Quebrado nas ondas da ilha/anda o silêncio a passar/fundindo hastes e nuvens/no seu pulso, devagar…
Ana Ferraz Da Rosa, Regressos
Por estar na Praia da Vitória a apresentar Regressos, a nova poesia de Ana Ferraz Da Rosa, começo por citar uma frase já canónica de um dos nomes maiores da grande literatura de língua portuguesa do século passado, naturalmente Vitorino Nemésio: “Para nós, a geografia vale tanto quanto a História”. Com efeito, toda escrita de Ana Ferraz Da Rosa, em prosa diversa, sobre a qual eu também escrevi, e agora versos, a ilha, ou melhor, a vida em ilha, é esse bailado e quadros sucessivos da nossa paisagem sempre a oscilar entre a luminosidade e a escuridão, ou o azul do mar virando subitamente em águas de chumbo, as nuvens sempre carregadas de cinzento e ameaça. Por certo que todos sabem que a autora tem formação e pratica as artes aqui mencionadas ou insinuadas, transportando para as letras essa sua dança interior que ora nos transmite a sua e nossa melancolia, como abre as janelas viradas para o mar e para o que ela intitulou num dos seus romances A Cidade Sem Nome. A poesia foi sempre esse exercício de catarse e a um tempo o cerimonial de estarmos do mesmo modo: firmes na terra do nosso coração enquanto nunca deixamos de imaginar a humanidade para além do horizonte que ora se abre, ora se fecha. O simbolismo na nossa poesia nunca mais desapareceu desde Roberto Mesquita no seu marcante “Almas Cativas”. O olhar da nossa poeta abrange a simultaneidade de tudo que nos reafirma a vida, de tudo que caracteriza o nosso modo de estarmos e sermos, o querer ficar e o querer partir, sem nunca abandonarmos o que a Adelaide Freitas chamou no seu próprio romance Sorriso Por Dentro Da Noite. O que constitui o corpo literário de um povo é essa continuidade temática enlaçada em qualquer forma de escrita. Mesmo que porventura não se leiam mutuamente, vivem ou viveram uma realidade comum e tudo que enforma e nos condiciona o olhar e o sentir esse espaço de umas ilhas com todas as suas características culturais e o pulsar dos dias e das noites. Octávio Paz, o grande mestre da literatura mexicana, dizia algo muito parecido com o que acabo de tentar contextualizar a sequência de poemas que constituem Regressos – somos povos que vivem a dualidade da festa entre as lágrimas provocadas pelas mais variadas circunstâncias na vida de cada um e da comunidade. Eis o que chamamos da universalidade de palavras formalizadas em qualquer língua, somos todos iguais para além das mais próximas ou distantes geografias. Só mais uma citação de outro grande escritor do século XIX, ninguém menos do que o russo Liev Tolstoi no seu assombroso romance Anna Karenina, que abre a primeira linha, mais ou menos, com esta observação lapidar: Todas as famílias se parecem na sua felicidade, todas as famílias se parecem na sua infelicidade. Não acredito em hierarquias de grande ou pequenez literárias, apenas quero sublinhar que a boa ou grande literatura também se parece de língua para língua ao longo da História, ou ainda muito para além de famas instantâneas, de considerações críticas das sucessivas gerações. A tendência portuguesa, e não só a portuguesa, foi sempre o mau hábito de endeusar uns poucos, queimando nessa escala de valores literários tudo o resto à sua volta.
Esta é uma poesia – como aliás será toda a escrita criativa – um reativar da memória tanto no intimismo existencial de Ana Ferraz Da Rosa, como é tornar todos os seus, desde a sua mãe e o seu marido, desde figuras que impuseram amenamente a sua presença nesse olhar da poeta, os que ficaram e os que partiram. Nessa sentido, Regressos é a lembrança de perdas várias profundamente sentidas, a saudade de tudo que foi bom tornada sofrimento perpétuo. Analisar um livro de poemas é tentar encontrar o fio unificador de cada verso ou de estrofe em estrofe. Pressentimos nestas páginas naturalmente a autora como personagem, por assim dizer, cada dia ou momento que ela destaca na sua solidão e na sua convivência festiva com todos os seus. Uma vez mais, poesia é memória, pode ser de lugares, pode ser instantes alegres, pode ser de uma vida que já não é nem poderá ser mais. Esta poesia não será só – continuo em termos temáticos – o choro pelo que foi, como se parte de nós próprios. É fazer que as palavras cadenciadas, ritmadas, a palavra como retrato dos que escolhemos serem imortais na nossa consciência, a saudade de tudo e todos que não voltarão mais fora dessa insistência memorial e memorialista. A cidade sem nome afinal foi sempre o seu lugar de vida, de partilha, o feliz ou infeliz turbilhão que nos foi dado viver. Do poema “Mãe”: Passaste por mim sem me deteres/nos teus braços constantes e breves/presentes no ritmo dos meus./braços para saudarmos os ventos/ e ser leve a viagem,/sem remorso dos temporais.” Sem remorso porque num tempo que se foi, fizemos, faríamos tudo para que vida fosse esse sorriso por dentro da noite, porque somos incapazes de imaginar ou sequer aceitar o que o destino nos guarda a todos. A poesia, nos essenciais pessoalismos, na sua interioridade mais comovida, ou fala para além do ou da poeta, ou nada dirá aos seus eventuais leitores. A grandeza da literatura é sempre múltipla, fala de quem a escreve mas tem de ser reconhecida de imediato em cada uma das suas páginas. Todos “regressamos”, mais do que a lugares, regressamos a nós próprios. Sem isto não há qualquer significação das artes em geral, e muito menos em qualquer escrita que abrace o seu recetor.
