sexta-feira, 17 de maio de 2024

Quando a poesia vai além de meros jogos de palavras

  

perdido nos dias cinzentos/penetro nas brumas/mergulho no mar à beira-terra/lavo as mágoas/e nutro o corpo

Aníbal C. Pires, Destroços À Deriva (poemas)


    A boa ou grande poesia não será feita só de imagens e metáforas, tantas vezes tão particulares que fazem alguns leitores abandonar as páginas de um livro, esses versos perdendo-se numa espécie de apologia do nada como nalguns quadros de pintura abstrata. É certo que este novo livro de Aníbal C. Pires, Destroços à deriva (poemas), vem ilustrado também pela artista Ana Rita Afonso, como tem acontecido nalgumas das suas obras anteriores, e lá chegaremos em breve. Há aqui uma continuidade de linguagens, e sobretudo de ideias, sem as quais qualquer escrita perde todo o seu sentido. O poeta parte da ilha para o mundo, e do mundo regressa sempre à geografia das suas memórias e afetos sem deixar de expressar ao leitor um interiorismo muito íntimo, mas que no seu andamento do quotidiano aproxima o leitor de uma mundividência que nos permanece comum sem nunca perder a originalidade de cada verso, de cada poema. Sim, Aníbal nunca deixa de nos transmitir a sua própria ideologia de combate, numa visão muito própria, contra o que ele entende ser o desequilíbrio dos mundos nossos. Não se trata de impor qualquer ideologia seja a quem for, tão-só (e é muito) não fugir do que lhe aflige, do que nos aflige como sociedade, quando conscientes do mundo que nos rodeia, do mundo pelo qual cada um de nós é responsável, tal como já tinha escrito no seu Esperança Velha E Outros Poemas. A História está aqui presente em direto e nunca entre linhas, é sugerida pelo próprio estado de ser e estar do poeta. Não há aqui palavras que se ficam, digamos, por sugestões ou insinuações. O leitor acompanha-o como que a ouvir uma sinfonia onde a tristeza antecede a euforia de estarmos e sermos atuantes. A grande arte é esse mistério de nebulosidade seguida da clareza do sol e de um certo bem-estar de alma.

    

    Na verdade os poemas deste livro não são “destroços” nenhuns, são os momentos significantes que definem, uma vez mais, a sua e as nossas vidas. A sua caminhada, desde que chegou aos Açores há mais de 40 anos como docente que sempre foi até à sua aposentação é naturalmente uma experiência muito própria, que sempre incluiu o ativismo político, mas que nos comunica a partilha de um lugar, de um tempo num solo e mar também para ele tornado ao longo dos anos esse tal “território do coração” de que nos falava o escritor americano Willie Morris. Tal como este grande autor que se havia retirado de um estado sulista para Nova Iorque em busca de uma carreira, Aníbal C. Pires nunca deixa de revisitar as suas origens continentais. Estes são poemas do momento atual, com as ilhas ao centro, como reavivam a sua memória desses outros lugares-pátrios, as suas andanças que lhe significam uma identidade, o sentimento de pertença a uma comunidade entre várias margens. Gosto de o chamar um ilhéu continental, como aliás, mesmo após cinco séculos de história, seremos ainda nós todos. Mais do que uma poesia portuguesa, é uma poesia do vasto mundo de língua portuguesa, feito de países e de uma Diáspora que ele bem conhece e muito aprecia. Não quero citar poemas integralmente num prefácio que é seguido das suas próprias palavras, apenas tentar criar nestas linhas o contexto universal que é o nosso, caracterizado nestas ilhas por um céu ora nebuloso, ora das nossas vida iluminadas pela bondade de outros, pelo sol que aparece e se esconde quase simultaneamente, o “espírito do lugar” reconhecido por qualquer um ou todos os seus versos, mesmo que ele neste livro reclame as intimidades da sua felicidade, demasiado humana, como um outro filósofo definiu há muito tempo, e a beleza, a “estética” dos seres humanos com quem ele convive, conhece ao longe, ou simplesmente imagina. Estes não são poemas só da escuridão que nos assola, muito pelo contrário.

