Hoje está Lua cheia. Anda daí, vamos até ao ilhéu a nadar. A água deve estar quente!
Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial
Primeira confissão. Nunca tinha lido um livro de Luís Rego. Este foi para mim uma descoberta que eu andava à procura sem saber: um romance magnífico nas suas linguagens absolutamente originais, e só parecendo que não aborda antigos tema açorianos: a vontade de permanecer na terra natal e de viajar por outros meios e imaginação, a mesma coragem dos que partiram daqui de barco ou avião, sempre de modos inesperados, sempre a desafiar a claustrofobia de uma pequena ilha em busca do inesperado e da sobrevivência. O mar, para nós, já outros o disseram, tanto é clausura como uma estrada de fuga ao cerco e em busca do inesperado, em confrontação ora com a miséria ancestral, ora no tremendo desafio do desconhecido e da prova de coragem braçal ao encontro pacífico com os outros. Só que nestas páginas esses outros são a água de um bravo bravo e inconstante Atlântico e das suas criaturas submersas. A comédia pura juntam-se aqui à seriedade da solitária e luta pela sobrevivência. Muito para além do barco ou do avião a opção nativa é a força dos braços e a emigração, por assim dizer, sempre em volta da ilha, um desafio muito mais corajoso do que a partir para terras longínquas e desconhecidas. Só um publicista profissional tem esta audácia literária, que é juntar a verdade à ficção entre seja o que for, numa tentativa de se fazer acreditar ou tornar plausível mesmo que ele próprio esteja consciente das suas palavras – nem inteiramente convincentes nem inteiramente ficcionais. Isto é ficção num renascimento nada habitual na literatura açoriana. Se o autor, que viveu e exerceu a sua profissão em Lisboa durante anos e resolveu numa determinada altura regressar às suas origens açorianas pouco deverá interessar aos leitores. Que consegue reatar a temática da nossa literatura por meios tão originais, isso sim, é que levará o leitor ao fascínio de virar cada página de um longo romance. Ao contrário do que dizia José Saramago, nunca confundir o autor com a sua personagem ou o seu protagonista. A melhor literatura é feita da imaginação pura, como sabem alguns e confundem uns tantos outros. Se em tempos Luís Rego deu aos braços cansados nas ondas do nosso mar aqui em frente às minhas janelas no Pópulo também não me interessa. Que imagina as fantasias de seres reinventados é o que leva a uma estória de que são são feitas as nossas próprias fantasias – e até desejos de mantermos tudo no segredo íntimo da nossa pessoa.
Esta é vida de David natural de Vila Franca e cuja saída da sua extrema pobreza são as suas aventuras no mar, começando por ir a nado até ao ilhéu mais ou menos próximo. Eis a vénia à coragem de um açoriano. A chamada elite – provavelmente vinda dos pobres mais pobres embarcados à força em Alcântra nas primeiras caravelas do povoamento – começa por se sentir encomendada, como se sentia e sente ante a pobreza e a coragem sem apologia dos bravos. Eis a continuidade da nossa história, primeiro trágica e eventualmente fundadora de uma nova vida e de uma outra civilização a meio mar. Um gigante polvo, inteligente para além da nossa compreensão, dá-lhe alguns desafios, mas ele nunca tem medo. Luís Rego faz nestas paginas uma outra vénia a alguma literatura açoriana, especificamente ao romance de Carlos Tomé, O Bracinho, também este que versa a rebeldia dos ilhéus ante o poder em terra, e que parecia incontestável. Do mesmo modo, o autor faz eventuais chamamentos ao já mítico romance Moby Dick, de Herman Melville, no qual alguns açorianos, como se sabe, estão representados ostensivamente. Em pouco David, sempre com fome e sem outros horizontes, encontra um amigo local de nome Fernando Jorge, com outros meios de vida e que depressa ajuda com comida e companhia ao seu amigo e vizinho. A história açoriana é feita disto mesmo: solidariedade, desejo de fuga e desejo de nunca deixar o pedaço de terra que ama, e que é na verdade a sua casa, com terramotos e outros castigos pelo meio. Assumir a sorte do mar foi tanto ou mais heróico do que os que partiram para terras de sonho que tanto aguardavam o seu sofrimento como o seu triunfo.
Nadar no mar bravo até à exaustão sem parar em volta de uma ilha é esse outro tipo de “emigração”. A metáfora de Luís Rego introduz-nos a outra maneira de partir e de ficar, apresenta o maior dilema da maioria do nosso povo. Partir em lágrimas, e depois regressar com o sorriso de quem venceu. A eventual morte é apenas um pormenor ditado pelos deuses. Neste romance O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial estamos todos representados em termos artísticos, numa linguagem a um tempo clara e subtil, só como um grande escritor é capaz de realizar. Cómico e trágico, é um romance de toda a nossa história, de nós que olhamos o horizonte com fantasias sem nunca nos darmos conta do desafio que é viver, pobre ou rico, numa terra que tudo nos dá e tudo nos tira, sem aviso e sem piedade.
“Lá David – diz o narrador a meia viagem – contou a história toda. Obviamente, Dona Laura pensou que aquela aventura era um disparate pegado [a volta à ilha sempre a nado], que podia até correr o risco de morrer, desconhecendo que a única coisa que os Pais de David lhe haviam deixado como herança fora a possibilidade de ele morrer um dia mais tarde. Ela sabia que David não tinha que provar nada a ninguém, mas pronto podia de facto emprestar a mala com primeiros-socorros, mas só porque haveria um barco que o iria acompanhar naquela loucura. E David até estava com sorte, porque a Rosa iria ter que voltar à Vila, para dar uma limpeza final à casa, à mata e à piscina, por isso, poderia levar-lhe a mala”.
O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial é um dos nossos mais singulares romances. Nada e tudo que é a nossa história estão nestas páginas. Nada e tudo torna-se uma representação da nossa vivência nestas ilhas. Nada e todos os nossos sonhos, as nossas fantasias são o tema e as linguagens do nosso ser e estar, já não desterrados mas cidadãos do mundo, hoje ao nosso alcance, ou então a pátria do nosso viver e descanso.
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Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial, Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2025.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 9 de maio de 2025
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