sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Breve Conversa com Leonardo

 Não escolheria terra nenhuma para ser natal…

Leonardo, em conversa comigo



    Leonardo Sousa é o seu nome, mas assina todos os seus livros com simplesmente Leonardo. Nascido em São Miguel em 1993, é um dos novíssimos poetas de língua portuguesa: âmbula (2015); caderno de mitos pessoais (Artes e Letras), 2018; contas de cabeça (Companhia das Ilhas), 2022). Estes são apenas três títulos de uma obra ainda mais extensa. Mudou-se para Lisboa há poucos anos, e frequenta a Universidade Nova de Lisboa a completar um mestrado em Estudos Portugueses. O resto vem contado por ele próprio no decurso da nossa conversa. Sobre os Açores as suas palavras são contundentes, rasgam mitos e desafiam todos os nossos poderes instalados.

    contas de cabeça foi um livro muito especial para mim. Como é que um jovem poeta, como tu, veio a conhecer as literaturas clássicas, bem como outras?


    Esses chavões - «literatura», «clássico» - pouco me dizem e cada vez menos dirão,
imbuídos, como estão, de preceitos típicos do chauvinismo ocidental. De facto, algumas obras «clássicas» e algum do pensamento ocidental (mas o ocidente é sobretudo apropriação) foram importantes para o modo como escrevo. Mas também - ou mesmo principalmente – o foi a desconstrução conceptual desse ideário. Podia invocar como influências estruturais, sem estabelecer entre as mesmas nenhuma espécie de hierarquia, a Epopeia de Gilgamesh, o Prometeu Agrilhoado, o Eclesiastes; mas também o pensamento de Freud, os contos do Gogol, todo o quadro existencialista, toda a escola dos estudos culturais, poetas tão díspares como Al Berto e Herberto, Bukowsky e Nicanor Parra, sem falar de pensadores como Emma Goldman, Bell Hooks, Anselm Jappe. Certo é que categorias ideológicas como «clássico» só me seduziram até certo ponto da minha vida. Interessa-me muito mais o modo como uma obra transforma a forma como penso e, por extensão, a forma como escrevo. Interessa-me romper o universo da minha ignorância, arrombar as minhas fronteiras. Posto isto, o contas de cabeça foi um livro importante para mim, na medida em que tentei lá colocar tudo o que consegui reunir dentro de mim até 2022. Saiu um livro desencantado, um tanto ou quanto ácido, talvez pessimista e bastante auto-irónico. Olho para o livro e para o mundo agora: não vejo motivos para que tivesse sido diferente. Foi o único livro a que me pude dedicar quase exclusivamente, beneficiado com a Bolsa de Criação Literária, do Ministério da Cultura, uma almofada financeira bastante convidativa para quem não espera muito. São poemas irrequietos e incómodos, mas escritos em circunstâncias bem mais cómodas do que aquelas a que estava habituado.

   

  Foste aluno da Universidade dos Açores. Que influência essa experiência 
teve para ti?
     Os jardins eram bonitos. Ia para lá conviver com amigos, faltava a muitas aulas. O meu percurso foi sempre irregular. Preferi as noites na Travessa dos Artistas, as noites de poesia do Tascá, os concertos no Arco 8, as conversas no ¾ e na Livraria SolMar. Guardo, da UAC, algumas incursões nos estudos literários e culturais, alguns professores que continuo a admirar. Podias ter sido meu professor, mas, por essa altura, já tinha desistido. Procrastinei bastante e sem remorsos. A academia tornou-me ainda mais avesso ao elitismo da instituição. Não compreendo conceções essencialistas da realidade, da cultura, do conhecimento. Lembras-te de um célebre e recente discurso, na assembleia, sobre cultura, que tanto inflamou os ânimos? Não me chocou, vindo de quem vinha. Chocaram-me, isso sim, algumas reações. Clássico enquanto intemporal? Elitismo enquanto respeito pelo divino? Ainda estamos nisto? Basta substituir «clássico» e «elitismo», no segundo discurso, por «tradição», no primeiro: são discursos equiparáveis, faces opostas da mesma moeda. A academia ensinou-me a desconfiar de académicos. Falta-lhes terreno, materialidade, experiência horizontal da realidade.

