quinta-feira, 31 de julho de 2025

Numa outra despedida a Álamo Oliveira

Álamo Oliveira por Rui Melo

    Álamo
Oliveira foi e é um dos nossos maiores escritores portugueses. Vou dar-lhes um exemplo do que me disse há uns anos o Prof. Doutor João Medina da Universidade de Lisboa, ele próprio com um passado africano. Álamo, disse-me ele a propósito do romance Até Hoje (memórias de cão): é o melhor romance, de longe, sobre a guerra colonial portuguesa. Representa pela primeira vez a sexualidade dentro do exército português para além de todas as suas memórias açorianas e depois as memórias na frente de guerra na Guiné-Bissau. Uma outra leitora bem formada de São Paulo leu um poema de Álamo sobre a sua estadia naquela metrópole brasileira: é o melhor poema que li, disse-me ela, sobre a minha cidade. O mesmo acontece com o seu romance Não Gosto de Chocolates, situado na Vale de São Francisco e eventualmente traduzido por Diniz Borges. Uma vez mais, foi o primeiro escritor com o saber e a coragem de introduzir temas, digamos tabus, na literatura dos Açores e da nossa Diáspora. Que lugar ocupa entre nós todos nestas geografias de casa e no exterior? Um lugar cimeiro como poucos outros ocuparam até hoje. A sua grandeza artística generalizada entre a cultura erudita e popular, nestes sentidos muito próprios, não tem, por enquanto, igual entre nós. Uma vez mais, é um dos escritores portugueses maiores que sempre escreveu com a sua experiência de vida açoriana. Ensinou-nos como mais ninguém a verdadeira universalidade da nossa literatura.

    Sim, era um homem e artista de um relativo Renascimento da nossa época. Conheço razoavelmente a dimensão da sua variada obra, incluindo a sua dramaturgia e artes plásticas. Aliás, foi ele desde sempre que desenhou as capas dos meus e de outros livros, e nos anos mais recentes continuou a fazer-me o mesmo, mas agora em colaboração com Rui Melo. Só que pela minha própria formação em história e letras é a sua poesia e prosa que mais me movem e comovem: pela sua extrema habilidade a trabalhar as palavras, cada frase sua uma brilhante metáfora da nossa vida em ilhas e no além-mar, a sua ironia genial denotando o nosso profundo sentido de pertença à nossa terra natal e a revolta ante todas as injustiças e a submissão histórica a estas terras de capitães-generais e donatários tanto à distância, ou já como filhos de casa – com todo o seu egoísmo, corrupção e incapacidade de desenvolver uma região cujas potencialidades nunca foram além de tudo para uns poucos e de nada para a maioria do povo açoriano, ou dos portugueses em geral no seu país triangular desde a Madeira e Continente às ilhas dos vulcões e do medo permanente.

    Toda a sua obra é grande, faz parte do cânone literário português. Os meus dois livros preferidos são Até Hoje (memórias de cão) e Pátio de Alfândega Meia Noite. A luta ingrata em África seguida da corrupção desenfreada que se seguiu à reconstrução de Angra e da restante Ilha Terceira após a grande catástrofe do 1º de Janeiro de 1980. Ficção? Sim. Mas a grande ficção nunca pode deixar de partir e interligar-se com a sociedade em geral. A ganância de uns e o sofrimento da maioria. Quanto à poesia, para mim, é a obra total, cada poema um mundo inteiro em si e a reação de um grande poeta, o seu posicionamento ante o quotidiano vivido sobretudo na ilha, o seu sentimento existencial do momento e a memória do termos sido e quem somos. Um grande poeta é sempre uma voz coletiva para além do jogo de cada palavra ou verso. Álamo Oliveira é singular na poesia e na prosa. Nem sequer menciono aqui os seus ensaios ou estudos sobre outros poetas e escritores, como, por exemplo, Almeida Firmino.

    Quanto ao teatro do Alpendre, sei da originalidade, da sua fundação em Angra do Herpísmo. Vi uma ou duas peças em palco, mas eu vivia nos Estados Unidos e nunca acompanhei o trabalho de que se “via” e “ouvia” à distância. Basta dizer que ultrapassou o digno estatuto de teatro amador para teatro profissional, ou lá perto. Quanto à coleção Gaivota da Direção Regional da Cultura, aqui sim, posso dizer muito mais. Foi a a partir das suas publicações que se deu o primeiro grande fôlego ao livro e aos autores açorianos. Foi a recuperação de escritores de todos os géneros que nos foram recuperados, tanto para a minha própria geração como para os outros mais novos. Juntamente com o então Secretário da Cultura Doutor Reis Leite provocaram um outro renascimento sistematizado na nossa literatura. Sem a Gaivota ainda hoje não teríamos autores que viriam a tornar-se uma referência permanente nas nossas vidas literárias. Angra era então a nossa capital das letras, que depois foi perdendo lugar nesse estatuto por diversas razões e pela lógica de um centralismo literário que se tornaria inevitável pela razão dos números da população em cada ilha, e ainda pelo domínio da Universidade dos Açores no campo das Humanidades. Só que a centralidade da nossa vida literária vai desde a Horta a Angra do Heroísmo. Na literatura não são os números que significam – há a história e as continuidades. Desde o Alpendre à Gaivota, as artes nos Açores não teriam sido possíveis, para além de outras geografias e novas realidades, sejam elas em palco ou editoriais.

    Respeitar um grande autor como Álamo Oliveira, creio eu, passa pela leitura contínua da sua obra. Ele merece os reconhecimentos todos quantos são devidos a quem gravou ou grafou para sempre e com grandiosamente a história do seu povo espalhado por boa parte do mundo, em países que tiveram ou tivemos de reaprender a ser e a estar em línguas e culturas então “estranhas”, toda essa história transfigurada sempre com verdades e prazeres da palavra que a escrita académica nunca poderá conseguir. Estatísticas e história diplomática ou política constituem saberes formalizadas que raramente significam nada mais do que nomes que nos dominaram ao serviço de si próprios e dos seus aliados no Poder. A arte literária vai ao essencial: que sente um indivíduo ou um povo inteiro no quotidiano de luta pela sobrevivência, pela sua dignidade? Que outra forma literária é capaz de denunciar o que numa qualquer comunidade cultiva a raiz do nosso ser, “a seiva da nossa luz” para que a revolta não aconteça, para que a justiça seja feita?

    Eis aqui a grandeza da obra de Álamo Oliveira. As flores na sua morte não bastam. É preciso nunca o esquecer. Álamo adorava o seu Raminho e a sua Angra do Heroísmo. Que a sua figura renasça agora em formas outras. Saberão todos, disso tenho a certeza absoluta, como o lembrar, imaginar e perpetuar a sua memória.

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No BorderCrossing do Açoriano Oriental, 18 de julho de 2025



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