sexta-feira, 19 de abril de 2024

Em memória de Eugénio Lisboa (1930-2024)

Na minha idade, o que menos que me convinha era assistir a mais uma revolução. Mas a tentação é grande, só para ver metidos na pildra, sumariamente, alguns destes meninos.

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula

Por certo que as palavras de Eugénio Lisboa citadas aqui não transmitem de modo algum o centro do que são os temas predominantes do V volume das suas memórias, Acta Est Fabula: Regresso a Portugal (1995-2015). Por outro lado, essas palavras resumem perfeitamente o estado de espírito do autor não só enquanto escrevia as páginas que agora tenho aqui à minha frente, como descrevem o estado em que Portugal se encontra desde há décadas a esta parte. Eugénio Lisboa regressa a Portugal depois de ter vivido e trabalhado em Londres durante 17 anos como Conselheiro Cultural da nossa embaixada naquela cidade, e muito depois de ter deixado Moçambique, a sua terra de nascença, em 1976, nas condições que bem sabemos. Aos 85 anos de idade, um dos nossos mais proeminentes escritores tem esse direito – e dever – de também denunciar a sua sorte num livro que dá conta da uma vida ao serviço da nação, em várias frentes. O seu passado na ex-colónia africana está documentado em volumes anteriores destas memórias e escritas-outras. Com a sua chegada permanente ao nosso país, seria ainda Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, Professor Catedrático Visitante na Universidade de Aveiro, e participante constante em inúmeros encontros literários e culturais nos mais diversos países, sempre em defesa e divulgação do que é nosso, do que é o nosso melhor e o menos corrompido. A memória coletiva de um povo reside aí, nas suas artes, na sua literatura, nas suas academias, nenhuma destas instâncias da realidade ou da imaginação, no entanto, aqui como em toda a parte, estão livres dos roedores parasitas escondidos nas suas brechas. Um escritor, pois, fala de si e das circunstâncias em que escreve as memórias de um percurso intelectual, as memórias que vão muito além de si próprio, debruçando-se constantemente sobre todos os outros que deram forma e sentido à sua existência numa vida constantemente examinada, avaliada, contextualizada. Antes de mais, pois, seria um lapso de enorme desonestidade literária ignorar esse estado de espírito num preciso momento, que suspeito afligir muitos mais para além de Eugénio Lisboa. “Pilhar muito e depressa, do mesmo passo que se aconselha às vítimas as virtudes cristãs da pobreza resignada é o breviário por que se regem os que atualmente nos desgovernam. Nunca tantos foram tão roubados por tão poucos”.

    Este volume de Acta Est Fabula intercala a prosa narrativa de Eugénio Lisboa com abundantes entradas do seu diário correspondente aos vinte anos aqui relatados. É um recurso formal que nos conta o mais memorável dos dias vividos, e desperta no leitor a vontade de agora ler o diário integralmente, algo que nos está prometido. Vejo nesta opção do autor uma vantagem que reforça a “verdade” desses dias e andanças dispersas, dando-nos não a memória irremediavelmente seletiva com a passagem dos anos e de outros acontecimentos, que tendem a anular ou acrescentar sub-conscientemente ao que na realidade foi experimentado, vivido ou sentido, e sim a sua reação ou pensamento imediato ao que então o envolveu. São páginas fulgurantes pouco comuns entre nós, o falso pudor da maioria dos nossos escritores impede-os de confessar publicamente o que reservam para as mesas dos cafés e outros redutos de má língua e ressentimento. Mais do que isso, Eugénio Lisboa demonstra como a vida de um escritor não precisa de ser a chateza do dias e das noites. Um mero encontro com um livro inesperado numa estante qualquer, uma conversa relaxada e que vá além do último mexerico na república das letras, a visita a um museu, a assistência a uma peça de teatro ou musical, tornam-se tão relevantes e apetecíveis como uma viagem ao país mais desconhecido ou falado. É-me essencial ler Eugénio Lisboa também por estas razões – a vida da mente, a vida intelectual e literária como centro de um percurso totalmente dedicado à contínua reinvenção da Tradição criativa de uma língua global e cultura erudita que contêm em si mais relevância e consequência do que toda a política de um país, ou de que todo o ruído falsamente ideológico. O autor diz-nos a dada altura que numa viagem ao Peru leu num jornal citadino a resposta de um escritor à maldita pergunta de “para que serve a cultura?”, também muito comum entre nós. Serve, respondeu o articulista, para que esta pergunta nunca mais seja feita. Eugénio Lisboa tenta separar aqui a noção de autobiografia e memórias, mas felizmente a sua prosa conjuga os dois géneros perfeitamente. Não é necessário contar-nos pormenorizadamente “os factos”, relembrando aqui Philip Roth, naturalmente noutro contexto e por outros motivos literários. As reações de Eugénio Lisboa às inúmeras figuras familiares, políticas, intelectuais ou do mero acaso que se cruzam na sua vida dizem-nos mais sobre a sua pessoa do que qualquer informação fria sobre si, ou sobre seja quem for. Só um mestre da escrita consegue estes efeitos nos leitores, transpor para o lado de fora os seus estados interiores nas mais variadas situações, nos mais inesperados acontecimentos, ante qualquer interlocutor ou descoberta no vasto campo das artes. Outra grande virtude de memórias escritas numa determinada fase da vida, em que todas as “dívidas” já foram pagas, todas as ambições concretizadas, ou mais realisticamente, ultrapassadas, todos os fretes agora absolutamente desnecessários: as “verdades” relevantes para a sua obra literária estão aqui sem reticências, tudo quanto, para nós leitores, explica ou formaliza o seu lugar numa cultura que se estende por vários continentes e ilhas fica devidamente contextualizado. Entre nós, algumas destas questões raramente vão além do paroquial e do pateticamente tido como sendo imortal, tudo reduzido a dois ou três nomes em cada época lusa. Eugénio Lisboa é-nos a voz rara que está simultaneamente nas margens e no centro, vendo ora árvore na floresta, ou a floresta com todas as suas árvores. Poderá residir há muitos anos ali nos arredores, mas para ele há, sempre houve, mais vida criativa na língua portuguesa noutras geografias longe da nossa capital, e de Coimbra mais acima. Eugénio Lisboa não escreve como um cosmopolita de fabrico nacional – ele é um dos símbolos vivos do cosmopolitismo autêntico, esse que viveu e se sente em casa no mundo, nunca esquecendo as suas origens, neste caso moçambicanas e ancestrais na terra portuguesa.

