Procuro-me como lugar – cada um de nós é uma morada e faço uma jornada à procura, sem uma bússola, desse ponto.
A obra literária de Nuno Costa Santos é já volumosa, e inclui poesia, ensaio e ficção, biografia e autobiografia. É um dos mais versáteis e atentos criadores artísticos da geração açoriana entre a minha e os mais novos. O seu mais recente livro, Como Um Marinheiro Eu Partirei: Uma Viagem Com Jacques Brel, uma biografia ficcionada, contém as formas principais que toma a maior parte da sua escrita, em que o autor interage com os seus próprios personagens, e em que a realidade e as estórias aí revisitadas fazem parte da sua própria caminhada de vida e questionamentos existenciais. Para além de tudo o mais, o autor é o fundador e dinamizador do Arquipélago de Escritores de que falamos nesta nossa conversa sobre a sua evolução e o lugar que é dado a uma grande revista, Grotta, seguindo ainda com outros projetos que nos são relatados nas palavras seguintes. Com uma vivência contínua entre os Açores e Lisboa, Nuno Costa Santos representa, para mim, uma viragem quase radical das nossas identidades num país que finalmente se tornou aberto e múltiplo nos seus imaginários – apesar de ainda alguns não darem por isso, ou fazem por ignorar enquanto o também doentio provincianismo português ainda não foi completamente esclarecido.
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Céu Nublado com Boas Abertas é um dos livros que mais me impressionou em termos literários e temáticos. Esqueçamos por agora a dita açorianidade. Fez-me lembrar quase todos os romances americanos “de família” no contexto de comunidades e até de um país ou cultura literária. Que te motivou a esta ficção?
Vários motivos. Várias causas. Algumas delas arrumadas, ou melhor, desarrumadas algures no inconsciente, de difícil acesso até para o mais competente dos investigadores do espírito. Posso tentar alinhar algumas pistas que moram na superfície. O livro de que falas é escrito num género, se quisermos, impuro, entre a realidade e a ficção, e usa recursos formais diferentes – numa montagem que inclui palavra e fotografia. Esta vocação por uma mistura autoral e na primeira pessoa entre factos e invenção talvez seja um prolongamento literário da ideia de sonho – os sonhos, como sabemos, muitas vezes partem, em cada de nós, de figuras concretas e transformam-nas noutra coisa, colocam-nas em situações estrambólicas. Porquê? Há teses, há conferências TED, mas ainda ninguém sabe, ao certo. É um mistério da fé – ou da ciência. Até os burocratas podem ser talentosos quando estão a dormir. Podem dizer perante as acusações de cinzentismo: “Tu nunca me viste a sonhar!” “Céu Nublado com Boas Abertas”, chegando dessa minha inclinação para géneros artísticos impuros, para a experimentação e para “sonhar acordado”, cruza um diálogo entre um neto e um avô em busca de um sentido e uma viagem com luzes e sombras, com absurdos e possibilidades, a uns Açores tão contemporâneos como imaginados. Sobre o tópico familiar, há um dado relevante. Quando cheguei a Lisboa para estudar, li, em casa dos meus avós maternos, “Exílio na Montanha”, um livro ficcional, escrito pelo meu avô, João Pereira da Costa, e nunca publicado, sobre a sua experiência enquanto doente de tuberculose no Sanatório do Caramulo, ocorrida nos anos 40 do século passado. Minto. Não é um livro apenas sobre essa experiência. É um livro, com ficção, sobre a experiência de viver. No caso, uma experiência extrema, que inclui uma doença que condicionou muito toda uma biografia. Em todo o caso, nada é aqui, como em quase tudo, inequívoco. A doença e todas as suas sequelas psicológicas não impediram que o meu avô provasse a felicidade de ser marido, pai, avô. De ler, conviver e festejar a liberdade política em Portugal (era um soarista convicto). De sorrir e rir. Ou seja, teve “abertas” na sua vida. Vinte e tal anos depois de ter feito a primeira leitura do livro, resolvi (não sei ao certo porquê) conversar com esse livro – uma conversa que inclui citações, reescritas na terceira pessoa, reflexões e o cruzamento com a tal viagem emotivo-surreal que um “eu” que se confunde com o meu faz. Nesse movimento ficam fixados dois tempos nos Açores – o da vivência numa freguesia rural micaelense, nos anos 30, 40, 50 do século passado, e uma certa vivência insular, real e fantasiada, destes anos recentes. Real porque, em várias das histórias, tem um fundo documental e baseia-se em notícias e ocorrências pesquisadas ou ouvidas. Pelo meio, faço uma espécie de homenagem pessoalíssima à arte da ficção e convoco uma série de autores, literários, musicais, cinematográficos, que me marcam. Rebusco a minha infância e a minha adolescência. Procuro-me como lugar – cada um de nós é uma morada e faço uma jornada à procura, sem uma bússola, desse ponto. Não sei se o encontrei, mas, pelo menos, fiquei mais perto. Podia dar descontos nos impostos mas não dá. Enfim, traz uma série de caminhadas e canadas, reunidas numa hipótese, mais clara quando o escrevi, sobre a existência: a de que isto de andar por aqui é, até ao fim do calendário, um céu nublado com boas abertas. Que se trata, diga-se, da expressão mais usada nos boletins meteorológicos açorianos. Se eu fosse meteorologista (quem sabe um dia), usá-la-ia diariamente. E ia dar uma volta de calções de banho e guarda-chuva.
