sexta-feira, 3 de maio de 2024

Com João Pedro Porto (I)

 

João Pedro Porto por Alfredo Cunha
Na adulticidade e ao longo dos anos, firmei amizades com muito escritores e criativos nacionais e internacionais… pertencentes a múltiplas gerações.


    A epígrafe deste texto vem numa das respostas de João Pedro Porto à minha entrevista com ele. Distinto autor açoriano do que venho chamando a geração seguinte, quase toda a sua obra literária é mencionada nesta entrevista. Publicou recentemente uma tradução de vários poetas, Towering Words , incluindo a alguma da sua, e da sua inteira autoria, Monstros Como Nós, livros da No9na Poesia (Nova Gráfica) dirigida por Henrique Levy. Está à espera da publicação do segundo romance numa editora nacional, Quetzal. Esta nossa conversa será publicada em duas partes. Basta por agora reafirmar o que outros têm dito, principalmente da sua ficção, desde Valter Hugo Mãe a Teresa Martins Marques, quando ela diz sobre o romance Brecha: “...Um dos livros mais marcantes dos últimos 40 anos”.

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    A tua trilogia constituída pelos romances O Rochedo que Chorou, O 2egundo Minuto e Porta Azul para Macau foi para mim um ato literário de grande significado quanto a uma temática de vida em ilha e naturalmente de vidas universalizadas, em que tudo parece ou é uma metáfora do mundo. Isto foi o início para outras partidas de uma nova geração de escritores açorianos.

    Tenho, realmente, vindo a chamar-lhe a Trilogia Insular, pois no primeiro livro a personagem principal metamorfoseia-se numa ilha, no segundo, um arquipélago é o último reduto para um regime experimental, meritocrático e eventualmente distópico, e no terceiro, Lisboa é transformada num conjunto de sete ilhas - e não colinas - e é palmilhada por um bando de jovens autoproclamados metarealistas que faz publicar um formidável e perigoso manifesto. São narrativas insulares porque creio maravilhosa a nossa capacidade de usar um pequeno palco para conter todo o mundo. E não haverá palco mais pequeno do que uma ilha, seja essa uma duna solitária num grande deserto, o zénite de Zermatt, ou uma ideia original que ainda não encontrou um ouvido. Ilhas há em todo o lado e em todos nós, também. Por isso, estudar a condição humana, é estudar a hermenêutica da ilha. É estudar a completa semiologia da solidão, e escrever-lhe todos os tomos e juntar-lhe anuálias, pois somos criaturas relacionais, e estudar para além da nossa essência, é procurar conhecer a totalidade do que somos.

    

    Sei que escrevi a trilogia sem recorrer à geografia e à cultura local, e com a excepção da capital olisiponense, não creio ter ido buscar outras referências. Confesso que fugi literariamente dos Açores, não tanto para fugir, mas para poder regressar - porque mais do que a partida, o regresso é o tema do insular -, e para poder habitar a minha ilha e as minhas pessoas. Escrever os Açores seria, para mim, um confinamento incomportável. Usá-los para escrever o mundo foi-me a melhor solução. E creio que temos obras canónicas que o fazem melhor do que eu alguma vez o faria. Lembrando-me de um amigo e autor maior que o fez inigualavelmente, evoco ter lido o livro O Mar de Madrid de João de Melo pela mesma altura em que recebi de oferta uma serigrafia de Cruzeiro Seixas (enviada pelo mestre depois de este ter lido o primeiro livro da trilogia). Ali, a Praça dos Restauradores figurava inundada e com muitos tipos de embarcações; e isso instantaneamente fez-me conjurar a ideia para Porta Azul para Macau. Por isso acredito que a ponte segura e oculta entre as ilhas e a ilha maior que é o continente, foi-me sempre frutuosa. Numa breve e verdadeira anedota, quando apresentei esse mesmo livro na maravilhosa livraria Ferin, em Lisboa, numa noite de temporal e chuva torrencial, o taxista que me transportava alvitrou-me de que um dia, com todo aquele pé d’água, navegaríamos por ali pelo Chiado em barquinhos. Mal sabia ele ser essa a história do livro que eu, então, levava nas mãos.

    Em 2011 fui primeiro publicado aqui no arquipélago por alguém que é o grande mecenas da literatura local e actual, e que viria a ser-me um grande amigo, o Sr. Ernesto Resendes, em edições de irrepreensível beleza; e depois deu-se a sorte continuada de ser lido a dois mil quilómetros de distância, por pessoas que acreditaram na minha escrita, e lhe deram novos pulmões para novo fôlego. Cheguei a receber correspondência de um leitor do Japão. Se tudo isso engajou algumas pessoas na escrita, se lhes deu verve para encontrar as suas próprias vozes e caminhos, não posso deixar de sentir a particular felicidade de quem aponta o dedo e vê seguirem a direcção. Espero ainda conseguir fazê-lo de inúmeras e diferentes maneiras, e prometo nunca apontar nada que já lá esteja, visto e revisto. Tudo o que deve ser apontado, deve também ser inaugural.

