sair da noite nunca foi tarefa de lidar sereno.
Emanuel Jorge Botelho, Pregos De Cruz
Emanuel Jorge Botelho é o nosso mais singular poeta, quer nas palavras que escreve, mas sobretudo nas que não escreve. A brevidade dos seus versos curtos nos seus poemas são livros inteiros, lindos e ditos pelo nunca é dito. Isto só acontece com os mestres da palavra em qualquer género, neste caso da poesia em tom a um tempo silencioso e gritante. Pregos De Cruz, a sua mais recente poesia publicada (quem sabe o que ele tem na gaveta ou na mente?) é um conjunto supremo do que ele nunca diz. Insinua tudo sobre a sua e nossas vidas simplesmente através das mais variadas formas: pelas dedicatórias que faz aos melhores poetas nacionais e estrangeiros, pelo modo que entra na nossa solidão de vivência ou existência que se poderá considerar inconsequente ou alheia a todos os outros. Só que a leitura atenta, em silêncio ou em voz que se ouça mais ou menos numa espécie de transe passa do que ele pensará ser estritamente pessoal para falar a todos nós, aos seus leitores. Edmund Wilson escreveu um dia que toda a prosa modernista nunca mais poderia escapar aos melhores versos da grande poesia, teria de a incorporar, da encarnar, em frases ou narrativas completas que ou rejeitavam o realismo gasto – “histérico”, diriam ainda outros críticos mais tarde – ou levariam os seus leitores ao êxtase da arte literária, a que nos retrata inevitavelmente ao transpor o pessoal à condição comum de se estar vivo ou de enfrentar a morte num futuro próximo ou a prazo das leis da natureza. Ler Emanuel Jorge Botelho desafia toda a teoria académica da literatura, que só pensa em formas e géneros, e outras banalidades que torna o “ensino” um pouco mais fácil. A grande arte não tem regras nem se dirige a ninguém, o mesmo que dizer dirige-se a nós todos, ou pelo menos a quem vive uma vida “examinada”, pensada sobre os reflexos de amor e tragédia. Ninguém está só, mas são os poetas e outros escritores que nos devolvem a consciência, em modos belos e trágicos, a verdade de estarmos vivos, amor, próprio e pelos outros, entre a solidão, a solidão que precede todos os nossos fins ou inexistência.
Emanuel Jorge Botelho, desculpem as comparações porque grandes poetas nunca devem ser comparados a ninguém, a sua originalidade é um ato muito pessoal, para além da sua admiração por outros. Faz-me lembrar, no entanto, Raymond Carver cujo único livro de poemas que publicou quando recebe a notícia do seu destino, A New Path To The Waterfall. Não o vou citar. Emanuel não terá o mesmo destino. Mas escreve em Pregos De Cruz como se o tivesse lido, o que não acredito. Emanuel Jorge Botelho é o poeta da nossa redenção. Não tem medo, nem tem razões para o ter, mas digo-vos da minha agonia, da nossa agonia. Pregos De Cruz é o poema, uma vez mais, de todos os nossos medos e, de certo modo, da nossa despedida a quem nos ama e sempre nos quis bem. Quando o poeta se fecha na sua redoma, é o seu castigo, e nunca só a sua, é igualmente a nossa pelo que sentimos do que vai nas palavras, nos seus versos. Redenção. Isto é a arte literária no seu melhor, isto é o poeta a transmitir a sua dor quando sabe de um fim, o fim de todos nós. Ler Emanuel Jorge Botelho dói, mas a arte também tem essa virtude: pensa não em mim, pensa em ti e no que te espera, “não perguntes por quem dobram os sinos, dobram por ti”. Dói? Sim, dói. Por entre a dor vem a beleza de estarmos vivos, de sermos quem somos, de ter vivido um tempo e várias geografias, de nos sabermos, outra vez, irmanados com o mundo inteiro. Isto não é só poesia, é um testemunho sobre a humanidade e o que cada um de nós enfrenta ou terá de enfrentar.
sair da noite nunca foi tarefa de lidar sereno.
a alma não dá sustento ao rugido da face,
e não é fácil ter gume para trair a tentação.
no fundo, já nada se acorda,
só se abre os olhos para ficar sentado
num pedaço de luz.
