Michael Gouveia, O Herdeiro
L’Hhéritie/O Herdeiro é o primeiro romance de Michael Gouveia, ainda numa idade que eu desejaria fosse a minha, e segue um outro livro de poesia intitulado Les exercices somnambules/Os Exercícios Sonâmbulos, ambos traduzidos por Leonor Simas-Almeida. Vou começar pelo que é o meu mais do que óbvio ou que tenha sido a minha experiência de literatura em língua inglesa, em todos os géneros, de luso-descendentes. Tenho lido muito ao longo dos anos os norte-americanos, tanto dos Estados Unidos como um pouco menos de Canadá, os meus dois países de referência naquele continente, as outras “pátrias” nossas. Como não domino o francês de Michael Gouveia, natural do Quebeque, tive de o ler em língua portuguesa, e na experiência literária nas versões da Leonor. Não foi só uma outra descoberta, que sempre se torna íntima, foi uma redescoberta de que eu nunca estive só. Michael Gouveia nasceu, uma vez mais, no Canadá. Eu emigrei para a Califórnia com 13 anos de idade. Quando ele fala, através do seu narrador de nome João, tudo o que ele chama a “ambiguidade da identidade” toca-me fundo e de modo emocional. Só que não somos “ambíguos”, abraçamos as identidades geográficas, culturais e linguísticas que sempre foram ou passaram a ser as nossas. O Herdeiro não me é um romance sobre o “outro”, é quase uma autobiografia minha, o reencontro com os anos da dor e da alegria entre dois povos que tanto conhecíamos como desconhecíamos, ou eles próprios pretendiam essa distância inexistente. Onésimo T. Almeida prefaciou brilhantemente a edição portuguesa, e fala da sua descoberta de Michael Gouveia, mesmo antes de ler os seus dois livros aqui mencionados. Escreveu-me a dizer que sabia que eu muito ia gostar destes dois livros. Descoberta? Foi pura e simplesmente “o reconhecimento” da minha própria pessoa. Já li muito desses “reconhecimentos”. Como este não me lembro de outro que me tocasse tão intimamente, tão literariamente.
Michael Gouveia viveu numa pequena cidade que se chama Laval, nos arredores de Montreal, aonde nasceu, e foi obrigado a frequentar uma escola secundária de reputação, aí vai de novo a palavra, “ambígua”. Sobreviveu a tudo isso, e sempre com a alegria da sua comunidade lusa, festas, encontros outros, língua portuguesa, bailes e vivência de alegria entre os seus compatriotas de um país, de uma ilha que o habitava mesmo sem ele a conhecer e por entre o sonho de uma viagem aos Açores que parecia nunca chegar. Ficava só com os seus livros, com a sua determinação, com os seus sonhos de uma vida que fosse além do duro trabalho dos seus pais, sem que eles nunca se queixassem da sua sorte ou infortuna num país que lhes passou a ser tão familiar como estranho, quando as coisas corriam menos bem. A vida de João oscilava entre o amor de casa e as poucas amizades no exterior. É-me especialmente familiar uma das suas grandes amizades com um colega de origem libanesa, como as minhas oscilavam entre anglo-americanos e estudantes estrangeiros privilegiados que vinham para as faculdades norte-americanas, e com passados que pouco se diferenciavam de qualquer outro imigrante que tinha conseguido quebrar certas barreiras norte-americanas. Nos braços ou mãos de João, sempre os livros, na sua mente sempre a saudade de uma ilha que nunca tinha visto, a alma dividida pela sua nascença e experiência quotidiana em casa e o passado de uns pais que lhe incutiam os valores distantes das ilhas atlânticas. A sua inteligência e imaginação num conflito perpétuo. Quem sou, de onde vim ou sou originário, quem são os meus que ficam tão longe e em que a saudade se torna quase uma obsessão que parece nunca ser resolvida? Quando entra numa universidade, opta por um curso nas literaturas, o que faz todo o sentido: quem sou eu, quem são os outros de perto e de longe, como é que eu nasci aqui, e como é que tenho tantas saudades do que nunca conheci em pessoa?
