sexta-feira, 7 de junho de 2024

O escritor João Pinto Coelho fala da sua obra em breves palavras

 


Precisei de três décadas a estudar e a refletir sobre o Holocausto para me atrever a escrever sobre o assunto.


    João Pinto Coelho – diz uma nota biográfica num dos seus romances – nasceu em Londres em 1967 e vive atualmente em Lisboa”. Foi sempre um escritor muito especial para mim. Não só porque partilha comigo um passado americano, mas ainda mais desde que publicou o seu primeiro romance, Perguntem a Sara Gross, que foi finalista do Prémio LeYa em 2014, e depois nomeado para Melhor Livro de Ficção Narrativa em 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores, e logo depois escolhido para representar Portugal em 2016 no Festival do Primeiro Romance de Chambéry. Claro que estou aqui a reproduzir a informação que vem nas capas da sua obra. Torna-se de um dos grandes escritores de língua portuguesa com os dois romances seguintes, Os Loucos da Rua Mazur e Um Tempo A Fingir. É uma trilogia única na nossa literatura. Na temática central está o Holocausto que vitimizou numa grande e nefasta escala os judeus europeus entre 1933-1945. Se em Perguntem a Sara Gross desvenda os mistérios de asilados e conhecedores diretos da maior tragédia do século passado que já residiam nos EUA, ou de todo o conhecimento, João Pinto Coelho abre outra descoberta para mim: o conhecimento de uma América elitista de que eu nem suspeitava, em colégios privados, e depois a sua experiência no mundo do teatro nova-iorquino no qual trabalhou ou colaborou. Os três volumes aqui mencionados levam-nos à tragédia e criminalidade política, racial ou étnica na Alemanha, Polónia e Itália. São livros artisticamente devastadores para um leitor português: o tema assassínio e toda a História está enrolada brilhantemente numa prosa a um tempo escorreita, fina, recorrendo aos mais inesperados chamamentos do que hoje está e continua a ser a verdade daquele tempo. Creio que mais ninguém entre nós, ou na nossa língua mundial, escreveu deste modo completo sobre a tragédia aqui em foco.

    João Pinto Coelho integrou de modo destacadocontinuo a parafrasear – entre 2009-2011 duas acões do Conselho da Europa de Auschwitz, que investigou o Holocausto, depois fazendo ele diversas intervenções públicas sobre todo esse período da história europeia. O seu romance mais recente Mãe, Doce Mar regressa aos Estados Unidos e à identidade múltipla daquele grande mosaico humano. Sem guerra, mas com a maior conflitualidade identitária, a questão mais premente na literatura do nosso tempo. Uma vez mais, baixei a cabeça a um texto tão crítico como de homenagem ao grande escritor. Esse escritor que se mantém recatado e longe da habitual histeria de outros a pedir reconhecimento e declarações alheias de grandeza na nossa imprensa mais ou menos literária. É essa a humildade de um grande artista da palavra portuguesa que mais admiro, de quem espero sempre o próximo livro.

  

    No seu romance Mãe, Doce Mar, João Pinto Coelho – escrevi então aqui no Açoriano Oriental “regressa, talvez sub-conscientemente, a alguns dos temas que enformam a sua obra prévia, essa que o colocou num outro espaço literário português e internacional, como raramente acontece entre nós. Se considero Mãe, Doce Mar um romance “americano” é porque é isso que dele retenho: “a linguagem viva, ora enigmática, ora de significação direta, ora ambígua, assim como a sua invenção de personagens na sua vida exterior, mas muito particularmente na narrativa que nos leva aos seus mais íntimos sentimentos, alegrias e dores, neste caso, de uma família “reencontrada” doze anos depois da vida do protagonista silenciada num dos estados sulistas norte-americanos. Longe dos poucos que lhe restam, essa personagem de nome Noah vai descobrindo o mais improvável do seu passado, mãe e pai agora por parte, nunca lhe dizendo que o eram ou de como ele veio ao mundo, mantendo no escuro a solitária sorte da sua infância”.

    Aqui vai um pouco da nossa brevíssima conversa sobre tudo isto, sobre ele próprio.

