sexta-feira, 8 de agosto de 2025

De Artur Veríssimo e da sua obra literária

 


A verdade é que pareciam duas personagens acabadas de sair de uma fita antiga ou de um bailinho de Carnaval.

Artur Veríssimo,

O encantador de viúvas e outras histórias


    Artur Veríssimo é um dos nossos mais refinados humoristas na literatura portuguesa com origem nos Açores. O seu mais recente livro de histórias torna-se um autêntico romance de um tempo e de lugar, neste caso de Angra do Heroísmo e arredores, talvez a sua freguesia de São Mateus ali ao lado, sempre conhecida por ser terra de pescadores, a dois metros da cidade património mas cuja história é igualmente interessante. Permitam-me fazer aqui uma observação que numas ilhas muito sensíveis à imaginada grandeza nunca se desfez a grandeza do coração humano, que por natureza sempre universal para além de tudo o mais. Um parênteses aqui: a crítica séria tem sempre de ir além da conversa de café e dos que pretendem ler e não leem, dos que acham que compreendem sem nada compreender. Só que este texto vai além de mim, muito pelo contrário, vem de um dos nossos melhores escritores de ficção, o inevitável e essencial de qualquer literatura de características muito próprias. O “coração humano” de que falava William Faulkner não tem território demarcado, dá uma volta ao mundo de mãos dadas, quer sejam mutuamente reconhecidas ou não. Harold Bloom dizia que até a crítica literária é “memória”. A grande literatura é mais do que tudo isso. É memória, sim, e muito mais, é o registo artístico da nossa universalidade, o que comungamos com todos os outros. Ler Artur Veríssimo é rir de página a página, é reconhecer a nossa inocência, as nossas virtudes e a nossa maldade. Brinca com os nossos desejos supostamente mais perversos mas demasiado humanos, como acentua a profunda humanidade de outros, homens e mulheres.

    

    O encantador de viúvas e outras histórias é um curto mas grande livro sobre as décadas idas e vividas em tempos que a proibição de sermos inteiramente humanos era a lei dos dias e do regime que nos olhava como suspeitos a partir da nossa nascença. Jovens que se amam às escondidas, viúvas que sentiam a falta do carinho e do amor na cama e fora dela, cada personagem um retrato genial de cada um de nós. A sátira nestas páginas é implacável, a ironia e o humor fazem-me lembrar o grande escritor judeu-americano Philip Roth em qualquer um dos seus livros. Interliga a questão da identidade com a humanidade – cada um de nós, necessariamente, obedece à tradição como à sua própria modernidade. Não existem aqui remorsos, só a memória de desejos em tempos idos, só a sociedade sempre hipócrita e santificada. Sexo? Sim. Amor condicionado pelas circunstâncias da traição ou pela natural vivência em solidão. Pela vontade de retribuir o que homens e mulheres de todas idades não tinham porta adentro, ou por jovens a quem negavam o seu direito aos mais naturais desejos e busca de um sentido de vida. Viúvas? Quem não é viúvo da sua própria vida? Artur Veríssimo, pelo nome dos seus protagonistas, revisita uma ilha de silêncios e vida dura. Angra é já hoje uma cidade mítica, mas nunca a sua história tão pacífica como convalescente nas relações humanas. Representa, para além da sua beleza geográfica, a cidade de nós todos, tal como qualquer outra comunidade nossa espalhada no oceano e em vigia constante não só do tempo e dos sismos, mas sobretudo do que ia e vai portas adentro. Estas são as nossas histórias, estas foram as vidas dos nossos progenitores, como serão as nossas de hoje. Uma vez mais: “o coração humano em conflito consigo próprio”.

    

    Saímos todos de um bailinho de Carnaval? Poderá ser uma arte própria da Ilha Terceira, só que toda a vida em toda a parte é um “carnaval”, no “riso” e ainda mais no “choro”. O encantador de viúvas é um livro muito especial, no seu estilo de desprendimento das coisas, na sua linguagem linear, na sua sofisticação de nuances simultaneamente que provocam no leitor tanto o prazer puro da leitura como o levam ao pensamento sobre o passado e o presente. O mundo inteiro é feito de ilhas rodeadas de água ou terra. O mundo inteiro é feito da humanidade a saque na sua privacidade, na sua felicidade ou infelicidade, o mundo inteiro está em busca do seu sentido de vida. O passado poderá não ser conhecido de muitos. A sua existência quotidiana, no entanto, estou em crer, que em nada difere do que esses outros julgam ignorar. O amor e desamor em nada difere do que foi vivido durante a história. Artur Veríssimo sabe disso. Um grande escritor não pode nem deve nunca explicar nada a ninguém. Desenha, tal como um pintor ou um músico, o que a sua sensibilidade sabe ou suspeita sobre a nossa condição. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo narrativo insinua o que vai na alma do escritor, e cada um cada tire as suas conclusões ou interpretações. Não cabe ao escritor explicar mais nada. Como que a dizer: é isto que eu vivi, é isto que testemunhei, é disto que me lembro. Uma vez mais: William Faulkner escreveu que “o passado não está morto, nem sequer é passado”. No andamento das suas narrativas Artur Veríssimo, suspeito, sentia ou sabia o mesmo.

Às vezes, – diz o narrador num certo conto deste livro – viajar é apenas isto: fechar os olhos, sentir no rosto a brisa fresca da tarde e ouvir as histórias que o bracel-da-rocha ou a faia-da-terra escondem. E o miradouro do Pelado pode ser então um chilrear de namorados, um barco a remos ainda com o teu lugar vazio ou a última viagem da baleia-azul...”

    Este passo que cito aqui vem no conto “A última viagem” e traz como epígrafe Viagens na minha terra de Almeida Garrett. Artur Veríssimo está em todas as narrativas atento à literatura do seu país, incluindo Carlos de Oliveira, Camões e Gil Vicente, e ainda a escritores estrangeiros, em que o Marquês de Sade, entre outros, têm presença nas suas epígrafes ou citações. A erudição literária torna-se uma referecência constante na sua escrita. Eis aqui um escritor açoriano que nunca se limita à bruma e às pedras negras das ilhas açorianas. O que cada vez mais se torna cansativo, repetitivo e de todo desnecessário. Por outro lado, presta, sempre, homenagem a outros escritores nossos, como Álamo Oliveira, que tem tudo a ver ao longe com estas páginas. Tudo isto acresce à grandeza literária de Artur Veríssimo. Já tudo isto tinha ele manifestado em romances anteriores como Uma Pedra no Sapato, Rapariga Celta Sentada Num Javali, e ainda A Felicidade das Coisas Imperfeitas.

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Artur Veríssimo, O encantador de viúvas e outras histórias, Edições Húmus, Vila Nova Nova de Famalicão, 2025.


BorderCrossings do Açoriano Oriental, 8 de agosto de 2025


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