      Fala-me da tua obra poética - como aconteceu? Via-te com frequência na
Livraria SolMar a folhear obras de natureza diversa.
    Começou pelos 16 anos. Encontrei-me com os românticos e comecei a escrever
com maior compromisso. Depois, houve o Al Berto, o Herberto, o Daniel Faria, o Emanuel Jorge Botelho, cujas poéticas foram absolutamente transformadoras para mim. Na altura, a circunstância de ter por mentora do meu trabalho a Paula de Sousa Lima - ela própria uma escritora de relevo no universo português a que o universo açoriano presta pouca atenção - foi decisiva. Escreveu um prefácio muito generoso (demasiado, acho eu) ao meu primeiro livro. Aprendi imenso com os seus talentos. A livraria SolMar é um local privilegiado de convívio entre escritores, leitores, artistas. Falávamos de literatura, cinema, artes em geral, dos derriços da política e de políticos fracos da braguilha. Ouvíamos música, folheávamos obras, discutíamos as andanças do mundo. Isto ainda antes de todo o boom cultural que e deu nos Açores a partir de 2013/14. Para quem queria fugir às trivialidades vazias, aos parolos, aos olheiros, aos trepadores-carreiristas, era uma espécie de templo a que se ia quase diariamente espairecer o sufoco. Sobretudo quero dizer que a Maria Helena e o José Carlos são amigos que guardo com o maior carinho. Que admiro a sua persistência num ambiente tão adverso. Que tiveram o desvaire de fundar uma editora – a Artes e Letras – e a generosidade de editar coisas minhas. Não tinham nada a ganhar com isso. Como não terão agora em reeditar o caderno de mitos pessoais, com novos poemas que vêm desse ano de 2018, obviamente reescritos dúzias de vezes – ossos do ofício.

     
    Disseste-me um dia que não escolherias Ponta Delgada como a tua terra 
natal, em vez de Lisboa, nem trocarias os teus estudos na Universidade Nova de Lisboa. Fala-me sobre essa tua opção de vida académica e literária.
     Não escolheria terra nenhuma para ser natal. Ter nascido num determinado lugar não nos faz especiais, nem nos faz o contrário. Sempre fui avesso, como sabes, ao quadro do messianismo insular. O fatalismo de ter nascido nas ilhas, a condição de ser ilhéu, as «açorianites», em geral, sempre me pareceram ideias pedantes. A relação entre geografia e cultura e a ação destas sobre o contínuo indivíduo-coletivo são ideias já estafadas, recorrentes já nos séculos XVIII e XIX. Agora, são bengalas usadas para fins de marketing e autopromoção, que pouco se prestam à mudança, até porque dependem da estabilidade conceptual de uma determinada mundivivência. Isto é: ótima desculpa para não se fazer nada. Nós somos uma terra pobre, sim, com uma história de resistência a fatores geográficos, climáticos, sociológicos e políticos adversos, decerto, sem dúvida. Mas não há nada de especial nisso. É incontável o número de lugares isolados, inóspitos, marginalizados que existem em todo o mundo. Não importa tanto traçar esses limites como superá-los. Os Açores têm algumas das melhores taxas de natalidade do país. E são a região que mais desperdiça talento por metro quadrado. Temos algumas das piores taxas de pobreza e de iliteracia. Um triste fenómeno, que eu acreditei que se podia combater e transformar, a médio e longo prazo, com uma ação cultural concertada, uma simbiose entre os mundos da educação, das artes e da academia, das ciências exatas e sociais, uma dialética contínua entre as populações e as instituições. As fronteiras, por serem estreitas, podiam ser-nos vantajosas: os limites dos problemas são localizáveis. Mas qualquer tentativa de mudança em profundidade esbarra em camadas de resistência, impreparação, apatia, sobretudo nos meios do poder político, mas também naqueles que dele dependem direta ou indiretamente.
Aqueles bem-intencionados que logram transformar seja o que for acabam engolidos pelo ambiente abúlico que os rodeia. É mais fácil louvar a bruma insular e fazer de cada açoriano um D. Sebastiãozinho sempre a regressar do nevoeiro infinito. A pobreza e a iliteracia fazem muito jeito: tornam as pessoas domesticáveis. Eu vi e vivi a pobreza com a carne viva toda à mostra. Vi a miséria de corpo e de espírito. Não vim das classes de poder que se movem nos círculos por direito de herança e sobrenome. Falidas moral e intelectualmente, mas que nunca viram a porta do desemprego à frente. Escrevi para isso e contra isso. Quando me senti suficientemente derrotado, vim para Lisboa, onde nada é diferente. São os mesmos problemas, transversais a quase todas as áreas, em escalas diferentes. Ponta Delgada é pequena: vista de dentro, tudo é sobredimensionado. Em Lisboa, a distância dos meios permite-me uma certa sanidade mental. Não os frequento, vivo no vaivém da minha rotina. Mas encontro os mesmos problemas numa instituição como a escola. Dou aulas. Todos os dias tenho de me confrontar com a mediocridade, com a mesquinhez e com o oportunismo saloio. Todos os dias tenho de observar o quanto de talento se desperdiça em nome de valores tão altos como encher o próprio bojo e proteger o próprio lugar.
     Eu tinha a minha ilha dentro da ilha. Tinha o meu bairro, os meus bares, a minha livraria, as minhas noites, os meus amigos. Não me esqueci de nada disso, tenho saudades de tudo isso. Mas não me podia dar ao luxo de enlouquecer tão cedo. Continuo a fazer exatamente o que fazia: estudo, trabalho, escrevo. Tenho a vida toda para continuar.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 29 de novembro de 2024
    

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