sexta-feira, 28 de novembro de 2025

José Rodrigues Miguéis revisto e tornado vivo


Mas a verdade, no caso de Miguéis, é que são os seus livros que refletem a sua psicologia, idiossincrasias e personalidade…

Teresa Martins Marques, Nos Passos De José Rodrigues Miguéis: Uma Biografia Como Um Romance



    Este volumoso livro de Teresa Martins Marques, José Rodrigues Miguéis: Uma Biografia Como Um Romance não tem par entre nós, e creio que nas outras línguas que me são familiares, pelo seu estilo, pela sua forma, pela audácia literária de voltar a contar uma vida que combina a “verdade” de um dos maiores escritores portugueses do século passado com a imaginação de um romance feito de diálogos, quase todos documentados com uma interlocutora com quem ele partilhou a sua experiência em Manhattan, que já tinha durado mais de trinta anos. A grande cientista portuguesa, Maria de Sousa, também falecida já em Portugal durante os anos da pandemia Covid (uma outra ironia porque a sua especialidade era isso mesmo, pandemias ou doenças associadas), devolve-nos alguns dos segredos de um dos mais originais autores nossos, tanto na ficção como em escrita-outra. É necessário aqui relembrar que Teresa Martins Marques, ela própria ficcionista e ensaísta de maior projeção entre nós e outros, haveria de ser e é uma das suas biografas mais conhecedoras da obra de Miguéis, aqui e no estrangeiro. Direi mais disso um pouco mais adiante. Basta por agora relembrar que esta sua obra segue uma outra e primeira biografia de Mário Neves, José Rodrigues Miguéis: Vida e Obra, publicado em 1990.

    


    J
osé Rodrigues
Miguéis foi um dos nossos mais irrequietos escritores em Nova Iorque, depois da sua vivência na Bélgica e em Lisboa, aonde nasceu e se tornou numa das nossas inevitáveis e louváveis referências. Teresa Martins Marques tinha escrito muitíssimo sobre o autor, como haveria de dirigir a republicação da obra completa de Miguéis no Círculo de Leitores em 1994-1996. Miguéis foi a voz que nunca deixou de viver Portugal até à sua morte em 1980. Viveu a América por inteiro sem nunca por um dia deixar de lembrar Portugal, especialmente a sua Lisboa de nascença e das suas obsessões quase psiquiátricas, o que também fez dele o escritor genial que sempre foi. Teresa Martins Marques inclui aqui todos os pormenores e credenciais académicas da sua vida dentro e fora do país natal.

    A sua relação com as suas origens, no entanto, tal como é abordada nesta suprema biografia, nunca deixou que convivesse como exilado naquela grande metrópole, em parte determinada pelas suas ideias políticas ante o Estado Novo. Dedicou-se a intervir quase todos esses anos com esclarecimentos e opiniões entre os nossos próprios imigrantes na Nova Inglaterra ali por perto, escreveu nos jornais das nossas comunidades circundantes, e foi o primeiro grande escritor que retratou a vida dos que haviam escolhido o longe para sua a sobrevivência, como nos contos Gente da Terceira Classe, assim como na maior parte da sua própria ficção, aludindo não ao estatuto de outros imigrantes mas ao modo marítimo nos barcos em que tinham lá chegado. Miguéis, para além do que aqui já foi dito, pouco conviveria com essa sua gente na imigração americana, que tanto poderiam ser portugueses ou luso-americanos e outros das mais diversas geografias que ainda não eram perseguidos e mal-tratados Nos Estados Unidos como hoje. Nunca se tratou da sua ideologia política, mas sim da sua profunda humanidade e cumplicidade, por assim dizer. Casado, mas sempre num quotidiano solitário, sempre só ou com uma neta a passear-se na no Central Park, e nas outras ruas citadinas da maior ebulição mundial. Nova Iorque passou durante de mais de 30 anos a ser a sua residência permanente. Portugal era a pátria que tanto o desgostava como o comovia. As suas conversas com Maria de Sousa eram sobre o seu estado de vida binária, como que a dizer: nem de cá nem de lá, ou melhor de outras referências, verdadeiramente multinacionais, para além de esporádicas visitas ao nosso país.

    As minhas atitudes públicas prejudicaram – diz Miguéis à sua interlocutora em Nova Iorque – o meu desenvolvimento profissional e literário. À parte ocasionais convites para conferências, sobretudo em institutos hispânicos, senti-me alheado dos departamentos das universidades que, apesar de não me atraírem então grandemente, seriam o lugar natural para o meu avanço literário. Pensei muito sobre tudo isso. Vejo-o quando leio manuscritos desse tempo. Tenho aqui um, datado de 12 de Setembro de 1945”.

    A prosa contundente de Teresa Martins Marques é, como que num outro “romance” de um escritor/a maior, tal como foi José Rodrigues Miguéis. A sua voz mistura-se nestas brilhantes páginas com outras visões da sua própria vida, ora recebendo palavras simpáticas ou compreensíveis, ora reparando e por vezes testemunhando a sua instabilidade interior, a saudade do nada e de tudo, desde a casa e ruas do seu nascimento e da sua infância aos que com ele anos depois o contactavam regularmente sobre livros e a sua publicação em Lisboa, com José Saramago como interlocutor e colaborador direto na sua editora da época. A autora desta biografia leva o leitor fascinado de página em página, recordando os títulos de toda a sua grandiosa obra, desafiando tanto os que já o tinham lido mas levando-nos a outras interpretações, desafiando os que tudo isto desconheciam a uma outra redescoberta. Teresa Martins Marques relembra-nos que Miguéis, na sua própria ficção, era o seu primeiro “biógrafo”. Tudo o que tinha vivido e viveria acabaria por ser, insinuado ou redito diretamente noutros dos seus livros, como Um Homem Sorri à Morte Com Meia Cara, que viria a ser traduzido por George Monteiro sob o título A Man Smiles At Death With Half A Face. É um exemplo perfeito desta capacidade autobiográfica e dos seus momentos mais angustiantes.

    Teresa Martins Marques combina nesta prosa a sua quase incrível capacidade de juntar a ensaísta à ficcionista de A Mulher que Venceu Don Juan e, mais recentemente, Não Matarás. A obra presente de Teresa Martins Marques sobre José Rodrigues Miguéis, repita-se, ao quebrar com todos os cânones biográficos, apresenta-nos um livro absolutamente original e de leitura compulsiva a qualquer leitor dedicado à grande literatura do mundo, à literatura do autor biografado e a si própria, um feito literário nunca escrito entre nós.

Nos Passos De José Rodrigues Miguéis foi prefaciado, com toda a justiça e propriedade, por Onésimo Teotónio Almeida, que convidou José Rodrigues Miguéis três vezes para conferenciar sobre a sua própria obra na Brown University, o que ele sempre rejeitou, não por falta de competência – nem de vontade, creio eu – mas sim pela sua humildade e não reconhecimento próprio da sua grandeza dentro e fora dos Estados Unidos. Que hoje, em Portugal, este autor esteja mais ou menos esquecido, é quase inacreditável para quem ainda sabe do que significa para um pequeno país a sua melhor, a sua grande literatura.

    A Teresa Martins Marques mais um obrigado, assim como à Âncora editora, que teve a coragem e a dignidade de publicar este livro, finalmente devolvendo-nos o grande autor às novas gerações e a muitos dos que aparentemente já o haviam esquecido.

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Teresa Martins Marques, Nos Passos De José Rodrigues Miguéis: Uma Biografia Como Um Romance (prefácio de Onésimo Teotónio Almeida), Âncora editora, Lisboa, 2025.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 28 de novembro de 2025.

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