    Não será desinteressante considerarmos a última parte da pergunta - “nova geração de escritores açorianos”, será quase redundância no grande e ininterrupto rio do tempo, pois a nossa geografia produzirá sempre novas vozes, de diferentes tons e timbres. Consideremos a narrativa do náufrago, ou do cônsul enviado para a estação mais longínqua, ou a do viajante perdido para a imensidão; em todas se conjura a necessidade imediata do relato, do diário, da descrição, como se todos fossemos Polo rente ao grande Khan, ou Scheherazade rente a Shahryar, sem percebermos que somos sempre ambos, e que há dentro de nós a prerrogativa de contar a história. E nós, os literais insulares, seremos sempre essa díade. Ouça-nos quem se quiser ampliar, teremos sempre (o) que contar.

    Como tem sido publicar numa grande editora nacional como a Quetzal, e a apreciação crítica de Teresa Martins Marques no JL quando diz que o romance A Brecha (que segue a mencionada trilogia) “… é um dos livros mais marcantes dos últimos 40 anos? Como é que isto afeta um escritor de uma nova geração açoriana.

    
    
foto de Aníbal C. Pires
    C
ome
ço pelo fim da pergunta. Nunca me considerei parte de uma geração. Convivi muito com a geração de 40, que era a do meu Avô e do seu Círculo Literário Antero de Quental; com a de 70, também, e pouco ombreei com as restantes, mas nunca me senti entrosado em nenhuma. Toquei piano para o Sequeira Costa, desenhei com o Artur Bual, correspondi-me com o Cruzeiro Seixas, e com muitas outras pessoas de múltiplas áreas da arte e do conhecimento, que me inspiraram, orientaram e desorientaram no meu projecto estrutural. E isso deu-me um particular sentido dual de solidão e de impossibilidade de solidão, pois pude sempre recorrer a qualquer braço geracional - afinal, uma bússola inteira terá vários cardinais.

    Aprendi o gosto tanto pelo realismo como pelo surrealismo e o modernismo com a geração de 40, fui iniciado no meio literário pela Livraria SolMar, e na publicação pela geração de 70, com a leitura de Urbano Bettencourt e a inabalável crítica literária de Vamberto Freitas, acabando por ter presença recorrente em vários números do seu BorderCrossings. Quando comparou, então, a minha escrita à de James Joyce, anos depois de eu ter estado deitado sob a chuva de Dublin e sobre as relvas da Trinity College a ler o Ulysses e o Finnegans Wake, o nosso canónico crítico literário da veia de Edmund Wilson, deu-me o reforço positivo fulcral para a continuidade do acto criativo.

    De resto, devo dizer que fui motivado aos dez anos, na escola, pela brilhante tutoria do poeta Emanuel Jorge Botelho; em casa, pela poesia do primo Eduardo Bettencourt Pinto; e, no topo da adolescência, pela orientação do professor, amigo e poeta Fernando Guimarães. Sem nunca olvidar a profunda influência do meu Avô, de quem herdei quase todas as características estruturais da personalidade, e muitos dos seus gostos (do amor incondicional por Paris às preferências sartoriais por fatos, dos filmes com o Jimmy Stewart aos quadros de Modigliani, dos poemas lidos pelo Villaret no São Luís às músicas do Yves Montand), e com quem cresci a ler toda uma vasta biblioteca que agora amplio por conta própria.

    Na adulticidade e ao longo dos anos, firmei boas amizades com muitos mais escritores e criativos nacionais e internacionais (que guardam a minha leal admiração e que muito me influenciaram), pertencentes a múltiplas gerações. Valter Hugo Mãe, Mário Cláudio, Antonio Gamoneda, Assis Brasil, Paulo José Miranda, …; e muitos escritores da América do Sul, poetas Egípcios, … Tomei gin(s) com Luís Sepúlveda, ainda sem saber que ele falava belíssimo português; e fingi-me Inglês nos BAFTA de Piccadilly, na British Psychoanalytical Society, e fiz perguntas a Bernardo Bertolucci, pois sou um assumido cinéfilo, com verve de quem disso tem mesmo muito vício (e mais confesso, outra vida ter-me-ia visto como realizador, pois é essa a minha maior paixão. Ser um género de David Lean seria o maior e agora o mais inatingível sonho. As quase quatro horas do seu Lawrence da Arábia (1962) rodam no projector pelo menos uma vez por ano lá em casa; e quando agora fiz os quarenta anos, a minha mãe ofereceu-me uma primeira edição e primeira impressão, de 1935, do livro Sete Pilares da Sabedoria, o único escrito precisamente de T. E. Lawrence). Sempre encontrei algo nas pessoas. É aí que está o verdadeiro tesouro - que no clássico de Stevenson, também está numa ilha. Enfim, nunca fui tímido em querer beber da fonte do Hipocrene, essa mítica origem sagrada para as musas, e que mais não é do que a própria humanidade e os seus mais de mil humanismos. E espero poder ainda fazê-lo pelo resto de uma aventura de vida, pois é nisso que ela toma o seu tamanho…

O autor João Pedro Porto fotografado por Alfredo Cunha, o grande fotógrafo de Abril.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 3 de maio de 2024.

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