sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sobre William Morris e o seu romance sobre o marxismo utópico no século XIX


Ainda não me livrara do sentimento de opressão, e onde quer que estivesse,
dificilmente teria consciência do lugar; portanto, não era de admirar que me sentisse bastante confuso, apesar do rosto familiar do Tamisa.

William Morris, Notícias De Lugar Nenhum


    Vou começar por dizer que este grande romance, Notícias de Lugar Nenhum, Ou Uma Época de Tranquilidade, um Romance Utópico, tinha-me passado ao lado ao fim de tantos anos de estudo e leitura. Mas pela pessoa que esteve envolvida pela sua publicação entre nós não duvidei nunca do seu valor. A saber: foi a Historiadora e Professora Raquel Varela da FCSH UNL/Lisboa, também muito conhecida como comentadora regular da nossa televisão nacional, que o sugeriu à editora Letras Lavadas para uma primeira publicação em Portugal, e de imediato aceita pelo seu responsável José Ernesto de Chaves Rezendes. É uma edição muito especial no seu grafismo e arte de capa, com uma tiragem por enquanto reduzida – e uma ficção maior do século XIX, que viria a ser um dos livros mais comentados pelas academias de estudos anglófonos e universais e pelos críticos maiores do seu tempo e do nosso. Quando falei sobre este romance com Onésimo Teotónio Almeida, Professor Catedrático da Brown University, ele confirmou-me tudo isto e muito mais. Talvez o maior conhecedor entre nós de certa problemática marxista, precisamente a ideia de “ideologia em Karl Marx”, fiquei certo de que tinha lido um grande romance, para além do conhecimento histórico que temos do século passado e de hoje sobre o que se tornaria a muito antiga ideia de utopia vinda, pois, do canónico Utopia de Thomas More desde a sua publicação em 1516. Esse termo grego que significa em precisão “lugar nenhum” traduz-se, por assim dizer, no lugar desejado sempre fora, supõe-se, do alcance da humanidade.

    Para além das palavras do posfácio de Roberto Della Santa e de Raquel Varela, Onésimo Teotónio Almeida enviou-me de imediato um longo ensaio de Ruth Kinna que analisa a crítica maior ao romance de William Morris. Os nomes dos especialistas são muitos e todos eles prestigiados, foi-me só ler as palavras de EP Thompson, o grande crítico modernista e pós modernista para que eu me desse conta da grandeza literária deste romance. Se tivesse sido escrito nos nossos tempos creio que o não leria depois de saber da sua temática e proposta utópica. Só que vindo do seu tempo, quando Karl Marx já tinha feito sair o Manifesto Comunista e William Morris era desde sempre um amigo chegado de Frederick Engels (que discordou da ficção aqui presente por não levar em conta a “cientificidade” do marxismo), a sua prosa é um poema à possibilidade de uma outra sociedade de igualdade e fraternidade, como nunca haveria de acontecer nem nesses tempos nem nunca na História posterior. A grande literatura tanto trata de realidades vividas como de realidades desejadas por quem sente a opressão dos sistemas que evoluíram até ao estado presente das nossas sociedades: a ganância, a mentira útil, a imposição de modos de vida, e sobretudo o castigo de quem cai fora do sistema ou nele participa, mesmo que dessa condição não tenha consciência.

