sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Ricardo Barros entre a ficção e as suas memórias


Há vinte e quatro anos afastei-me das águas frias de Leixões, rumando a São Miguel…

Ricardo Barros, Árvore Anciã


    Eis aqui uma das metáforas mais significantes – “árvore anciã” – quando nos lembramos das nossas origens e da saudade dos que nos foram morrendo mas nunca esquecidos. Ainda hoje quando me lembro da casa dos meus pais, é precisamente de uma dessas árvores menores que eu trepava no nosso jardim e me escondia dos meus amigos e colegas da escola primária nas Fontinhas, desafiando com pouca coragem quem passava em frente e me tinha ora aborrecido ora demonstrando toda a amizade, tudo o que se torna doce e eterno. Ler este livro de Ricardo Barros, natural de Matosinhos, trouxe-me de volta o que agora só existe na minha imaginação, que poderá estar um tanto distorcida mas que para mim, como para o autor deste belo livro, são as lembranças que nos dão certa “identidade” até ao fim, que definem a nossa pessoa por entre toda uma caminhada ao longe enquanto tentamos, só tentamos, ser igualmente parte do nosso mais íntimo e verdadeiro ser. Este é o primeiro livro do autor, mas parece que ele sempre escreveu mesmo que só agora publique com a dúvida natural sobre sua prosa, ou de como seria lido por desconhecidos leitores. Não vou reproduzir nesta linhas a sua biografia, basta dizer que ele é um artista plástico formado em Artes Visuais pela Escola Superior de Artes e Design, presente nos últimos anos em exposições um pouco por toda a parte, e atualmente professor nesta área na Escola Secundária Antero de Quental aqui em Ponta Delgada.

    Esta nota inicial tem a sua razão de ser. Um pintor de quadros e artista de design tem em si necessariamente o que também muito interessa à grande escrita: o sentido do pormenor, que por mais escondido que esteja nas suas palavras torna a arte literária o que poderiam ser apenas palavras de significado avulso, uma mera redação de memórias ou notas para escrita futura. O que acontece nestas páginas é bem diferente e com impacto inesquecível no leitor. Pode o autor chamar contos a Árvore Anciã, mas uma leitura sequencial dá-nos a verdadeira natureza da sua narrativa, que é completa de capítulo em capítulo como um romance na sua evolução da primeira à última página. Ricardo Barros é o narrador na primeira pessoa no que poderemos, com toda segurança, considerar memórias e ficção – a memória é sempre uma reinvenção, quer o próprio autor se conta disso ou não. Está ainda entre esta espécie do que Vladimir Nabokov intitulou um dos seus livros Speak Memory/Fala Memória, o juntar do passado nas penumbras de certo esquecimento agora tornado de novo “realidade” na criatividade das palavras que em conjunto devolvem ao escritor e ao seu leitor um outro mundo inteiro, uma outra vida a um tempo estranha e familiar. A literatura dos nossos dias demarca-se por esta liberdade de géneros linguísticos, temáticos e metafóricos interligados.


    Á
rvore Anciã
faz-me lembrar muita outra literatura, especialmente a norte-americana. No centro são sempre as nossas famílias ancestrais e os descendentes das nossas vivências na terra-pátria, aldeia, vila ou cidade, como é o caso de Ricardo Barros em Matosinhos, e, uma vez mais, há alguns anos em São Miguel, aonde se reencontra consigo próprio enquanto vão para o além os seus mais queridos, os que o formaram como jovem e homem adulto. Relembra-os, todos estes os seus anos de infância e juventude, os mais velhos até aos dias de hoje, os momentos que na altura poderão ter passado como banais ou de meras ocasiões no dia a dia. A memória “recria-os” eventualmente dando lugar ao sentido mais profundo da sua atual existência, a sua mente clara e sã conjuga-se com estados quase psiquiátricos por sentidas culpas diversas, por querer que o passado não o foi, tudo o que determina a sua presença nos seus dias em ilha, no meio de um mar de distâncias que assim mesmo se assemelha ao das suas origens no continente natal, nas ruas da sua alegria e aventuras. Trata-se aqui de uma prosa que devo chamar de calma e também de dúvida e de certa insegurança natural de quem nunca deixa de sentir de ser um outro, quer perante quem convive e ama quer perante os que lhe falam em linguagens de imediato reconhecidas mas sempre um tanto estranhas. O que ele escreve sobre os da sua atualidade açoriana eu poderia escrever sobre a minha. Cada ilha açoriana, disse-me um dia Dias de Melo, é um “continente”, e cada uma delas cultiva a sua própria ideia do mundo, a sua própria linguagem e modos de ser e estar.

    Acautele-se! – sussurra-me um colega, sentado ao lado, pousando a mão no meu ombro. Os micaelenses – escreve o autor já a findar a sua narrativa – são exímios criadores de mitos. Não sabia? Ah, pois são. Tratam-se como deuses e reduzem a pó quem ousa rivalizar.

    Sempre soube que em pequenas comunidades o endeusamento mútuo é uma prática vulgar. Mas outra coisa era ouvir tal confissão da boca de um açoriano. Isso, sim, deixou-me perplexo”.


    C
omo eu conheço isto em todas as nossas ilhas. É, no entanto, em qualquer
uma dessas ilhas que nos sentimos em casa. Ricardo Barros há muito que faz parte destes criadores de mitos, daquilo que alguns cientistas sociais já chamam a “genética da comunidade”. A beleza da literatura raramente nasce da realidade, seja isso o que for. Nasce das perceções que cada escritor desenvolve do modo mais subjetivo dos lugares de nascença e dos que escolhe para viver, por vontade ou circunstâncias de vida, e toda a sua arte pictórica ou escrita não pode fugir a uma mente plena de memórias ou experiências vividas em direto. No que por vezes nos parece uma mera condição pessoal pode, em primeiro ou segundo lugar, uma questão de ver e saber ouvir as vozes que nos condicionam em tudo na vida quotidiana. É disso e nisso que se desenvolve a desusada narrativa de Árvore Anciã, numa linguagem que escorre da clareza do pensamento e dessas visões memorizadas dos começas da nossas vidas, ou do mesmo modo das vivências em geografias-outras que aos poucos passam a ser nossas.

    Esta narrativa de Ricardo Barros é feita tanto de um certo realismo, passe o paradoxo, como de metáforas de uma vida sempre em ebulição e em busca da difícil tranquilidade interior, solitária, mesmo que em companhia de quem se ama e nos ama. Há aqui a dada altura a imagem aterrorizadora de um cargueiro afundado com a proa à superfície do mar à beira de Matosinhos. Brilhante na sua descrição, e ainda mais nos olhos tristes dos que o olham na saudade de desconhecidos, no medo que do inesperado, na consciência de que ninguém está salvo de afundar em terra ou no mar. Na sua chegada à ilha o autor olha o ilhéu de São Roque na sua altivez natural a mirar um além indiferente à sorte de todos. O destino em silêncio ou em tempestade, o princípio e o fim do mundo em pedra e água.

    Como num dos capítulos de Árvore Anciã, nem sempre o filho pródigo regressa a casa – e nem a felicidade ou tragédia são certas nas partidas e muito menos nos regressos.

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Ricardo Barros, Árvore Anciã/Contos (prefácio de Joaquim Queirós), Ponta Delgada, Letras Lavadas edições, 2025.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 21 de novembro de 2025

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