Renata Correia Botelho é uma das nossas mais distinta poetas. Nasceu em Ponta Delgada em 1977, onde vive e é Psicóloga Clínica. Formada pela Universidade do Porto, fez ainda uma pós-graduação em Comunicação e Cultura na Universidade dos Açores. Para além de traduções de Margarite Yourcenar e de Hiromi Kawakami para a editora Relógio D’Água, publicou diversos livros de poesia: Avulsos (separata da Revista Magma, Lisboa, 2005); Língua Morta, Lisboa, 2010); Um Circo No Nevoeiro (Averno, Lisboa, 2009); Moinhos, Belo Horizonte, 2020) e small song (Averno, 2010; Alambique, 2015). Colabora também em diversas revista de variadas expressões artísticas. A nossa breve conversa aborda um pouco de toda a sua atividade literária e presença esporádica em diversos eventos literários.
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Os teus poemas de small song é um livro marcante na nova poesia de língua portuguesa. Logo após a sua publicação estavas por toda a parte em sessões literárias. Fala-me dessa tua experiência como poeta de imediato reconhecida entre os teus leitores.
Escrever small song foi uma experiência singular. É certo que o são todos os livros, e provavelmente todos os poemas dentro deles, mas este resultou numa vivência extraordinária – que nada teve a ver com as sessões literárias e as recensões que lhe sucederam. Lembro aqui, porque espelha exatamente o que se passou com este livro, uma frase do meu querido amigo e editor Manuel de Freitas sobre o propósito da poesia: "A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras". Foi exatamente assim. Este livro “nasceu” de uma morte que me abalou imenso, da cantora Lhasa de Sela, que fora (e ainda é) a minha principal banda sonora. Com a voz da Lhasa vivi momentos muito marcantes. O seu desaparecimento teve um impacto brutal em mim e senti uma necessidade urgente de escrever sobre ela. Aliás, small song é o nome de uma das suas canções, pequenina, perfeita, que ecoa ainda tanto na minha cabeça. Ao mesmo tempo que escrevia, tentei contatar a sua família e cheguei à Sky, uma das suas irmãs, que me abriu de imediato as portas de casa (neste caso, de um conjunto de roulottes, no meio da neve, reservadas a artistas circenses, uma vez que a família se dedica profissionalmente ao circo contemporâneo). E lá fui eu para França, várias vezes, para uma pequena aldeia chamada Montréal en Bourgogne, conhecer o clã de Sela. Cada uma daquelas pessoas (eu incluída) fazia o luto à sua maneira e à sua escala, mas tenho a certeza de que nos ajudámos mutuamente. Foram momentos únicos e cheios de significado.
Para além deste caminho mágico, o livro trilhou outros rumos surpreendentes. Serviu de base, por exemplo, ao primeiro espetáculo do magnífico Núcleo de Artes Performativas 37.25, o que me encheu de alegria. E também deste livro (e de um anterior) nasceram letras para A Naifa, um grupo de referência, pelo menos para mim, no panorama musical português.
Em resumo: é certo que o livro foi muito bem recebido pela crítica (um pouco à semelhança dos anteriores, na verdade), o que obviamente me deixou contente. Mas o fundamental da sua existência foi tudo isto que descrevi, os rumos extraordinários que tomou, levando-me a outras pessoas, outros lugares, outras linguagens. Acho, por isso, que o Manuel de Freitas tem toda a razão. Este é o principal (talvez o único) propósito da poesia.
Nasceste e viveste sempre à “sombra” de um grande poeta, o teu pai Emanuel Jorge Botelho. Até que ponto essa vivência te libertou – ou, vamos lá dizer assim, te inibiu?
Tive o privilégio de nascer e crescer numa casa forrada de livros. Os livros faziam parte da nossa vida familiar diária. Lembro-me de ser muito pequenina e passar horas a olhar as lombadas. Há imensos livros cujo título e autor conheço perfeitamente, sei a cor e o grafismo da lombada, mas, para ser franca, nunca os li. No entanto, sinto uma imensa intimidade com eles, porque moravam connosco. Dizer-se que vivi “à sombra” do meu pai parece-me exagerado. Trilhámos, aliás, caminhos muito distintos, quer na escrita, quer na publicação, quer mesmo na literatura que nos interessa. Ainda hoje é assim. Somos pessoas muito diferentes (talvez, com o passar dos anos, um pouco menos diferentes). Agora, de orgulho estou eu cheia. O meu pai é um poeta maior, um dos mais importantes poetas portugueses do último meio século, disso não tenho qualquer dúvida. O que não é coisa pouca. Mas nunca isso pesou na minha relação com a poesia, até porque a poesia não é, ao nível familiar, um exclusivo do meu pai. A minha mãe tem uma forma de amar absolutamente poética, o abraço do meu irmão é um poema luminoso, a chegada das minhas sobrinhas foi uma explosão de versos livres e belos a que regresso todos os dias. Para além de outras pessoas (amigos, companheiros), mais ou menos íntimas, que trouxeram muita poesia aos meus dias. E os gatos, movendo-se pela casa com um lirismo de que só eles são capazes. Nunca me canso de apreciar a sua delicadeza, a lentidão do sono a abater-se sobre eles, o seu olhar seguro e tranquilo fitando o meu, tantas vezes tolhido pelo medo e pela angústia. Tudo isto teve uma influência determinante na minha escrita – que é o mesmo que dizer, na minha vida.
