sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Parte de uma longa conversa em inglês com o escritor luso-americano Carlo Matos para a revista Gávea-Brown numa tradução de Diniz Borges

 

Como está a viver, enquanto escritor, a situação política e cultural atual nos Estados Unidos?

    Não creio que o surpreenda se disser que é um pesadelo. Custa-me acreditar que um país tão obcecado com a Segunda Guerra Mundial se encontre agora a descer na loucura do fascismo e do totalitarismo, mas uma parte de mim sempre soube que a narrativa superficial da democracia era apenas uma cobertura num bolo de racismo, guerra de classes e suposta supremacia branca. Um país “bem-sucedido” – o que quer que isso signifique – acaba sempre por cansar-se de si próprio e auto-devorar-se. Acordo todos os dias sabendo que haverá mais disparates para enfrentar e, de repente, tudo passou de absurdo a assustador, como suponho acontecer sempre nestes casos. É a pior espécie de paralisia, porque toda a gente sabe onde isto acaba e, no entanto, quase ninguém faz grande coisa. Quando actores e apresentadores de concursos se tornam figuras políticas, é sinal de que os dias estão contados. Fomos tão bons a criar repúblicas de bananas que, de alguma forma, acabámos por nos tornar uma. Há nisto um certo tipo de poesia, suponho. Pela primeira vez na vida, considerei seriamente obter a dupla cidadania e mudar-me para os Açores, mas é fácil dizer isso. A vida real é bem mais complexa do que fugir. Pensei muitas vezes em reformar-me nos Açores, mas falta pelo menos uma década para isso. Nos últimos cinco ou seis anos, tenho trabalhado no meu segundo romance, In the Alien Field. É um desvio em relação à maior parte da minha obra, na medida em que é a minha incursão na ficção especulativa. À superfície, é uma história de vampiros contra alienígenas, mas o livro não trata disso. O livro é uma fantasia utópica. Estou farto de distopias. Vivemos numa, por isso não sei que valor tem de continuar a repeti-las, sobretudo quando, no fim, a humanidade encontra sempre uma forma de se tornar a heroína. Se eu tivesse escrito Terminator ou The Matrix, não haveria sequelas, porque os humanos teriam perdido — e, com o que a IA está a fazer ao nosso mundo, ainda podemos perder essa batalha, custa-me dizer. O meu romance centra-se numa comunidade de vampiros chamada Bruxa. A sociedade bruxa é tudo o que eu desejaria que o nosso mundo fosse. É uma cultura não hierárquica, poliamorosa, areligiosa e bissexual, devotada à arte, à música, à filosofia e a todas as coisas desta vida que têm valor real. Chamam-se bruxas porque chegaram aos Açores com os portugueses. Assumiram traços culturais e linguísticos dos colonos e se escondem à vista de todos. No meu romance, são eles que fundam a povoação de Mosteiros, que, como sabe, é de onde vem a minha família. Estes não são os vampiros pálidos, sedentos de sangue, mortos-vivos sensíveis ao sol que vemos em filmes e livros. Estão bem vivos. Comem comida normal, reproduzem-se como a maior parte dos animais e não são repelidos por crucifixos, água benta ou luz solar. Sim, bebem sangue, e é o sangue que lhes confere imortalidade, mas é a única ligação à tradição dos vampiros a partir de Bram Stoker. Os alienígenas, por sua vez, também não são monstros. A sua característica definidora é ser silenciosa e inescrutável. Os aliens nem sequer conquistam a Terra no sentido convencional. Chegam e encontram o planeta devastado, em ruínas, pois uma praga global matou quase toda a humanidade. Fui profundamente influenciado pela pandemia quando comecei a escrever este livro. Os aliens limitam-se a aproveitar a oportunidade e iniciam um projeto para reparar os estragos causados pelos humanos no ambiente. Em meros 50 anos, transformam o planeta num paraíso natural, algo que as bruxas chamam de Renovação. Fazem-no para cultivar, num ambiente saudável, a sua planta misteriosa. As bruxas estão finalmente livres do medo de serem caçadas e mortas por humanos e vivem num mundo que já não se encontra permanentemente à beira do colapso. E os humanos? Há alguns, uma fração minúscula, que sobreviveram, mas trabalham nas quintas alienígenas, já sem serem senhores do planeta nem de seus destinos. O único motivo de conflito entre bruxas e alecrim (como chamam aos aliens) é o facto de as bruxas precisarem de sangue humano para manter a imortalidade. Não posso dizer muito mais sem revelar demasiado. Estou perto de terminar o livro e impressiona-me perceber quanta realização de desejo está ali. A cultura bruxa é o lugar onde eu pertenceria, mas não creio que exista, neste mundo, uma cultura assim. E o meu país afasta-se cada vez mais disso, tornando-se mais grosseiro, ganancioso, cruel, anti-intelectual e hipócrita. Sempre foi um lugar difícil para um artista, pois confunde o quanto algo rende com a qualidade, e sabemos que essa relação muitas vezes é inversa. Não digo que uma boa arte não possa fazer dinheiro – às vezes faz – mas quanto dinheiro algo faz não é medida de mérito artístico. É por isso que hoje há pessoas famosas por serem famosas, e não por fazerem ou criarem algo.

