sexta-feira, 14 de novembro de 2025

De Pedro Almeida Maia e dos nossos outros condenados

                                                                           


                     Foi ali que o jovem micaelense desabrochou. Era a sua deixa.

Pedro Almeida Maia, Condenação


    Comecemos pelo essencial que contextualiza este romance de Pedro Almeida Maia. Condenação:Uma História De Um Gangster Açoriano na América é o volume que encerra a sua trilogia de uma outra imigração nossa ao longo de décadas, ou nos últimos dois séculos, os anos da mais numerosa fuga açoriana e procura de um outro destino, que não, uma vez mais, a condenação da miséria e da descarada opressão: Ilha-América (2020) e A Escrava Açoriana (2022). Antes de mais, uma observação também relevante. Por entre a história constante de um abandono das ilhas açorianas por pura necessidade, de seguida quase sempre noticiadas acerca da suposta prosperidade e felicidade dos que se reinventaram nos novos mundos, Almeida Maia atreveu-se, por assim dizer, a ficcionar essas outras experiências nos Estados Unidos e no Brasil. Basta recordar a aventura real do jovem que foge para o outro lado do mar a oeste metido no vão das rodas de um avião a partir de Santa Maria, um feito devidamente documentado, mas de quem mais nada sabemos, e da jovem de Ponta Delgada que ruma ao Brasil ao encontro do sonho, mas acaba por sofrer a indignidade de uma sociedade que ainda quereria viver todo o seu passado de esclavagismo sexual, esquecendo o que temos por ser a dignidade humana. Não se pode dar pormenores de uma grandiosa e desusada trilogia como esta, só insinuar a estilística e temáticas absolutamente originais na literatura portuguesa dos Açores. Almeida Maia é esse escritor de ficção que investiga os factos, e depois imagina, em parte, o resto das suas histórias. Desfaz mitos, desfaz a ideia de sermos os trabalhadores silenciosos, cautelosos, sofredores. É o outro lado da nossa nossa suposta epopeia – a anti-epopeia da vida e do destino nas Américas do nosso sonho – a América também de alguns dos nossos desconhecidos sofrimentos. Condenação completa a nossa suposta odisseia, como só pode toda a grande arte literária . Se as nossas ilhas têm alguns nomes de santos, são ainda mais, foram também, as ilhas dos demónios que nos exploravam ou simplesmente nos ignoravam e nos abandonavam.

    Estamos aqui nos anos 20/30, os da gritante hipocrisia da chamada “lei seca” e do crime que ia muito além da proibição da venda ou consumo de bebidas alcoólicas nos EUA. Salvador Silver nasceu em Fall River, depois vivia em Providence com a mãe e as irmãs que lhe restavam, sempre irrequieto e tornado, pois claro, um alcoólico. Depressa se torna conhecido de mafiosos italo-americanos, com tudo o que isso implica em termos de sobrevivência a qualquer custo. Com ferros me matas – não é assim entre nós nalguma arte? – com ferros morres. Um jovem de origem açoriana curva-se sem querer com um dos mais famosos casos de injustiça norte americana – o caso muito documentado, em livros e cinema, de Sacco e Vanzetti, os dois notórios anarquistas italianos acusados injustamente de um homicídio que nunca cometeram, e sobre quem já se tem escrito muitos livros e realizado alguns filmes.

    Sigamos com a prosa de Pedro Almeida Maia. O romance está estruturado a partir da inevitável influência dos trilher americanos, cada frase a insinuar a eventual desmontagem dos mistérios da narrativa, da sorte de cada personagem. Pelo meio temos a vida diária e humilde da família de Salvador Silver, a sobrevivência pobre que tudo havia prometido menos a tragédia que assolava alguns dos imigrantes cujos sonhos se tornariam o absoluto contrário. Um filho desintegrado naquela sociedade não era assim tão comum, mas ainda hoje acontece o desterro permanente nas ilhas ou noutras partes do país que desconhecem. A dignidade do infeliz protagonista de Condenação é que tenta corajosamente salvar sem sucesso da cadeira elétrica os dois anarquistas, sem ele próprio fugir à sorte de uma morte precoce pelo mesmo processo numa prisão sem apelo ou qualquer perdão, mesmo todos sabendo dos seus desvios mentais, dos seus vícios sem aparente solução.

    Para além de toda esta história estar ligada a esse famoso caso de injustiça e preconceitos racistas e ideológicos, há algo mais de grande importância para a nossa própria história da imigração. Na grandeza desta trilogia reside um ato literário inusitado. Pedro Almeida Maia conhece muito bem a grande epopeia dos açorianos que atravessaram o Atlântico desde o século VIII, repita-se sem apologia, em fuga à fome e à indiferença deste que é o nosso país natal. Os relatos de que lá nos chegavam eram de “sucesso”, muitas vezes falso, raramente versando qualquer tragédia ou sequer infelicidade. Só que havia a outra, que pensamos ser uma minoria, cuja sorte, ou audácia rebelde, nunca deixou de existir. A trilogia única de Pedro Almeida Maia conta-nos esse outro lado da mesma moeda, em linguagens que se fundamentam, repito, em investigações aturadas – as investigações possíveis num longo tempo ido em vários continentes ou países, ou feitos raros do nosso destino. Ficção, por certo, mas que mistura a documentação sistemática com a profunda imaginação de um ficcionista que agora se coloca ao lado de outros escritores do mesmo género entre nós aqui nos Açores.

    Condenação: A História De Um Gangster Açoriano na América segue apenas a vida de uma família açoriana de origem micaelense em mais de 300 páginas de fôlego e pormenor. Seria difícil entrar pelos meandros da vasta maioria que construiu para si um futuro simultaneamente de alegria e felicidade. A saudade da terra natal está aqui em poucas palavras. É uma narrativa centrada nessa vida pouco comum entre nós – mas real – na terra do nosso histórico acolhimento. Distingue-se, por entre os meandros de uma América que tudo oferece, e tudo pode retirar quando as suas regras são quebradas, quando a sua dureza ultrapassa a força de alguns menos aptos a enfrentar os seus sacrifícios ante a dureza das antigas fábricas ou campos, tudo adquirido legitimamente ou pelo crime, a ambígua conquista no grande país. A escrita deste autor não faz julgamentos, e muito menos contextualiza valores ou a ideologia do “sucesso” ou do “falhanço”. Conta uma história fascinante de página em página – essa América feita de transgressão e violência, da criminalidade que desde o seu início nunca esteve ausente, faz parte íntima dos que nunca aceitaram a escravidão que hoje se espalha pelo resto do mundo, que hoje todos nós fazemos por ignorar ou tolerar.

    Salvador Silver é um “perdedor”, um outro fraco que se auto-justifica com a falta de sorte familiar, particularmente com a precoce morte do pai num país em que o trabalho insano era o quotidiano essencial a um mínimo de existência respeitável.

    Nenhum ou pouquíssimos leitores se irão rever nas suas opções de vida sem futuro. Terá de aceitar numa obra de arte literária que o “outro” poderá ser cada um de nós, terá de aceitar que a humanidade que desejamos também não tem geografia, como se sabe. Não somos diferentes em nada, nem para o bem nem para o mal.

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Pedro Almeida Maia, Condenação: Uma História De Um Gangster Açoriano na América, Cultura Editora, Lisboa, 2025.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 14 de novembro de 2025


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