A tradução de Leonor Simas-Almeida torna o romance de língua francesa num romance de todo português. Não creio, neste caso, que seja uma prosa reinventada pela proximidade das duas línguas românicas. Só que nem todos têm a capacidade de verter os mais originais passos dessa prosa original no que nos parece um romance de todo nosso. Linear, simples, e dando, acima de tudo, espaço aos mais contundentes passos complexos de uma grande narrativa ficcional. O Herdeiro não poderia deixar de ser traduzido e publicado no nosso país. Não são as palavras de um narrador de Quebeque: é a prosa da nossa história multisecular, Portugal na sua tragédia e na sua salvação, Portugal no seu melhor, nunca desfazendo, muito pelo contrário, nos heróis que ficaram e sofreram durante séculos um estado oscilante nas suas medidas – um grande povo que ora insiste em ficar ou então vota com os pés. Até hoje.
“O meu país – diz o narrador quase no início do romance, com toda a ironia e sentido de dor – não é um país, é uma ilha solitária. Uma ilha reservada ao turismo da saudade. Uma ilha para os órfãos do mar. E eu, quem sou? Sou o filho dos meus pais, prolongo o gesto de imigrar. Não sei onde começo nem onde acabo. Não sou português, não sou quebequense, sou ambos ao mesmo tempo e não sou nenhum deles. Tenho em mim todas as heranças e todas as incertezas. Sou um órfão do mar que navega de uma identidade para outra. Sou um vulcão que se julgava extinto, mas que em boa verdade não ardeu ainda pela primeira vez. A minha identidade contém menos certezas do que potencialidades, aí têm!”
Aí têm? O narrador diz tudo e algo muito mais. Aí temos ou estamos todos com quase mil anos de existência como nação, dentro e fora do seu território, pátrio e madrasta ou padrasto, que nunca consegue o seu futuro, o vulcão metafórico sempre por explodir. Michael Gouveia deveria saber, tenho quase a certeza que sabe, que todos nós sentimos a verdade desta ficção. Quem fala aqui? O narrador João que os quebequenses nunca sabem pronunciar corretamente, ao contrário deste leitor aqui em São Miguel, natural da Ilha Terceira, ex-ou nunca-ex-imigrante na Califórnia, no Vale de São Joaquim e na grande Los Angeles e Orange County? Como é possível dizer-me tudo isto assim tão claramente? Como é que alguém escreve o romance que nunca fui e nem serei capaz de escrever devido precisamente à “ambiguidade da identidade”?
O Herdeiro é todo ele esta prosa de uma beleza quase indescritível. Dirão alguns leitores que não. Entenderei. Michael Gouveia faz parte de um grupo de escritores luso-descendentes na América do Norte que ainda não receberam entre nós o reconhecimento que merecem – são eles, na verdade, pelo menos na minha verdade – que escrevem Portugal no seu todo. O nosso país nunca percebeu a sua verdadeira extensão cultural e linguística, ou mesmo, sim, simbolicamente territorial, em quase todo o mundo. Como eu nunca entendi o amor – disse amor – que muitos povos cultivam por nós. Uma das metáforas principais aqui de Michael Gouveia é a história, imaginem, da nossa seleção futebolística no século presente, a partir dos anos em que temos sido notícia de ganhadores e perdedores. A intelectualidade literária, toda ela, perdeu a sua centralidade. Resta-nos agora, e só, os nossos que lá fora cultivam a afinidade lusa por este e outros meios. Mesmo assim, e apesar do espírito do tempo global, a nossa literatura em português e noutras línguas mantém a integridade do nosso pequeno território, a grandeza que nem a nossa relativa pobreza esmaga.
___
Michael Gouveia, O Herdeiro (tradução de Leonor Simas-Almeida e prefácio de Onésimo T. Almeida) Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2025.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, de 7 de novembro de 2025



Sem comentários:
Enviar um comentário