    Acta Est Fabula é um livro de ternura ante família e amigos em Portugal e em toda a parte, e um delicioso ajuste de contas com muitos outros, especialmente certos escritores da nossa praça, para quem o seu umbigo era e é o centro do universo, os que, em retrospetiva ou na atualidade têm dado ou dão muito menos do que a sua imaginação tenta impor. A prosa de Eugénio Lisboa é outra lição de como a linguagem escorreita e de semântica clara se torna arte pura na exposição ou discussão de qualquer tema, por mais complexo que seja. Um dos sinais de um grande escritor é nunca temer os outros, em qualquer língua, nunca deixar de homenagear aqueles ou aquelas que o próprio autor considera seus mestres ou referências essenciais. Dos seus gostos e paixões já sabemos de outros volumes destas memórias. Mesmo assim, Eugénio continua deixando cair passo a passo as suas leituras, os seus outros autores de eleição, em literatura de diversos géneros e temas, os thrillers em língua inglesa sempre presentes nos dias ou momentos de descontração. Vai fazendo o leitor sorrir quando menciona um desses nomes de literatura de aeroporto, e o que pensariam certos “sofredores” da nossa praça, especialmente Vergílio Ferreira, sendo que lhe serve mais frequentemente de gozo sem negar o seu valor literário entre nós, fazendo-nos sorrir em reconhecimento sem desrespeito, relembrando-nos das obsessões do autor de Manhã Submersa pelos prémios literários, que nunca eram suficientes para este e para uns tantos escritores lusos. Sobre outros ainda, como com Eduardo Prado Coelho, mesmo depois da sua morte, não poupa uma letra no seu desdém qualificativo. Não esqueçamos que Eugénio Lisboa pertence a um grupo único na nossa literatura desde meados do século passado até aos nossos dias: os escritores que por razões políticas ou sorte de nascimento e circunstâncias históricas são considerados “estrangeirados”, e cujos nomes, de Adolfo Casais Monteiro a Hélder Macedo são bem conhecidos, todos os eles, queiram ou não os que de cá nunca saíram, ocupando um espaço indelével no nosso cânone literário. Em todas estas questões, Eugénio Lisboa sempre desconsertou os arranjinhos domésticos na nossa feira de vaidades, literárias e académicas. Por fim, expressa a melancolia que é fazer um balanço de uma vida bem vivida, e que continua a ser um ponto de honra nas nossas letras. “O volume V das minhas memórias – escreve já em Abril deste ano – aproxima-se do fim. E ocorre-me tudo quanto lá deveria ter posto e não pus. O que mostra como a nossa vida, na sua riqueza, não cabe nunca, no papel de um livro, mesmo avantajado. Fazemos o que podemos, mas podemos pouco”.

Pouco? Deixe esse juízo com os seus leitores. Eles também vão achar isso, mas por razões diferentes da sua. É muito, afinal – e é do melhor da nossa literatura.

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula. Memórias – V – Regresso a Portugal: (1995-2015), Guimarães, Opera Omnia, 2015.


No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 19 de abril de 2024.

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