sexta-feira, 31 de outubro de 2025

De Han Kang e de uma obra suprema

 


Tens consciência de que, individualmente, não tens capacidade nem para atos de coragem nem de força?

Han Kang, Atos Humanos


    Muitos leitores saberão que Han Kang é uma escritora, relativamente nova em idade, que foi galardoada com o Prémio Nobel 2024, e pouco antes receberia o mais prestigiado prémio britânico, Man Booker International Prize pelo seu primeiro romance com o simples título A Vegetariana (2016, na versão portuguesa), assim como ficou na lista dos 10 melhores livros do New York Times no ano da saída em inglês). Tenho o orgulho de ter sido um dos primeiros recenseadores portugueses a escrever sobre um romance com um título tão improvável como esse, e depois de ter sido incluído na capa de edições portuguesas da Dom Quixote/LeYa junto a outros críticos internacionais e nacionais também da edição já pós-Nobel, uma vez mais colocando o Açoriano Oriental em tão prestigiada companhia. Digo isto por ter estado em silêncio já há algum tempo, mas sem nunca me desviar da atenção nem deste e nem de livros açorianos e de outras proveniências. Acabei de ler outro romance da mesma autora, agora com o título não dramático mas de todo significante: sobre um tema uma vez mais sul-coreano com alcance, sim, universalista. Perdoem a palavra tão usada e abusada, e que ainda ninguém definiu em termos claros, e que outros tantos rejeitam como indesejável pela rejeição que faz da literatura menos conhecida e localizada entre grupos nacionais ou minoritários que continuamos a desconhecer ou a considerar como parte da nossa herança sem fronteiras ou de línguas por quase todos nós, e em todos os países, desconhecidas. Só que as obras de certas línguas conseguem ultrapassar, e outras nunca. Atos Humanos aí está na 4ª edição da LeYa, após o grande prémio internacional e cobiçado por muitos outros autores e com o diário micaelense outra vez entre as maiores vozes um pouco de toda a parte: um romance, afirma o The Guardian, “lírico e brutal”.

    Esta é uma recensão mais ou menos estranha. Tenho que mencionar os tradutores de Han Kang em Portugal. Não traduzem do original coreano. Traduzem do inglês. Acontece que também acabei de ler O Dom Das Línguas, um diálogo em textos de J. M. Coetzee, o genial romancista sul-africano de tradição africânder e inglesa com a grande escritora argentina Mariana Dimópulus. Pois. A tradução e os seus defeitos e virtudes. Sem as traduções possíveis, no entanto, não conheceríamos nada da tradição ocidental, e nada de mais ninguém. Ser fiel ao original implica dois fatores: a ética – não fugir às significações originais, e logo depois tem de ter a criatividade de dizer nas nossas outras línguas o que diz o romance, o poema, ou outro género literário. As traduções portuguesas de Han Kang são feitas do inglês. Perdemos alguma coisa? Talvez. A semântica é complicada de língua para língua. Sinal de uma grande tradução, seja ela na primeira ou segundas línguas. Quando lemos o livro em português e nos esquecemos que foi escrito numa outra língua e nos dá o prazer do texto, algo de grandeza literária acontece. Pode o romance ter sido reinventado. Não interessa mais ao leitor. É um grande romance. Parabéns, neste caso, a Maria do Carmo Figueira pela tradução de Atos Humanos. Lemo-la, repito, com o maior prazer do texto. A tradução nada tem de “ciência”, aliás já como o dizia o falecido Gregory Rabassa, talvez o maior tradutor de sempre norte-americano.

    

    Atos Humanos está fundamentado num acontecimento de grande opressão sul-coreana no princípio dos anos 80, numa cidade de rebeldes no extremo sul daquele país, uma minoria perseguida e sujeita à maior violência. Estava no poder o militar Park Chung-hee. De quando em quando, como ainda há poucos meses, foi declarado um estado de sítio, sempre com a desculpa da ameaça da Coreia do Norte. Não interessa aqui os meandros mentais ou os argumentos para o autoritarismo do sul-coreano. A violência contra jovens escolares, universitários e dos trabalhadores acontece com alguma frequência. Os narradores de Hang Kang confundem-se com a voz demasiado humana e de protesto sem tréguas com a própria autora de Atos Humanos, ou, melhor, aa sua voz sobre os atos desumanos. Os vários narradores contam da sua dor, da sua tortura, e sobretudo na sua crença dos que os defendem, da decência dos seus vizinhos, dos seus amigos, dos seus companheiros em luta pela liberdade, pelo seu amor ao próximo.

    


    A
s linguagens de Han Kang, mesmo da genial tradutora portuguesa, é de uma beleza extraordinária. Isto não é só prosa, é poesia pura – tanto quando fala de amor ou de violência, tanto quando fala do melhor e do pior de nós. A versão portuguesa inclui um prefácio da tradutora da edição inglesa. Situa o os nossos leitores na realidade histórica daqueles momentos no nosso aliado da Coreia do Sul. Conhecemos os contributos da tecnologia da Coreia do Sul, de que tanto desfrutamos nas nossas casas ao longe. Querida sociedade, maldita ou condenada geografia? O problema é que sofremos do mesmo. Bem conta disso tem dado a nossa própria literatura, e nunca só a do nosso neo-realismo.

    Vistos de perto, os seus olhos abertos e desprotegidos pareciam inexplicavelmente marcados pelo medo, e as rugas à volta do pescoço estavam mais vincadas do que seria de esperar num homem daquela idade. Eun-sook deu consigo a pensar no que levaria uma pessoa tão tímida e frágil a manter reações estreitas com escritores que estavam sob e mira das autoridades; a insistir em publicar precisamente os livros que mais chamavam a atenção dos censores”.

    Atos Humanos não é só “brutal”. É esse o outro poema da nossa humanidade, do outro lado do nosso coração e da nossa consciência. A literatura não muda o mundo, nem sequer a nossa sociedade? Muda, se muda, a consciência de uma minoria leitora, ou pelo menos o modo como vemos o resto de mundo, por mais estranho que nos pareça. Só assim entendemos as outras linguagens do longe, que em tradução nos ficam não só próximas mas nossas. É isso que a autora Han Kang nos traz através dos seus grandes tradutores e tradutoras. Sem os seus autores e tradutoras a nossa tradição nunca tinha chegado do longo passado e do presente. Não basta ler as nossas próprias línguas, mas sim algumas das artes de todo o planeta. A maior parte das literaturas, da poesia, da arte em geral raramente nos chega desta maneira, com esta força, com esta beleza. Quando nos chega, baixemos a cabeça num gesto de agradecimento, esqueçamos a “nacionalidade” e outros sentimentos menores. O mundo é belo e bruto. Como diriam outros. Quem tudo isto esquece, como muitos outros já o escreveram, fica condenado a viver a mesma tragédia – ou a mesma alegria que sentimos todos juntos.

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Han Kang, Atos Humanos (tradução de Maria do Carmo Figueira), Dom Quixote/LeYa (4ª edição), Lisboa, 2025.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 31 de outubro de 2025





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