Como pensaste e realizaste nos últimos anos o teu lugar entre tantos escritores açorianos, ou de origem açoriana, um pouco por toda a parte? Como tem sido essa experiência intelectual e literária adentro de um pequeno país como o nosso, e ainda mais de pequenas ilhas como as nossas?
Não sou muito, para o bem e para o mal, de estratégias. Vou ocupando o espaço que a minha voz – e alguns factores menos controláveis, de divulgação, de curiosidade dos leitores, de sorte, etc. – permite. Já o disse, já o escrevi: a designação de escritor açoriano é-me cara. Claro que um escritor é um escritor ponto. Mas um escritor pode, por opção própria, por um olhar de outros, inserir-se num espaço. No caso, num espaço geograficamente pequeno mas culturalmente vasto e com um histórico importante e plural, algum dele ainda a ser, mais largamente, assumido. Só por complexo alguém não quer assumir que vive numa rua, com um número de porta, e que nasceu noutro. Ok, admito – não é preciso andar com a tabuleta na mão e muitíssimas vez é até sensato ocultá-la mas, se for preciso ir buscá-la à mochila, tudo bem com isso. Até dá uma certa ordem ao caos, geradora de apaziguamento. Não é regionaleira, é a de assumir que se andou e anda num chão de cascalho, mesmo quando se está noutras pracetas, menos líquidas. Outra coisa. Há um lado em mim que nunca recusou o pequeno. Que até sente uma atracção pelos recantos e, noutro plano, humano, pela potência de grupo pequenos perante “os gigantes”. Quando era miúdo, ao assistir aos jogos da bola, normalmente puxava pelo mais pequeno, pelo menos provável de vencer. Uma mania que me trouxe, de vez em quando, alegrias maiores. Portugal é um país com uma tradição literária significativa, mas que, por provincianismo, tem horror a nomear a importância dos lugares nalguma arte. Coisa que, como sabemos, os americanos não têm, nomeadamente nas literaturas, sobretudo as romanescas – e sabes isso muito melhor do que eu.
Viveste muitos anos em Lisboa. Que te fez querer regressar à tua terra e mar de origem? E fundar um dos maiores festivais literários do nosso país, o Arquipélago do Escritores, que junta gente de todo o nosso país e do estrangeiro?
O que me fez regressar à minha terra foi o apelo do regresso. Que tem, como sabemos, um fundo emocional. Não aconteceu há quatro anos, quando passei, de forma inteira, a viver em Angra do Heroísmo – aí morei durante quatro anos. Foi acontecendo. O meu primeiro livro, publicado em 2003, chama-se “Dez Regressos”. Digamos que, nos anos posteriores, fui concretizando esse programa, de diferentes maneiras. Regressei ao arquipélago através de peças de teatro, de documentários, de poemas, de crónicas, de revistas e encontros literários, etc. Hoje, vivo entre os Açores (Ponta Delgada) e Lisboa, com passagens importantes por outras ilhas – porque sou açoriano, não apenas de uma ilha. Podia dizer que é apenas porque fica bem numa nota biográfica: “O autor vive entre os Açores e Lisboa”. E de facto fica. Mas é mais do que isso. É uma condição, se quisermos, existencial, essa de viver entre lugares – ora mais tempo num lugar, ora mais tempo noutro. A minha história vai-me ocorrendo assim, por motivos pessoais, sentimentais, familiares. E laborais, também. Pode ser que algum dia me fixe num ponto. Pode ser que não. O Arquipélago de Escritores e a, antecedente, revista Grotta partiram de uma inquietação. Lembro-me de, há cerca de dez anos, pensar, num apartamento lisboeta, rodeado de notícias sobre acontecimentos e publicações literárias no continente: e nós? Quem é que, nestes acontecimentos e publicações, vai valorizar os escritores dos Açores? Falei com editores, organizei equipas e os gestos aconteceram pouco tempo depois das questões. Perguntas que outros fizeram antes de mim (sempre me assumi como fazendo parte de um movimento de várias gerações). Fi-lo, faço-o do meu modo e dentro das minhas possibilidades. O Arquipélago de Escritores é, mais do que um encontro, uma causa. Junta autores dos Açores e autores de todos os lados. Já apareceu como revista, como encontro, como residência literária. Agora, imagine-se, vai ter um formato televisivo.
O autor no Varadouro, Faial, um dos cenários do seu livro "Como um Marinheiro Eu Partirei - Uma Viagem com Jacques Brel"
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 26 de abril de 2024.
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