    Notícias de Lugar Nenhum inicia com a brutalidade da sociedade britânica, esse outro berço da revolução industrial, com sindicatos e seus trabalhadores associados em 1875 em luta violenta com as forças da autoridade a mandato dos magnatas e outros senhores do Poder. De associações diversas nasce a contestação de rua (Trafalgar Square é um sítio dessa luta brutal) até que a mudança radical acontece. Depressa o narrador de William Morris começa a recontar toda a história do movimento que consegue reconstruir a sociedade segundo os seus preceitos do que constitui uma sociedade onde nem sequer a palavra “governo” é mencionada. A estrutura do romance é simples e plausível: uma viagem de um estrangeiro Tamisa acima, parando de quando em quando para a nova e inesperada convivência entre todos, a cidadania agora feita de um quotidiano onde cada um faz ou produz o que gosta, vive em comunidade ou em casas humildes mas por todos desejadas. As analepses vão contando aos mais novos o que era um passado de dor e submissão aos donos daquele mundo, que ainda existe noutras geografias próximas e longes. O romance é feito de breves passos narrativos e curtos diálogos, o leitor só pode desejar viver neste sistema-não sistema, em tranquilas margens fluviais que representam o resto do território liberto e em paz total. Os fabricantes de coisas inúteis feitas à custa do trabalho mortífero dos trabalhadores desprotegidos e desrespeitados para a felicidade de cada um – já não existem. o trabalho essencial e por vontade própria e conforto na simplicidade de cada teto entre o riso e a conversa dos dias tranquilos e bem vividos. A viagem Tamisa acima significa e torna-se a metáfora da subida feliz e estável, e não a luta metafórica do Albert Camus em O Mito de Sísifo. Aí a pedra rola sempre para baixo, derrota o suor humano e a sua esperança.

    Há sempre algo irónico em qualquer sistema literário – livro contra livro, ideia contra ideia. Notícias de Lugar Nenhum, na linguagem de poesia pura sobre um outro destino humano, vem do país, cultura e literatura que até ao século passado produziu as mais improváveis narrativas utópicas até ao século XIX, e de certo modo até ao nosso tempo. Depois de Thomas More e William Morris viriam as mais violentas distopias: Admirável Novo Mundo, de Aldous Husley, e de George Orwel com 1984 e O Triunfo dos Porcos. Se Admirável Novo Mundo previa o domínio das máquinas sobre o Homem, Orwell já falava no totalitarismo que por toda a parte parece a profecia que nos venceu. Aí está, num autor como no outro, o domínio e a opressão do Big Brother – não estarás sem o nosso olhar, é outro modo de o dizer controlado e muito menos seguro no mais escondido recôndito do mundo. Ler William Morris, ainda nesta fase da nossa existência, é lembrarmos do que poderia ser e nunca foi. A aparente romantização do autor quanto a séculos passados, quanto ao medievalismo, por exemplo, é questionável segundo todos os pontos de vista. Escravos satisfeitos não poderiam constituir uma sociedade sem liberdade e sem as condições essenciais de vida.

    Raquel Varela escreve no posfácio que seria esta sociedade socialista, a de Notícias de Lugar Nenhum, a sua sociedade ideal e na qual preferiria viver. Infelizmente, nem toda a literatura da bondade e felicidade perfeita tem a ver com o que dizem ser a natureza humana e os seus piores e incuráveis instintos. A tentativa de chegarmos às margens do Tamisa, de todos os Tamisa, tem falhado muito tragicamente. No entanto, sem a noção de “utopia” não lutaremos nunca por outro modo de ser e estar uns com os outros, o que não seria menos trágico. A grandeza do romance de William Morris reside aí mesmo, uma proposta artística de nunca deixarmos de lutar contra quem nos oprime de maneira brutal ou através da criação de “valores” que nos tornam escravos voluntários dos sistemas da compra e venda dos mais falsos e inúteis utensílios de uma felicidade imposta, enquanto a maioria da população permanece caída na miséria dessas coisas e condenada permanentemente ao insulto, que é a sua condição de vida diária.

Notícias de Lugar Nenhum vem de um autor que foi um artista variado e total da beleza humana. Os seus trabalhos vêm mencionados na própria capa do livro, que traz algumas pinturas ou quadros das suas outras obras. Tem ainda a colaboração do artista açoriano Urbano, que trabalha com a Galeria 111 de Lisboa. Conteúdo e forma fazem deste livro um objeto de arte em si próprio. O prefácio é da autoria de outros dois estudiosos brasileiros, Michael Lowy e Leandro Konder.

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William Morris, Notícias de Lugar Nenhum Ou Uma Época De Tranquilidade/Um Romance Utópico (tradução, revisão e notas de António Simões do Paço), Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2024.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 22 de novembro de 2024


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