é quando os grilos,
perdidos no silêncio,
nos pedem agasalho
Há a ideia de que um escritor, e muito mais um poeta, é uma pessoa – autor – muita solitária, não faz sentido. Quem escreve para a gaveta ou é inseguro ou sabe que vale pouco. Quando um escritor ou poeta publica o seu ato artístico torna-se, ipso-facto, um gesto de partilha de diálogo com os seus eventuais leitores, é um gesto de aproximação aos outros ou outras, e um gesto de partilha sobre quem somos e como somos. O que o poeta sente muito em termos pessoais – vindo depois o nosso reconhecimento de que ele ou ela não só escreve sobre si, transmiti-nos, mesmo sem o reconhecer, a nossa condição, a nossa existência. Como escreveu Leão Tolstoi: todas as famílias, cada um de nós, se parecem na nossa felicidade, todos nós se parecem na nossa infelicidade. A poesia de Emanuel Jorge Botelho é um ato supremo, um ato de escrita que poderá parecer todo feito de metáforas obscuras e creio que não é essa a sua intenção. Isto é que faz de um grande escritor e poeta na sua grandeza: não te sintas só na tua felicidade ou miséria, nos teus estados de alma. Ele sabe ou pensa que está só a falar de si, mas não é, uma vez mais, assim. Retrata-nos o que preferíamos esquecer ou não ter vivido, não viver. Há uma insinuação contínua na sua poesia, que vem nos espaços em branco dos seus versos, provavelmente na sua própria ideia da solidão, alegrias e sofrimento. O que escreve, em cada uma das suas poesias, é absolutamente pessoal. Não é. A arte, em qualquer um dos seus géneros não valeria nada nem a escrita se não falasse com os seus interlocutores. A teoria da literatura também vale muito pouco. A sua perceção dos dias e de quem ama ou não é de todos. O poema dedicado à sua mulher de sempre (“para a minha Lorena”), é o poema a todas as mulheres que nos foi dado amar: é tudo muito simples;/digo meu amor,/ e tudo sara no meu corpo./o meu medo sabe de cor o teu nome,/e gosta da tua voz.
Emanuel Jorge Botelho tem andado nos últimos anos ausente de muitos eventos literários, para além de um ou outro lançamento de livros em Ponta Delgada. Antecede-nos na sua atividade literária em nome de outros, chamando aos seus leitores a atenção para a escrita que partia dos Açores ou de açorianos. Ele nunca fez questão de falar em literatura açoriana, para ele era a literatura portuguesa em qualquer geografia nacional. Para quem hoje o considera um “elitista”, seja quem for, está muito errado. Ele sempre quis dar voz a quem voz ainda não tinha no nosso país, e todos os que trabalhou na nossa imprensa generalista são hoje nomes muito conhecidos e respeitados, na literatura propriamente dita e no jornalismo correspondente. Só uns poucos exemplos da sua atividade literária na projeção quanto à dos seus colegas. No Correio dos Açores coordenou no suplemento Raiz com Osvaldo Cabral; trabalhou com Eduardo Bettencourt Pinto na revista Aresta, hoje uma referência para quem lê e estuda a nossa escrita em todos os géneros. Colaborou com Henrique Santos Barros no suplemento do jornal Açores “Contexto”. Tudo isto inclui ainda a sua co-autoria com o Álamo Oliveira no livro de poemas Nem Mais Que Fogo, e também colaborou com poesia no “Quarto Crescente” do extinto diário A União de Angra do Heroísmo.
A obra de Emanuel Jorge Botelho é extensa, e está ao alcance de quem a quer consultar por vários meios. É um dos maiores poetas portugueses da nossa época, desde meados do século passado até hoje. Tenho a honra de já o ter entrevistado há muitos anos, algo de que ele parece resistir nestes últimos anos, mesmo que esteja sempre aberto ao diálogo com os seus leitores. A ribalta não lhe interessa minimamente. Fica-lhe bem. Alguns dos seus colegas e amigos mais chegados já não estão entre nós, mas ele continua bem vivo e atuante.
Que os mais novos, e algo arrogantes, tomem nota. Emanuel Jorge Botelho é, como sempre foi, o nosso poeta de referência e grandeza. O resto virá só com a passagem do tempo e do nosso destino.
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Emanuel Jorge Botelho, Pregos De Cruz, Lisboa, Averno, 2025.
BorderCrosssings do Açoriano Oriental, 15 de agosto de 2025.
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