Vai aqui a segunda parte da conversa que mantive com o escritor João Pedro Porto. Não vou reproduzir a introdução inicial a estas palavras. Estão disponíveis em várias plataformas a quem as quiser relembrar ou ler pela primeira vez. Reiniciamos o nossos diálogo com a última parte à pergunta:
Como tem sido publicar numa grande editora nacional como a Quetzal, e a apreciação crítica de Teresa Martins Marques no JL quando diz que o romance A Brecha “… é um dos livros mais marcantes dos últimos 40 anos? Como é que isto afeta um escritor de uma nova geração açoriana?
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As gerações que compõem os meus anos de crescimento guardo, também, amizades inestimáveis no modo como nos empurramos recorrentemente uns aos outros sempre no sentido da continuidade da criação. Do meu ano de 1984, por exemplo, como não mencionar o Rui Couceiro, revelado há pouco tempo como grande romancista, para além de provado editor. E o Nuno Costa Santos, que é daquela família que se adopta, e com quem partilho a paixão pelo cénico, pelo celtismo, e por tanto mais - agora mesmo trabalhamos numa peça de teatro.
Quanto a publicar na Quetzal enquanto vivia em S. Miguel, foi à altura algo de uma novidade que alguém nascido, crescido e regressado à ilha, tivesse lugar numa editora nacional que publicava Homero, Vergílio, Borges, Magris, Lorca, Pessoa, Márquez, Llosa,… enfim, a lista é-lhes infindável. Aconteceu que o livro Porta Azul para Macau foi resenhado no jornal Público pelo inconfundível escritor e amigo Valter Hugo Mãe, talvez pela mesma altura em que participei na primeira antologia de contos do Centro Mário Cláudio, e isso deu-me abertura para que alguns doutos olhos lessem um novo manuscrito. Foi o editor e escritor Francisco José Viegas quem fez essa leitura e acreditou corajosamente na minha escrita. A Brecha, que é uma viagem epopeica pelas fases evolutivas internas do Homem, é um livro-aventura com as suas dificuldades - em que a narrativa principal é interrompida por uma peça de teatro, e arrematada por um poema épico que reconta toda a façanha -, mas o editor acreditou no seu público e na necessidade de alimentar um determinado tipo de leitor, que prefere o desafio da subida mais íngreme. Há um leitor que prefere sair da viagem literária com mais uns centímetros existenciais e com a vista ampliada. Por isso, o livro foi finalista do Prémio Correntes d’ Escritas, e tem encontrado recorrentemente o seu público (há poucos meses, chegou aos fabulosos olhos dos leitores do Clube de Leitura do incrível Paulo José Miranda; e a última pessoa a dar-me conta da sua leitura foi o poeta, romancista, ensaísta, crítico e investigador literário Hélder Macedo). Há, felizmente, fortes corações de exploradores que ainda batem nos peitos da contemporaneidade.
Não haverá, aliás, melhor representante do tipo humano desafiante e conquistador de desafios do que Teresa Martins Marques, que me é referência disso e da qualidade inquestionável de que uma pessoa é capaz quando se entrega por completo à ética e à estética dos seus objectos de estudo. A sua leitura vivida e vívida d’ A Brecha é-me uma vitória que guardo junto ao meu próprio coração, no mesmo amplo lugar que a ela reservo na totalidade. Quanto a como isso me afectou, a resposta é pragmática: lançou-me à escrita sem perdão. Desde então, escrevi dois livros de contos, quatro de poesia, e três romances, dois deles ainda por publicar; e escrevo agora um novo romance. Sem que isso obedeça a qualquer método. Já escrevi cinquenta mil caracteres em três semanas, e duzentas páginas em três anos; poemas em segundos e contos em minutos, e os mesmos formatos em meses. Mas que a vontade é amante do reconhecimento, é inegável, ainda que seja muito egoísta quando escrevo, desenho ou componho, pois faço-o para mim, sem público que não a minha própria vontade, talvez a vontade de me reconhecer em algo que exista fora de mim, que me relembre de mim durante os janeiros e fevereiros da ilha, que me leve tanto ao passado quanto me atire ao futuro, e me ultrapasse na duração.
