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| Manuel Leal | 
A sua escrita, acessível mas exigente em termos intelectuais, constrói pontes entre experiências e tradições que muitos julgariam distantes. Com uma vida dividida entre os Açores e os Estados Unidos, ancorada em afetos familiais, Freitas transforma esta condição de fronteira numa vantagem experiencial, oferecendo leituras que ajudam a compreender identidades em trânsito e formas de pertença múltipla.
Crítico e observador atento, Freitas não se limita à análise de livros. Penetra nos silêncios, nas escolhas estilísticas e nas intenções implícitas da escrita, revelando os significados latentes que escapam à leitura superficial. Como o pintor que trabalha a luz e a sombra, ele lê entrelinhas, com sensibilidade e rigor, explorando a psicologia literária dos autores que comenta.
Há no estilo de Freitas um eco de Norman Holland, figura central na chamada "psicocrítica" nos Estados Unidos que propõe uma abordagem que une a teoria da receção ao pensamento de Freud, argumentando que a experiência estética de uma obra literária envolve um processo dinâmico de projeção e identificação por parte do leitor. Neste contexto, para além das particularidades idiomáticas, o inconsciente molda a leitura. O texto funciona como uma espécie de cognição compartilhada entre autor e leitor.
Na última Feira do Livro de Lisboa, o professor Ernesto Rodrigues, da Universidade de Lisboa, reconheceu Freitas como “o principal crítico literário português depois de João Gaspar Simões” — uma afirmação que confirma a apreciação nem sempre publicada de reconhecidas figuras na literatura diaspórica e do país, como Onésimo Almeida (Brown University), Diniz Borges (California State University, Fresno) e outras. A sua obra, contudo, fala para todos os Açores, na forma como articula o sentido de lugar, a vivência da emigração e a fidelidade a um património multicultural em que se insere.
Formado nos Estados Unidos, na California State University, Fullerton, Freitas regressou ao arquipélago para lecionar na recém-fundada Universidade dos Açores, onde contribuiu para a consolidação do ensino das humanidades. Paralelamente, manteve uma presença ativa na comunicação social, com colunas regulares no Açoriano Oriental. Naquela voz saliente na comunicação social açoriana com eco para além do Arquipélago, ele trata a literatura como espaço de reflexão partilhada sem se expressar como curiosidade académica ou objeto hermético.
Freitas revela uma consciência clara das tensões entre tradição e modernidade, insularidade e abertura, pertença e desenraizamento. Embora não o afirme diretamente, essa vivência crítica entre dois mundos culturais ressoa nos seus textos. A frase de Onésimo Almeida — “sou americano nos Estados Unidos e português em Portugal”, dita a propósito de si próprio — serve aqui como chave interpretativa para compreender o tipo de consciência crítica que também informa o trabalho de Vamberto Freitas. Ele lê o mundo com conhecimento e convicção a partir das margens e das travessias.
Em BorderCrossings – Leituras Transatlânticas, o autor dá continuidade àquela prática de leitura profunda, atravessando paisagens culturais da literatura açoriana, luso-americana e da diáspora em geral. Ao contrário do que James Wood criticou como “realismo histérico” — uma tendência na ficção contemporânea para acumular detalhes banais sem profundidade —, Freitas mantém o foco na dimensão simbólica e psicológica da narrativa com linguagem clara e elegante.
O seu pensamento crítico não se fecha numa torre de marfim. Pelo contrário, Freitas convida o leitor comum, curioso e reflexivo, a partilhar da sua viagem literária. A sua escrita comunica com naturalidade, sem sacrificar complexidade, e sem se deixar enredar em jargões ou posições ideológicas obscuras. A sua crítica é ao mesmo tempo gesto de leitura, escuta atenta e partilha intelectual. Lê-se não para dominar o texto, mas para acompanhá-lo, acolhê-lo nas entrelinhas e silêncios. Escuta-se não apenas o que é dito, mas o que ecoa no não dito — nas hesitações, nas metáforas, nos desvios. E compartilha-se não um saber fechado, mas um pensamento em trânsito, capaz de se deixar afetar pelo outro.
Nesse tríplice movimento, o ato crítico revela-se como experiência ética: uma forma de estar com o texto, com o autor, e com a comunidade que dele se nutre. Mais do que interpretar, trata-se de dialogar, de construir pontes entre tempos, culturas e linguagens. É nessa tessitura que se afirma o lugar da crítica como espaço de cuidado e de escuta. A reflexão sobre a literatura é, para Freitas, outrossim, um modo de pensar a cultura açoriana contemporânea e o seu lugar no mundo. Nos seus ensaios, reconhece-se a experiência de quem vive entre territórios, mas recusa o desenraizamento de quem abraça a diversidade cultural sem renunciar à identidade binómica que o caracteriza. Neste sentido, a sua obra constitui uma intervenção duradoura no pensamento crítico dos Açores e da lusofonia.
Mais do que interpretar, Vamberto Freitas irradia conteúdos que estimulam o debate e alargam horizontes. Ao fundir literatura, psicologia e identidade, a sua crítica torna-se uma forma de diálogo vivo, uma ponte para o futuro — e um espelho que nos permite ver como leitores, com mais nitidez, a complexidade do que somos na projeção psicanalítica do inconsciente na assinatura estilística do escritor.
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Manuel Leal, In Diário dos Açores, 25 de julho de 2025


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