sexta-feira, 24 de maio de 2024

À Conversa Com Pedro Paulo Câmara

 


Estou em permanente movimento, atento ao que vai acontecendo à minha volta e procurando novos desafios.


    Pedro Paulo Câmara conseguiu ressuscitar entre nós a obra suprema de Armando Côrtes-Rodrigues, um escritor açoriano que quase permanecia no limbo das atenções da minha geração. Amigo e colaborador de Fernando Pessoa, Côrtes-Rodrigues lançou o seu mais conhecido pseudónimo feminino Violente de Cysneiros, a ele conferido por Pessoa para o primeiro número da mais do que histórica revista Orfeu, que espantou todo o sistema literário português a partir de 1915. Não tenho espaço aqui para falar muito mais de Pedro Paulo Câmara, também ele natural de São Miguel, e já com uma obra substancial que oscila entre a poesia e ficção, e agora no ensaio de fôlego. Professor e escritor, depressa se tornou uma das nossas mais contundentes referências. Eis aqui a breve conversa que com ele mantive recentemente.

*

    Bem sei que começaste a publicar em 2011 com o livro Perfumes (Poesia). Mas foi o teu extenso ensaio biográfico e analítico, Violante De Cysneiros: O Outro Lado Do Espelho De Côrtes- Rodrigues? que mais me comoveu, porque não conhecia a tua obra anterior. Foi uma revelação para muitos da nossa geração tudo quanto diz respeito ao autor que antecedeu Vitorino Nemésio na questão que este viria a denominar de açorianidade. Que te levou a esta investigação e prosa sobre um dos mais esquecidos mestres da literatura açoriana e portuguesa em geral, amigo e colaborador de Fernando Pessoa logo no primeiro número da Orfeu em 1915?

    É verdade que iniciei a minha viagem literária pela publicação de poesia. Todavia, uma das produções que mais prazer me deu construir foi, precisamente, a Violante De Cysneiros: O Outro Lado Do Espelho De Côrtes-Rodrigues?, pela sua complexidade e pelo seu enquadramento. Esta obra é o resultado da publicação, pela Editora Ilha Nova e, posteriormente, pela editora Letras Lavadas, da tese que me faria alcançar o grau de Mestre em Estudos Portugueses Multidisciplinares. A pergunta colocada encerra um dos motivos que provocou a investigação sobre Côrtes-Rodrigues: é “um dos mais esquecidos mestres da literatura açoriana e portuguesa em geral”.

    

    Verifiquei, lamentavelmente, esse flagrante oblívio nos programas dos vários cursos que frequentei, entre pares e em diversas Academias. Poucos pareciam ser aqueles que se lembravam de Côrtes-Rodrigues e da sua produção literária, apesar desta ter sido assaz diversificada. Aquando da sua morte e em algumas datas comemorativas posteriores, foram várias as homenagens, os tributos os textos laudatórios. Mas e depois? A passagem do tempo e a memória dos homens, que tende a ser volátil e a deslembrar, com facilidade, encarregar-se-iam de colocar Côrtes-Rodrigues nas estantes poeirentas do esquecimento. Considerei, portanto, que seria o momento oportuno para o recuperar. Na minha opinião, e pelas investigações que tenho vindo a desenvolver, estudar Côrtes-Rodrigues é apostar na diversidade de perspetivas, já que, desta análise, poderão surgir novas hipóteses que possam vir a enriquecer a nossa compreensão de um determinado período histórico e cultural. Ademais, este trabalho visa proceder a uma revisão crítica, uma vez que as obras de ACR podem ser reavaliadas à luz de novas perspetivas e critérios críticos, o que poderá levar a uma (re)apreciação renovada do valor literário e cultural do autor e da sua produção literária. Urge, também, que se promova e estimule a preservação cultural. Deste modo, recuperar ACR corresponde, igualmente, a uma atitude consciente de salvaguarda e valorização da diversidade cultural e literária da ilha, do arquipélago, do país.

    É importante, sempre, realçar e relembrar que Côrtes-Rodrigues tomou parte de um projeto literário pioneiro em Portugal – como a questão acima já descortina – de facto, como atesta a participação deste na revista Orpheu, elemento vanguardista do movimento modernista português.

    Fiquei com a ideia que um e outro, Pessoa e Côrtes-Rodrigues, eram dois grande amigos e cúmplices. A costela açoriana de Fernando Pessoa teve alguma coisa a ver com isso? E as cartas entre os dois que estás recolher para publicação?

    Acima da origem, pela descendência de Pessoa e pela naturalidade de Côrtes-Rodrigues, creio que o elemento unificador destes autores foi a paixão pela palavra e por aquilo que esta pode proporcionar. Foi o verbo que os uniu e que consolidou essa cumplicidade. Aliás, Pessoa, na correspondência que envia a Côrtes-Rodrigues, afirma que ninguém o compreende como este seu amigo ilhéu, como atesta a carta datada de 19 de janeiro de 1915: “isto porque só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de mim uma noção precisamente no nível da minha realidade espiritual. Dá-se esta sua capacidade para me compreender porque você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso”. Tive a oportunidade, naturalmente, de ler e analisar a correspondência epistolar de Pessoa para Côrtes-Rodrigues, organizada – em momento oportuno – e publicada por Joel Serrão. Estas cartas revelam o autor, mas, acima de tudo, revelam o homem e desvelam, em parte, a relação entre ambos.