Vamberto, Alex e Carlos
Quando fomos visitar (os Açores), o Alex disse que gostava do meu trabalho porque era sofisticado, tal como lhe afirmaste. Não tem ideia do que isso significou para mim. Acho de um cansaço extremo ser constantemente considerado – mesmo em críticas muito positivas – um escritor difícil, críptico ou obtuso. Não digo que explique tudo, porque não explico, mas o meu trabalho está bem longe de ser críptico. O meu filho adora The Quitters, por exemplo, e tinha 15 anos quando o leu. Senti que estava a ser dolorosamente óbvio em We Prefer the Damned, muito mais do que me agrada, mas isso não alterou a minha perceção crítica. As redes sociais pioraram isto porque o nível de “dificuldade” para o entretenimento popular é hoje ainda mais baixo. Os criadores sabem que estão a falar para um público provavelmente ao telemóvel, por isso reduzem tudo a pedacinhos digeríveis, para que o espectador distraído não perca o fio. O que se ganha, para além de uma simplificação perturbadora, é um diálogo que, basicamente, volta a dizer o que a imagem já mostra. É como ver um filme ou uma série numa câmara de eco. Torna-se rapidamente tedioso, a interatividade perde-se, o envolvimento intelectual esvai-se e os efeitos emocionais são superficiais. O problema do meu romance, além de oscilar de forma perigosa entre obra literária e ficção especulativa, é que a minha única resposta ao nosso dilema é a humanidade praticamente se extinguir. Não é solução nenhuma. Talvez nem seja particularmente produtivo; não sei.

O que torna tudo isto tão enlouquecedor é o facto de ser completamente desnecessário. Não há, agora, nem há muito, qualquer justificação para a disparidade de rendimentos que está na raiz de tantos dos problemas que enfrentamos. Não há razão para trabalharmos tanto. Não há razão para inventar todos os cargos administrativos desnecessários para manter um sistema que já não funciona. Quando os industrialistas rasgaram as promessas feitas aos trabalhadores, ao confiscarem para si os ganhos da mecanização, condenaram-nos a esta farsa ridícula. À data de hoje, devíamos todos estar a trabalhar um mínimo de horas e o resto do tempo a viver experiências significativas, enquanto a IA e as máquinas tratavam do grosso. Mas, quando a imaginação se empobrece, esta ideia pode ser mais assustadora do que trabalhar até cair. Caso contrário, não entendo o que estamos a fazer – e provavelmente nunca entenderei.

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De Gávea-Brown, VOL. L, N.º 2, 2025. Tradução de Diniz Borges. Agradecemos à Gávea-Brown e ao seu diretor Onésimo T. Almeida por permitir que a plataforma Filamentos a publicasse.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 12 de dezembro de 2025.

 

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