Tens publicado poesia, traduções e outros escritos nas Letras Lavadas aqui de S. Miguel. Para onde vai ou para onde quer ir o escritor João Pedro Porto? Quem são os teus leitores idealizados na língua portuguesa?
Tenho publicado contos na Letras Lavadas, em versões bilingues, com traduções minhas para o inglês e de Blanca Martín-Calero para o espanhol; e poesia na N9na Poesia, numa colecção absolutamente inatacável, já com treze volumes, curada pelo amigo, grande poeta e profícuo romancista Henrique Levy, onde constam nomes de grandes poetas e amigos, como a imensurável Ângela de Almeida, o Daniel Gonçalves, Eduíno de Jesus, entre outros. Nessa mesma colecção, tive a felicidade de publicar uma poesia reunida (Monstros como Nós, 2022), um livro sui generis a que chamei de poesia epistolar (Sopro nos Olhos, 2023), e uma antologia por mim seleccionada e traduzida para o inglês (Towering Words, 2023). A tradução tem-me sido um jogo de dinâmica que muito aprecio, um abraço com outros escritores feito pelas novas versões dos seus escritos. Ter essa possibilidade é uma honra, e um outro exercício de crescimento, de descoberta, de aprendizagem.
E embora não seja adepto da divisão taxativa por géneros literários, sendo, a exemplo, um fervoroso adepto do quase defunto nouveau roman, posso dizer que, no formato romance, sairá livro novo com a chancela Quetzal ainda este ano – espero.
Mantenho, também, a boa fortuna de receber convites para antologias, revistas literárias e outras iniciativas formidáveis, tendo as últimas participações sido para a antologia poética Inventário das Travessias (Editora Labirinto, 2023), para a Oresteia - Revista de Literatura, Filosofia, Ciências Sociais e Artes (Setembro, 2023), com a coordenação de Victor Oliveira Mateus, para a antologia de poesia erótica Venérea (Cara Lavada, 2023), para a publicação Folhas, Letras & outros ofícios - 21, com a coordenação de João Rasteiro, para a edição comemorativa do 189º aniversário do Açoriano Oriental, que é o jornal mais antigo do país, e para o sexto número da revista literária Grotta, com a direcção do amigo e irmão de armas, Nuno Costa Santos.
Por estes anos pude, também, escrever letras para álbuns musicais, com Pedro Lucas e Carlos Medeiros. Terra do Corpo (2016) e Sol de Março (2018) foram-me experiências transformadoras de ritmos e melodias de escrita. Mais recentemente, fui convidado a traduzir o guião do novo filme de Frederico Custódio, Las Plantas no duermen, que na sua versão inglesa chamar-se-á The Waking Garden. A viagem da escrita continua e, assim, continua-me.
Costumo dizer que o futuro faz-se no presente, e com o passado às costas, e por isso não sei para onde irei, mas sei que continuarei a escrever, pois isso é-me um dos muitos veículos da felicidade. Sou verdadeiramente feliz no acto criativo da escrita. Não me interessa tanto o mundo literário e o mundo leitor (embora admita pagar cotas em ambos). São maravilhosos, decerto, mas sempre secundários. Sou feliz escravo do acto, do verbo. Escrevo. O resto é consequência, alguma feliz, outra menos. Mas o verbo permanece-me imprescindível. Prometo, no entanto, uma coisa: serei sempre paladino da Língua. Isso importa-me. Importa-me que um povo ame a sua Língua. Mas não incondicionalmente. Como em tudo no amor, terá a Língua que dar razões para ser amada. Há-que dela cuidar e bem usar. A escrita despida deixa-nos ao frio, e depois qualquer roupagem nos serve. Somos vítimas desse engano, e a qualidade literária tem vindo a sofrer com um ciclo de mercado, em que se fornece o que a maioria quer, quando não se educa esse querer.
Por isso, os meus leitores idealizados na Língua portuguesa são aqueles que a querem amar, descobrindo ou redescobrindo esse amor com a coragem que esse acto pede. Acreditemos nos leitores e na sua inteligência, tal como acreditamos na bondade, pois quanto mais se acredita nestas coisas, mais lhes damos a obrigatoriedade de ser.
O autor João Pedro Porto fotografado por Alfredo Cunha.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 10 de maio de 2024
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