Portanto, e regressando à pergunta, ser filha do Emanuel Jorge Botelho nunca me inibiu nem me libertou, integra serenamente a matéria de que sou feita. Ser sua filha só me trouxe luz, nunca sombra.
Uma coisa, no entanto, é certa: o meu pai é o meu primeiro crítico. Para o bem e para o mal. E a opinião dele, curiosamente cada vez mais coincidente com a minha, é preponderante para a sobrevivência, ou não, de um texto. Aí sim, sou uma sortuda.
O ser uma psicóloga que influência tem na tua escrita direta e pública, cada palavra carregada de significações múltiplas para os teus leitores?
De forma direta, julgo que não. Pelo menos, nunca fiz, conscientemente, essa associação. Todavia, o exercício da psicologia, sobretudo no contexto em que trabalho desde o início da carreira, com pessoas muito doentes e frágeis, famílias destroçadas, vidas e sonhos que ficaram por cumprir, ter-me-á dado, quero crer, uma visão mais profunda do Outro. Desde criança que sinto a impossibilidade (prática e metafísica) da minha existência isolada, e talvez tenha sido isso que me encaminhou para a Psicologia, a par de uma grande curiosidade sobre os mecanismos da mente humana. O Mário de Sá Carneiro tem dois versos, que li quando era muito jovem, e que sempre achei que resumiam cristalinamente este sentimento: “Eu não sou eu nem sou o outro / Sou qualquer coisa de intermédio”. A Adriana Calcanhotto já os cantou. Essa imersão permanente do Outro em nós, e vice-versa, essa existência indivisa, que norteia necessariamente a minha profissão, poderá ser vertida para a poesia, mesmo que num plano mais inconsciente.
Estou, aliás, absolutamente convencida de que a poesia nasce num plano inconsciente e subterrâneo, onde vivem os Rothkos que vi em Londres e os impressionistas em Paris, Marguerite Youcernar (cujo livro de entrevistas a Matthieu Galey tive o privilégio de traduzir para a Relógio D’Água, possivelmente a coisa mais bonita que fiz na vida) a fazer-nos respirar junto de Adriano, a voz da Lhasa ou do Nick Drake, um grupo de pessoas abraçadas a cantar a Grândola, o galope de um cavalo livre, a náusea que me provoca a tortura de uma tourada (agora, com a descida do IVA para esta atividade de pura crueldade, a barbárie até ficou mais barata, imagine-se), a desolação de uma pomba morta na estrada, o silêncio das casa à noite, as camélias e as estrelas cadentes da Achadinha… e também – provavelmente – as dores e as pequenas alegrias que acompanho diariamente na minha vida profissional. É de toda essa massa imensa e submersa que nasce a poesia, mesmo que verse sobre outros assuntos quaisquer. Por isso, não sou capaz de estabelecer relação entre a minha escrita e o facto de ser psicóloga, mas imagino que ela, algures, exista.
Fala-me do teu processo de escrita poética. Sai de repente ou cada palavra e verso têm de ser pensados durante um tempo maior?
Escrever é um grande mistério. Tal como já referi, e acho que na pergunta anterior respondi um pouco a esta, sinto que a escrita surge a um nível subterrâneo da nossa mente. Pode haver um trigger, qualquer coisa consciente (que vemos, ouvimos, sentimos) que a ponha em marcha, mas ela nasce noutro “sítio”. É desse sítio que vêm à tona as palavras que dão vida ao primeiro esboço do texto. Depois subimos ao patamar da consciência, e aí depura-se o poema, trabalha-se afincadamente cada verso, cada espaço em branco, cada vírgula, as maiúsculas e as minúsculas, as palavras que queremos deixar e as que devem regressar ao subsolo. Mesmo quando se escreve “por encomenda”, ou seja, para um número coletivo ou para uma revista literária, por vezes com tema previamente definido e sempre com prazos para cumprir, é o mesmo processo. Pode é, simplesmente, não acontecer. E aí falhamos o compromisso, o que é uma chatice.
Além do mais, não acredito em boa escrita sem muito trabalho sobre o texto. Tal como não acredito que se escreva com alguma qualidade sem ler muito. Ler é como a água, um bem preciosíssimo. Para escrever, mas sobretudo para que viver seja um pouco mais possível.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 6 de dezembro de 2024
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