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    A tua obra sobre o Holocausto foi-me uma surpresa literária muito especial. Mais ninguém na literatura portuguesa tinha tido essa audácia sabendo a História de Portugal nesta questão que definiu e define o século passado. Bem sei da tua experiência no Conselho da Europa. Diz-me agora o que te motivou a fazer uma trilogia constituída por Perguntem a Sarah Gross, Os Loucos da Rua Mazur e Um Tempo a Fingir. Estados Unidos, Alemanha, Polónia e a Itália…

    

    A ideia seminal nunca previu uma trilogia. Essa possibilidade concretizou-se a partir do momento em que, ao terminar de escrever Perguntem a Sarah Gross, deparo com uma insuficiência perturbadora, essa parte da História que é contada menos vezes e que, mesmo no contexto do Holocausto, implica outros atores no processo de perseguição e extermínio dos judeus, como sejam os cristãos polacos, de quem falo em Os Loucos da Rua Mazur, ou os fascistas italianos, presentes em Um Tempo a Fingir. Quanto ao que me levou a escrever sobre esta mancha na História da Humanidade, acredito que decorra dos mais de trinta anos de investigação que levo em torno da perseguição aos judeus europeus durante a primeira metade do século XX. As temporadas que passei no stammlager de Auschwitz I a trabalhar com outros investigadores ou os muitos encontros que mantive com sobreviventes dos antigos campos de concentração e extermínio transmitiram-me um património extraordinário de histórias e experiências pessoais. São narrativas que nos transformam e, a certa altura, provocam um impulso testemunhal que, no meu caso, levou à escrita ficcional.

    Combinar Arte e História deve ser algo de muito difícil. Obedecer aos acontecimentos documentados pelos historiadores de toda a parte, e depois partir para a imaginação pura. Fale-me desse impulso literário que te fez nunca recear qualquer resposta vinda não só do nosso país como de outros.

    Precisei de três décadas a estudar e a refletir sobre o Holocausto para me atrever a escrever sobre o assunto. Isso transmitiu-me uma segurança muito grande quanto ao rigor histórico, o que, dada a sensibilidade desta temática, julgo essencial, mesmo para um ficcionista. Diria que os meus receios não se colocaram perante a plateia crítica dos leitores, mas sim face àqueles que já não estão entre nós, as vítimas do grande desastre humano que varreu a Europa entre 1933 e 1945. Os mesmos que morreram em Auschwitz ou Treblinka e cujas últimas palavras foram dirigidas a quem lhes sobreviveu, implorando-lhes que não morressem sem contar o que ali se passou. É fácil falar sobre a rotina dos prisioneiros, sobre as hierarquias infames de Birkenau ou até sobre as etapas do processo de extermínio, tudo está documentado. Muito mais complexo é falar do inexprimível: o frio, a fome, o desespero ou o simples correr do tempo. Como disse Primo Levi, para falar de Auschwitz é necessária uma nova linguagem, há palavras que no lager têm significados radicalmente diferentes das que se pronunciam do lado de cá do arame farpado. Nenhuma narrativa deve aliviar o seu peso esmagador. O inverno de Auschwitz sentido na pele de um cadavérico seminu não se descreve, qualifica ou explica. Esse, sim, foi o grande constrangimento, e só quando o aceitei encontrei a legitimidade que aguardava para escrever o que queria.

    Mãe, Doce Mar, a tua mais recente de ficção, é o romance mais americano que eu li na língua portuguesa. A tua experiência nesse outro país foi assim tão significante?

    

    Foi. Trata-se de um romance com uma forte carga autobiográfica – e traduz algumas das experiências por que passei numa face relativamente precoce da minha vida. O encontro com os Estados Unidos no final dos anos 1970 foi muito impactante para um miúdo de doze anos, que chegava de um país ainda muito acinzentado, como era Portugal, recém-saído da Revolução. Tudo teve continuidade nos anos seguintes, nas temporadas que passei na Nova Inglaterra, na minha primeira experiência profissional num teatro perto de Nova Iorque e, claro, no conjunto das tensões familiares que servem de mote ao romance.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 7 de junho de 2024

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