quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Conversa com Alexandre Borges: Prosa, Poesia e Televisão

 

Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre.

Alexandre Borges

    Alexandre Borges é um escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980) e radicado em Lisboa desde 1998. Foi editor de cultura de A Capital, crítico de cinema do jornal “i”, e é, atualmente, diretor criativo de uma agência de comunicação e colunista do Observador.

    Publicou Dez Histórias de Amor em Portugal, Heartbreak Hotel, Todas as Viúvas de Lisboa, Histórias Secretas De Reis Portugueses, O Boato – Introdução Ao Pessimismo, As Vitórias Impossíveis na História de Portugal, Santos e Milagres – Uma História Portuguesa de Deus, e Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio. Algumas destas obras constam do Plano Regional de Leitura dos Açores, poesia e prosa.

    Falar com esta outra geração de escritores que se seguiu à minha é um dos meus maiores desafios – e prazeres – pela grande qualidade da sua escrita em praticamente todas as formas e temas abordados.


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    Foste de Angra do Heroísmo para Lisboa muito novo, e todos os estudos superiores foram realizados lá. Como foi essa caminhada em procura de uma formação literária e carreira?

    Foi pacífica de uma forma com que, hoje, só poderia sonhar. Tenho a impressão de que escolhi mais facilmente a minha vida aos 17 anos do que agora, quarentão, escolho um frigorífico. Aquela questão: “o que é que queres ser quando fores grande?”, nunca me atormentou. Em adolescente, já sabia que seria escritor; tudo o resto era secundário a esta finalidade. Tinha a noção de que ninguém vivia dos livros e que, portanto, para pagar a renda, teria de duplicar a escrita num uso mais rentável, a trabalhar em jornais ou na televisão, e que o curso superior também deveria servir esta função: ajudar-me a escrever melhor, ou pelo menos, a pensar. Daí a Filosofia. Tinha uma fé cega de que viveria disso e, até hoje, não me enganei.

    Comecei a escrever, regularmente e de forma remunerada, aos 14 anos, na imprensa açoriana, o que me faz dar agora conta de que, por absurdo que pareça, levo 30 anos de “carreira”. Mas era óbvio que teria mais oportunidades nesta vida à beira-Tejo do que à beira Porto Pipas, por muito que ame o Porto Pipas e a memória dos passeios com o meu avô. E depois, havia uma vontade de mundo. Em 1998, a distância metafórica entre os Açores e Lisboa já não era certamente a mesma que no Gente Feliz com Lágrimas, do João de Melo, ou na Fome, do José Martins Garcia, mas ainda não havia internet nem companhias aéreas low cost. Quando saías, sabias que ias passar a ver a tua família só no Natal e no Verão. Mas havia um gozo enorme nessa emancipação, nesse mergulho no mundo. Ainda por cima, no ano em que Lisboa recebia a Expo e te cruzavas na rua com gente de toda a parte, naquele frisson de fim de século. Foi um momento magnífico para um miúdo de 17 anos, sair de debaixo das saias da mãe para a cidade grande. Tudo o resto decorreu daí.

    Como alguns outros, optaste pelo não regresso definitivo. Fala-me de como pensaste a tua vida a longo prazo.

    Confesso-te que a coisa mais parecida que tive com um plano a longo prazo foi – é – a convicção de que escreverei até ser velhinho ou me mandarem parar. Tive sempre uma confiança cega de que as coisas correriam bem profissionalmente – tão cega como a descrença em vir a ser um “homem de família” (não que não o desejasse, não necessariamente, mas, se elegesse como objectivo fundamental ser pai de família, creio que teria voltado. As cidades grandes não são sítios para criar crianças. Aí, vem-me um receio muito ilhéu). Logo que cheguei a Lisboa, comecei a fazer teatro e a trabalhar na imprensa universitária; a partir daí, uma coisa foi sempre levando a outra: duma revista para a televisão, da televisão para um jornal, dum jornal para outro projecto qualquer. Tudo me pareceu sempre apenas uma modalidade diferente de literatura: para o ecrã, para o palco, para a folha de jornal.

