fáceis e procurando sentir, nessa divergência convergente, o verdadeiro pulsar da cidade”.

Pedro Arruda
Para
mim, ler este livro plural nas suas ideias, e até nos seus
sobressaltos na diagnose das suas maiores ou menores dificuldades e
promessas por cumprir, foi uma viagem de (re)descoberta
no que eu
próprio pensava, e ainda do que nunca tinha pensado ou
visto, mesmo nos meus olhares menos atentos ou distantes. Entre a
minha casa em São Roque e a cidade aqui ao lado já tinha deixado
até de notar o próprio mar ao meu lado e o caos de estrada em que
tudo se havia tornado ao longo dos anos, focado na minha mente
essencialmente literária e sentimentos de saudades do que tenho
vivido desde a minha viagem
definitiva
e
conclusiva dos
Estados Unidos para cá em 1991. Já tinha deixado de falar ou de
pensar no que muitos à minha volta consideram agora
degradação
e confusão, motoristas desatentos e agressivos, serviços cada vez
mais difíceis e de pouca atenção, esplanadas sobrecarregadas e
domínio de outras línguas. Vindo
da
grande Los Angeles para
Ponta Delgada só me podia e me
posso
sentir privilegiado. A cidadania toma formas diferentes: um buraco na
estrada já não
me
incomoda, o turista a atravessar
a passadeira a falar ao telefone, ou a demora do empregado de mesa
que serve primeiro o outro
que lhe poderá compensar muito melhor do que eu também
não me consume.
Ao ler este Avenida
Marginal reconheço
todos os reparos, admiro as sugestões, partilho a saudade do outro
futuro
que demora a chegar. Tem aqui ensaios que são pura literatura, como
tem alguns
que são os mais autênticos atos de cidadania através da palavra
bem colocada, do pensamento sempre construtivo e a expressar o desejo
de nunca perdermos a cidade às
dimensões da ilha, à promessa da sua história, ao dever que deve
ter perante qualquer cidadão cá nascido ou que decidiu fazer de
Ponta Delgada e dos seus arredores mais próximos ou longínquos um
outro chão do seu destino, da sua felicidade, da tranquilidade que
lhes faltavam nos grandes centros metropolitanos mundo afora.
São 14 as vozes que, como outros antes deles, tentam “redifinir” Ponta Delgada. Muito para além das cansativas estatísticas são as suas claras e significantes linguagens que nos transportam uma vez mais a repensar a nossa cidade, as nossas ilhas, o nosso lugar numa geografia única do Atlântico. Nenhum destes textos é um manifesto ou coisa que se pareça, tão só, e é muito, permitem-nos acompanhar a realidade ou a mítica de uma antiga urbe que tem sabido sobreviver a todas as tempestades, a desfrutar dos seus dias de sol e paz, a viver a normalidade (crescentemente problemática, como em toda a parte) cumprimentando os que por nós passam, admirando o milagre rodeado de mar por todos os lados e um pouco adiante a terra que durante séculos foi o nosso alimento, a nossa salvação – e a nossa partida sem raiva nem remorso para terras distantes, que não nos afastaram das origens nem da vontade de regressos múltiplos. Este é outro livro não só da memoria como é também um memorial, ofendido por vezes, sem nunca rejeitar a nossa identidade e a fundura das nossas raízes. Ninguém critica o que não ama, ninguém repara o que deseja ser um cultivo mais ameno e rico do seu terreno, do seu mar, dos seus sonhos ou do que todos nós, nascidos cá ou não, desejamos um outro futuro, sem mágoa pelo passado. É disto tudo que o mais comovido pensamento humano deseja para toda uma comunidade, seja ela residente ou no além-fronteiras.
Uma última palavra. A capa de (Re)Imaginar Ponta Delgada é genial. Da autoria da artista Andrea Santolaya, a fotografia vem a preto e branco, num dos sítios mais reconhecidos para quem sabe da sua cultura literária, de biografias improváveis mas reais. O Campo de São Francisco e o banco onde se suicidou um dos maiores poetas açorianos de sempre, Antero de Quental. Como sabem, bem na parede atrás ainda permanece o dístico original que diz simplesmente “Esperança”. a parede do que foi um venerado convento. Olhar este espaço nesta capa muda toda a nossa interpretação – a que vai da verdade, alegria e futuro da vida sobre a finalização da morte.
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(Re)Imaginar Ponta Delgada: Avenida Marginal - Ensaios (coordenação e introdução de Pedro Arruda), Artes e Letras, Ponta Delgada, 2025
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 5 de dezembro de 2025.


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