    Não pretendo, para já, promover a reedição das cartas de Pessoa para Côrtes-Rodrigues e, como sabemos, não se encontra a correspondência de Côrtes-Rodrigues para Pessoa; no entanto, um estudo mais aprofundado dos elementos epistolares de que dispomos seria conveniente. Aliás, a publicação A lição do poema: cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues, da responsabilidade de Celestino Sachet, é um exemplo da qualidade do espólio epistolar deste autor, à guarda da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Muitos outros estudos poderão ser, ainda, desenvolvidos. Existam investigadores interessados, que o manancial é abundante.

    Para já, a prioridade não é, como referi, trabalhar a correspondência de ACR. Tal não quer dizer, no entanto, que Côrtes-Rodrigues deixe de ser uma prioridade ou que não venham a surgir, muito em breve, publicações dedicadas a este. Deste modo, posso revelar que está já em fase de montagem, na gráfica, a obra Violante de Cysneiros: obra reunida, que pretende proceder à compilação dos textos deste pseudónimo cortesiano, dispersos por revistas e jornais do início do século XX. É o modo de, assim, facilitar o acesso a estes textos a todos aqueles que se possam interessar por este pseudónimo, este autor e as diversas temáticas trabalhadas. A obra contará, ainda, com duas comunicações que proferi, marcadas por um determinado tempo e contexto, e com tábuas cronológicas que podem nortear o leitor/investigador. Ainda no decorrer deste ano, será dada à estampa uma compilação de alguns textos dramáticas do autor, que não gozaram de tanta visibilidade como as peças O Milhafre ou Quando o Mar Galgou a Terra, textos estes acompanhados por uma embaixada de sua autoria e dissertações alusivas aos mesmos.

    Muito mais tens publicado, e ainda como participante em vários festivais e encontros culturais entre nós. Fala-me um pouco disso...

    

    Iniciei este percurso com o Perfumes, de facto, como mencionado anteriormente. Apesar de ter continuado a publicar poesia, nomeadamente as obras Saliências (2013) e Na Casa do Homem Sem Voz (2016), também me dediquei à prosa, tendo publicado o romance histórico Cinzas de Sabrina, em 2014, e Contos da Imprudência, em 2020. Ainda recentemente fui o responsável pela (re)edição crítica do Auto do Espírito santo, da autoria de Côrtes-Rodrigues, num projeto apoiado pela Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, terra natal do autor. De 2011 por diante, tenho vindo a participar em diversas coletâneas, como é o caso de Entre o Sono e o Sonho (2013); O Lado de Dentro do Lado de Dentro (2015); Colectânea Literária I, da Academia de Letras e Artes de Portugal (2017); O Livro da Amizade (2018); Luz de Natal (2019); Ideários I (2019); Ideários II (2020), ou o Avós: raízes e nós, mais recentemente, para referenciar, apenas, algumas.

Sou culturalmente bastante ativo. Tenho sede de conhecimento e de partilha intelectual, pelo que tenho participado em diversos colóquios e certames académicos, como, por exemplo, em diversas edições dos Colóquios da Lusofonia. Estou em permanente movimento, atento ao que vai acontecendo à minha volta e procurando novos desafios. Neste sentido, por exemplo, a partir da proposta que apresentei à tutela, fui o comissário da Exposição "Armando Côrtes-Rodrigues: Reflexos”, que esteve patente na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, o que foi bastante estimulante, porque me obrigou a sair de uma zona de conforto criada e alimentada ao longo dos anos.

Por natureza, sou, também, assaz curioso pelo que busco o diálogo, entre artistas e entre artes. Deste modo, tenho vindo a participar no Azores Fringe Festival e no Encontro Pedras Negras, iniciativas dinamizadas pelo criativo Terry Costa. Ainda o ano passado, fui o coordenador científico dos Encontros Literários de Ponta Delgada, projeto promovido pela Câmara Municipal de Ponta Delgada.

    São muitas as iniciativas em que participo e para que sou convidado, ora pelos pares, ora pelas editoras, livrarias, escolas, entidades… Já não sei quantas obras apresentei e quantos prefácios ou posfácios escrevi. Talvez, um dia, me sente a contabilizá-los, quando o tempo abrandar. Sei, porém, que ainda me doi na alma todos aqueles que recusei, por motivos diversos. Apesar de tudo o que foi elencado, conto muito mais o que não consegui concretizar ainda, do que aquilo que já consegui substantificar. Sou um eterno e incurável utopista.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 24 de maio de 2024. 

Sem comentários:

Enviar um comentário