O mais longo poema deste Regressos de Ana Ferraz Da Rosa traz o título de “Trova”. É-me muito especial, até por razões pessoais que a autora não suspeitava, nem poderia suspeitar. Trata-se de um regresso voluntário ou involuntário de um filho de imigrantes que quer ou é impelido a visitar a casa dos seus pais na ilha, as suas raízes primordiais. Está caída, a casa, no estado de ruínas que testemunhamos em outras aqui e ali. É um outro choro muito significante, cheio de inteligência e emoção. Marralhé é o nome de um regressante. Ao ver a história caída dos seus pais, vê, inevitavelmente, a sua maior perda, a sua identidade assaltada pelo tempo, pela geografia, pela história da sua e nossa imigração. Uma nota pessoal. Acontece que fui levar os meus próprios pais doentes pela última vez às Lajes, a caminho definitivo da América. Voltei à nossa casa das Fontinhas, e tentei sentar-me na cozinha a ler um jornal qualquer. Meia noite a meio da vida, como na letra de Amália. Não segurei a emoção e a solidão. O meu templo dourado, uma casa humilde da nossa ruralidade, fechava para sempre. Revisitei tudo, cada fotografia, cada gaveta, cada porcelana, cada cama, tudo a forçar-me a memória desejada e indesejada. “Sai pelo jardim e fuma um cigarro”, canta magistralmente Camané. O poema de Ana Ferraz Da Rosa diz muitíssimo mais do que eu vivi – a marginalidade acontece das mais inesperadas história pessoais, como se sabe. A minha experiência tinha sido outra, radicalmente diferente no que agora lia. Só que reconheci de imediato alguns dos meus conterrâneos no outro lado do mar a oeste, reconheci-me, em parte, a mim próprio. Bem sei que “Trova do tempo que passa” de Manuel Alegre nada tinha a ver comigo. O vento também não me trazia notícias do meu país, de qualquer um dos dois. Na liberdade que conquistamos há cinquenta anos, esse vento metafórico era-me indifirente. As notícias são agora íntimas, não deixam de doer à nossa maneira, conforme o nosso estado de alma a cada hora, a cada dia. Tem a ver com as vidas comunitárias e íntimas. A dor permanece – e, uma vez mais, o sorriso por dentro da noite. “Trova” é um poema sobre a nossa dualidade, em todos os sentidos. Essa dualidade de ser e estar é para todos, para os que ficaram e para os que partiram. Somos todos imigrantes dentro e fora do nosso país, a um tempo com sentido de pertença e distanciamento, para não dizer alienação. Passado e atualidade juntam-se todos dias forçando o nosso questionamento constante e sem fim. “Trova” de Ana Ferraz Da Rosa é um poema supremo, sem igual na poesia açoriana que tem abordado a nossa peregrinação entre as ilhas e os continentes da nossa sorte ou mágoa.
Regressos faz parte agora do nosso, mesmo que por enquanto indefinido cânone literário, e ainda bem, das referências superiores na literatura açoriana, ou parte para o mundo a partir destas ilhas. Juntamente com a prosa de Crónica Das Visitas e Cidade Sem Nome, entre tudo o resto que Ana Ferraz Da Rosa trouxe aos nossos arquivos arquivos – tudo o que mantém viva, repita-se, a arte como memória nossa, neste livro a palavra contundente, a palavra significante de todo um povo, “do mundo que o português criou”, na afirmação do grande sociólogo brasileiro Gilberto Freire, quer queiram ou não os que entre nós confundem regimes políticos com a arte e a história – ou histórias – que desbravamos mundo fora.
Ana Ferraz Da Rosa, Regressos, Ponta Delgada, Letras Lavadas edições, 2024. Texto que foi a apresentação de Regressos na Praia da Vitória a 25 de Maio, 2024.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 31 de maio de 2024.
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