    

    Destroços À Deriva (poemas) vai evoluindo de verso em verso nessa clareza de visão, e sobretudo no silêncio das suas casas aqui e além-mar, o calcorrear de pedras açorianas não escorregadias, mas sim firmes na sua crença de que a vida, sua e nossa, continuará a conhecer o mundo que nos é triunfal como a necessidade da luta contra os que de tudo fariam – fazem – um inferno. Temos nestas páginas o verde e azul dos nossos dias, como a desgraça indizível dos meninos de Gaza cujo destino, por que poderá simbolizar o pior da humanidade em muitas outras geografias oprimidas, abusadas, usadas a favor de minorias de toda a espécie, essas terroristas num sentido tão real como diabólico na sua ganância e violência que vão além das armas – boa parte do nosso mundo é para estes um recurso de riqueza roubada, de atentado aos mais elementares direitos e dignidade de todos os outros. Cada leitor terá a sua interpretação, a memória desperta, a ideologia que o comove. Aníbal C. Pires não esconde nunca essa interpretação do que conhece em palavras que brilham pela sua claridade, pela sua generosidade, pela sua cumplicidade com todos os que lutam desde sempre contra todos que nos esmagariam de todas as maneiras e proveito próprio. A sua poesia recusa um olhar banal e displicente – como boa parte da poesia dita, mais ou menos, académica – ante as forças que nos querem recusar dias tranquilos e de igualdade serena de todos os outros, o que um movimento de libertação democrática norte-americano chama os “noventa e nove por cento”.

    Eis aqui ainda a saudade de uma pessoa amada, a necessidade de nos percebermos a nós próprios e nos darmos conta, sempre, do “outro”, a humanização em silêncio de respeitarmos todos os que nos acompanham. Aníbal tem deixado ao longo da sua carreira literária, em poesia e prosa, a sua história pessoal e da coletividade a que pertence. Trata-se de um dos mais preciosos contributos aos nossos arquivos da arte literária. Quanto à muito debatida e indefinida açorianidade, a adoção das nossas ilhas dão-lhe esse estatuto pouco comum entre nós, de todo original da nossa literatura, como a prosa de Toada do Mar e da Terra, entre muito mais da sua escrita.

    


    U
ma palavra sobre Ana Rita Afonso, já referida por mim neste texto. A forma e cores das suas aguarelas são uma outra leitura de Destroços à deriva (poemas): vão além de qualquer abstração, ilustram com saber e brilhantismo os momentos variados de cada poema, as suas cores estão associadas às palavras do poeta. São as formas e as cores vivas ou mais escuras do que ela percebe ser o estado de alma, o estado de espírito do poeta quando aborda os temas que dão do mesmo modo forma a cada verso, a cada sequência poética do seu pensamento e da ideia subjacente a cada um deles. Nunca enchem a tela, como que a dizer que o mundo e a vivência do poeta vai continuar a preencher o que ainda ficou por dizer na busca de dias e de um mundo que que poderá ser redondo e sempre a girar, mas incompleto, desigual, a um tempo bom e cruel.

    Destroços à Deriva (poemas), creio, é o mais comprometido livro de Aníbal C. Pires. Não procura ideologia, procura a humanidade no seu melhor. O presente é este falso mosaico, que já não admite outras cores senão as suas e únicas. O que devemos perceber nestas palavras é que o poeta se recusa a sucumbir à desesperança – a luta é parte da vida, estar sempre atento às brechas de luz e felicidade. De resto, e é sempre muito nos contextos atuais, um rasgado elogio às mulheres sofredoras e a sua sacralidade e beleza em frente aos demónios que caem do “céu”, ou à beleza de outras numa cidade sem bombas e na aparência normalizada, sem raivas mortíferas de estranhos e criminosos.

Aníbal C. Pires, Destroços À Deriva (poemas), Ponta Delgada, Letras Lavadas edições, 2024.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 17 de maio de 2024



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