sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Vasco Pereira da Costa: quem escreve, como escreve e para quem


Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração.

Vasco Pereira da Costa em conversa sobre a escrita e as suas dúvidas geracionais.


    Caso algum leitor pergunte o que me leva a fazer estas “conversas” com escritores de várias gerações responderei do modo mais simples possível. Eles têm dialogado em direto em vários encontros literários durante anos um pouco por toda a parte, mas queria que os leitores dedicados à nossa literatura de língua portuguesa tivessem uma ideia clara sobre a evolução intelectual, particularmente literária, uma vez mais, que naturalmente sempre acompanhou a nossa História e as nossas circunstâncias que são de séculos – e não de anos ou décadas. Vasco representa para mim, na sua escrita, um símbolo claro dos anos a um tempo de chumbo e liberdade. A memória dos tempos e da caminhada de um povo, dos povos em toda a parte, como já o escrevi muitas vezes, é o tema dominante de toda a grande literatura mundial. Que os açorianos, dentro e fora do arquipélago. e como outros já o disseram muito antes de mim, sempre os levou a produzir uma das grandes literaturas de Portugal e arredores maiores, que são o mundo inteiro. Estão traduzidos em várias línguas, desde o Japão a alguns países europeus, lidos que são ainda por todo o mundo que fala e escreve a língua de Camões. Alguém um dia escreveu sobre estas questões que o território não tem a ver com o mapa. Por outras palavras, a grande literatura sempre nasceu dos então mais recônditos sítios do planeta.

    Eis aqui Vasco Pereira da Costa cujas ilhas tanto estão rodeadas de mar como de terras sem fim. A sua obra foi recentemente mencionada nestas páginas. Resta agora só saber o que move e comove o grande escritor natural de Angra do Heroísmo e residente em Coimbra desde os seus 18 anos de idade, quando ingressou na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, e mais tarde viria a ser um dos responsáveis pela Direção Regional da Cultura nos Açores.

    Acaba de publicar Os Contos, uma antologia da sua prosa maior, organizada por Telmo R. Nunes.


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    A tua obra literária vem dos anos 70/80 até aos nossos dias. O que é que te motiva para esta implacável e duradoura escrita?

    Incorporei a escrita na minha vida como o filatelista passa horas a olhar para selos de correio. Eu ando à procura daquela história ainda não contada ou daquele verso que requer a palavra exacta. Não é uma motivação implacável que não busca durabilidade, mas que conforta quem se habituou a tratar a literatura como um familiar muito próximo em quem pode confiar e que nunca desiludiu apesar de grandes discussões. Escrever é, pois, um acto voluntarioso ou, como dizia Miguel Torga, um acto ontológico.

    Que leitores tens em mente quando escreves poesia e prosa?

    Não faço a mínima ideia sobre quem irá apropriar-se dos meus textos nem é assunto que me preocupe. Sei, apenas, que não aceitaria qualquer imposição editorial – temática ou temporal: a criação literária assenta na total e irrefragável liberdade de pensamento. Admiro aqueles que conseguem auferir proventos suficientes através do que escrevem, se bem que, nos dias que correm, muitos produtos literários são bafejados por campanhas de marketing. Basta atentar na profusão de escritores que, concomitantemente, são ledores de telejornais. Felizmente, tenho fugido, por feitio e por orgulho do espaço mediático porque prezo muito a minha intimidade e não preciso da escrita para a minha sobrevivência. Porém, é uma tarefa que requer trabalho paciente, minucioso e persistente. Ocorre-me, com frequência, um conto de Daudet – O Homem com cérebro de oiro – que vai retirando pedaços desse metal precioso até que, no final, só consegue umas pepitas ensanguentadas: os dicionários não são mais do que esses pedacinhos linfáticos a que o escritor tem que dar nova vida. Pode dar-lhes vilezas e virtudes, viço ou podridão, ódio ou amor, paz ou guerra, heroísmo ou cobardia, singeleza ou complexidade, humanidade ou bestialidade, grandeza ou opróbrio, simpatia ou repulsa. Esse é o grande poder conferido ao acto da escrita, o que nem sempre se consegue, pois há muita emenda e muito papel rasgado. E convém, sempre, deixar em repouso esse trabalho para que possa perceber-se, passado um tempo bastante, se ainda mantém intactas as suas qualidades funcionais e estéticas. O leitor tem que ser respeitado e não podemos dar-lhe insignificantes, gastas, aleatórias, inúteis e medrosas estupidezes nem bugigangas decorativas. Qualquer texto – literário – é sempre um desafio lançado a quem o lerá. E o escritor não será, então, nunca mais, o seu dono e senhor; o leitor irá apropriar-se, para sempre, do que leu, gerando o seu próprio texto.

    Anoto, no entanto, esta contradição: nunca se editou tanto em formato de papel ou digitalmente, mas os índices de leitura continuam muito baixos, apesar de as bibliotecas públicas e escolares proliferarem – e bem!, porque o panorama seria mais devastador e inquietante.

    


    O
humor e, de certo modo, a sátira, é uma constante particularmente na tua prosa. É este o teu modo de dizer coisas sérias com um riso, coisas que te preocupam e movem a tua literatura no sentido de levar em conta a tua sociedade nas ilhas e no continente?

    A ironia advém do instante imprevisível em que se intromete na escrita. Afinal, todos podemos ser tocados pela banalidade e pelo ridículo que carecem de distanciamento crítico; pela afeição que tange a condição humana; pelas inquietações que nos colocam numa ambiência que roça o trágico e que apetece desfazer. Qualquer escritor apenas repete aquilo que já foi escrito desde o tempo em que o homem, animal absoluto e esquisito, descobriu que tinha capacidade de exprimir sentimentos os mais diversos.

    Como vês ou entendes o tempo do nosso país na atualidade? A literatura ainda mantém um papel central no nosso pensamento e atitude, digamos assim, perante tudo e todos que nos rodeiam?

    Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração. Proclamámos que we shall overcome same day; que all you need is love; que o 25 de Abril minaria irremediavelmente os fascismos. Nada disto aconteceu! Talvez seja tempo de pôr de novo um cravo vermelho ao peito e de berrar, outra vez, contra os imperialismos todos.

    Houve qualquer coisa que correu mal. Ocorre-me, que nos anos oitenta do século passado, houve uma corrente nefelibata que prenunciava uma sociedade de lazeres: com as tecnologias emergentes as pessoas iriam para a reforma mais cedo e haveria necessidade de preencher a sua qualidade de vida com ócios culturais.

    Para tanto, eram necessários equipamentos ajardinamentos comunitários, formação de técnicos auxiliares para as artes performativas, actores, artistas, agentes…Ora, nada disto aconteceu: aumentou a idade da reforma, a economia contraiu, a pobreza aumentou, os desníveis sociais acentuaram-se. E, agora, regressam os populismos: Le Pen, Bolsonaro, Trump, Venturinhas e tantos outros salvadores que nos apresentam um cenário muito próximo dos tempos de Salazar, de Franco, de Mussolini, de Hitler. Os gloriosos tempos da paz europeia, humanista, fraterna e igualitária está a desvanecer-se. Os tempos prenunciam uma guerra temível e um descontrolo do mundo mercê das ganâncias financeiras que não têm rosto nem morada certa. E a classe política deste mundo foi assaltada por medíocres e iletrados. Temo, oh sim!, pelos meus filhos e pelos meus netos, quero dizer pelos filhos e netos continuadores da vida no nosso planeta.

E agora, Vamberto?

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 13 de dezembro de 2024



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