    Claro que as coisas nem sempre correram bem, mas, quando isso aconteceu, a escrita pura esteve sempre lá. No dia em que A Capital fechou e fui para o meu primeiro e, até hoje, único desemprego (os deuses assim o conservem), antes que começasse a desesperar, escrevi as primeiras linhas do meu primeiro romance; no dia em que acabei o romance, comecei um blogue de aforismos que também viria a dar livro. Ao fim de seis meses, voltei ao trabalho “diurno”, com muitas lições de humildade, a escrever telenovelas para a TVI com a mesma seriedade com que trabalhava em programas de autor e documentários para a RTP2, a inventar concursos para o prime time ou a fazer crítica de cinema para intelectuais. Mas os livros, a poesia, o romance, a crónica, foram sempre o que me salvou do vazio, o que deu sentido a tudo. Até hoje. Mesmo que produza muito menos livros do que gostaria, por falta de tempo ou disciplina. É a fé de que ainda se escreverá aquele livro de que sempre nos acreditámos capazes o motor imóvel de tudo.

        A tua poesia e prosa tanto contém a universalidade da tua geração como a recordação numa ilha como a Terceira, uma pequena terra no meio do oceano que só agora começa a ser descoberta por todos os outros. Que relação manténs com outros cá residentes?

    


    D
e facto, durante muito tempo, só sentia necessidade de escrever a olhar para fora. Há dois tipos de artistas: os que escrevem, pintam, compõem, para que o mundo os compreenda, e os que escrevem, pintam, compõem, para compreender o mundo. Sempre me vi no segundo grupo. Fascina-me, sobretudo, a vida multiplicada das cidades e a possibilidade de um Deus, real ou irreal, acontecer no meio delas. Mas, com o passar do tempo, comecei, finalmente, a sentir também a necessidade, a vontade e, acima de tudo, a capacidade de escrever sobre o lugar de onde vim e para o lugar de onde vim. Penso, sinceramente, que um escritor é muito mais a maneira como olha do que aquilo que olha. A perspectiva e não o tema. Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre. Mas, depois de 26 anos de Lisboa, ela também já forjou qualquer coisa bastante no açoriano para que ele consiga olhar a terra-natal como objecto literário; ter alguma coisa, mínima que seja, para lhe dizer.

    De resto, de há alguns anos para cá, tenho tido o privilégio de voltar a trabalhar e a viver momentos muito importantes nos Açores, uns tão difíceis como enterrar amigos, outros tão belos como voltar a escrever especificamente para um público açoriano, apaixonar-me, conhecer e colaborar com pessoas extraordinárias que trabalham hoje nos Açores em literatura, cinema, fotografia, pintura, música, em tantas áreas, com enorme qualidade e, ao mesmo tempo, cheias de mundo e de ilha. Admiro-as profundamente pelo equilíbrio que conseguiram.

    A tua literatura, como a defines em termos temáticos, um comboio em direção contrário à tua real vontade, ou mesmo saudade?

    Obrigado por esta conversa, Vamberto. Está a ser muito importante para mim porque, em cada pergunta, juntas a vida à escrita, que é como elas acontecem.

    Não consigo definir. Não sei de que estilo ou escola sou. Talvez fosse melhor escritor se o fizesse, mas também corria o risco de secar. Sendo-te completamente sincero: penso que haverá poucas pessoas que escrevam mais do que eu. Há 30 anos (como vimos) que os meus dias são passados em frente a um teclado a matraquear crónicas, críticas, guiões, vídeos para clientes – bancos, seguradoras, partidos políticos, marcas de sapatos, tudo o que te passe pela cabeça – e, sempre que possível, peças de teatro, poemas, contos, histórias, ensaios de romance. E, no entanto, frequentemente parece-me que não escrevi nada. Que nada disto fica. Que diluis o teu coração e o teu olhar de poeta em tudo e que isso faz com que tudo seja um bocadinho bom, mas que nada seja realmente extraordinário. Mas lá está: vou continuar até escrever o livro de que estou convencido de ser capaz. Ou que o tribunal me proíba de aproximar a menos de 50 metros de um Word.

    De resto, continuo apaixonado por Lisboa. Mas nada me faz mais feliz nem realizado do que sentir que qualquer coisa que escrevi tocou alguém na Terceira, nas Flores, no Pico, em Santa Maria, em São Miguel (tornei-me açoriano aos 17 anos. Até aí, era só terceirense. É quando vamos embora que ficamos, realmente, dos Açores). Porque, no fim, o que todos queremos é ser amados por quem nos pôs no mundo. Por quem nos viu crescer.

    Portanto, o comboio vai-nos trazendo a casa. E já não tenho dúvidas de que, um dia, será de vez. Por enquanto, simplesmente, é-me mais fácil escrever com semáforos e marquises do outro lado da janela, do que com a majestosa beleza açoriana, que me paralisaria e faria achar fútil qualquer esforço pretensamente criativo.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 27 de dezembro de 2024

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