Agora também é preciso absoluta sinceridade e assumir sem rodeios que a minha visão dos Açores é sempre, e sem pejo, romântica.
Conheci pessoalmente Luís Filipe Borges há alguns anos numa sessão política na Praia da Vitória entre uma multidão de participantes e alguns outros escritores. É hoje um nome muito referenciado entre nós, particularmente pela sua presença na nossa televisão nacional, quer seja transmitida do continente ou dos Açores. A sua escrita depressa despertou a minha curiosidade e interesse crítico, o que me levaria a recensear alguns dos seus livros, muito especialmente Mal-Amanhados: Os Novos Corsários das Ilhas, a versão em livro (publicado pela editora Letras Lavadas aqui de Ponta Delgada) da inesquecível série na RTP/Açores, depois retransmitida a larga escala, e cuja coordenação traz ainda os nomes dos escritores Alexandre Borges (seu irmão) e Nuno Costa Santos. É mais como o escritor que conversei agora com ele, da sua relação de uma vida em Lisboa e da sua profunda intimidade com a terra natal, as nossas ilhas, a que ele chama “a minha casa”, a que deseja, insinua-me a dada altura, “regressar”, creio que em termos permanentes, como se ele alguma vez a tivesse deixado. É natural de Angra do Heroísmo, com todo o nosso arquipélago como imaginário e solo-pátrio. A sua poesia e prosa inclui já um bom número de distintos títulos. Está neste momento a trabalhar na segunda série dos “Corsários” ilhéus, de que nos fala nesta página.
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A tua obra é tão diversificada que tenho dificuldade por onde começar. Vamos à escrita, em primeiro lugar. Para ti as ilhas estão quase sempre presentes, a sua história social ao centro? Fala-me um pouco de um ou outro título teu...
Penso que tenho feito um caminho de regresso a casa. Os Açores estiveram sempre lá, nomeadamente nos anos de crónicas semanais na imprensa lisboeta, mas foi a idade madura – tenho 46 – sobretudo aquele momento charneira, simbólico, de atingir os 40, de bater de frente com a certeza de que a juventude se finou, que me fizeram responder à única pergunta que, insistente, ecoava no cérebro por essa altura, e que era: o que é que te falta absolutamente fazer? E a resposta era uma só: trabalhar sobre e para a minha terra. Isso tem sido visível sobretudo na minha faceta de produtor, que descobri com os “Mal-Amanhados” e precisamente com essa chegada à meia-idade. Ou seja, é uma escrita para guião, para a pequena tela, um tipo de conteúdo que tenta sempre dar a mão ao literário – sim - mas que não pode sê-lo a todo o tempo porque, nesse meio e género, não podemos esquecer os outros ingredientes do cocktail (que têm, aliás, a mesmíssima percentagem de importância): a imagem, o som, a montagem, a música.
Nos livros, além dos poemas (dispersos) serem relacionados com o espírito ilhéu, diria, em 90% das ocasiões, destacaria o meu livro favorito (que vendeu uma miséria), “Destinos Em Falta para o Passageiro Distraído”, onde – numa viagem por 30 destinos do planeta – os Açores são sempre a escala regular, única, o ponto de partida e chegada.
Agora também é preciso absoluta sinceridade e assumir sem rodeios que a minha visão dos Açores é sempre, e sem pejo, romântica. Identifico-me como ‘estrangeirado’. Não serei emigrante, mas quase. Percebo perfeitamente o que sentem, pese embora não tenha saído do país. Todavia, a portugalidade será uma coisa, sim senhor (e muito obrigado Eduardo Lourenço), mas a açorianidade é outra (e muito obrigado Nemésio, Onésimo, Natália, Antero, etc. É na segunda que moro apesar de habitar a primeira. Logo, a minha perspectiva do arquipélago é sempre pela positiva, pela saudade, pelo ideal, pelo utópico. E, sabendo que naturalmente isso não corresponderá à nua e crua realidade, orgulho-me de ver as ilhas assim.
Foste para Lisboa bem novo. Mas estou em crer que o que se passou na Faculdade foi um mero ensaio para dar início a uma vida criativa, inclusive na televisão nacional e em tudo o resto?
Uma coisa é certa: a criatividade salvou-me da inércia hermética do Direito. Não me arrependo da licenciatura mas percebi muito rapidamente que jamais seria feliz se seguisse aquele percurso. Aliás, até hoje sou absolutamente incapaz de conseguir dar o mais básico nó de gravata (risos)
Salvou-me o teatro universitário, salvou-me a aventura na Inventio (revista literária fundada na FDL pelo Nuno Costa Santos), salvou-me uma namorada algarvia, os amigos de outros recantos do país com quem me dediquei a conhecer Lisboa a pé - e a perceber, após muita tentativa e erro, que nem todos os dias na capital eram propícios à vida nocturna. Mas nunca, em momento algum, sonhei com a televisão. Escrever, sim, sem dúvida, o resto – contudo – foi aquilo a que gosto de chamar um acidente feliz.
Agora já nem para ser jovem agricultor tenho idade (risos) Mas sobram sonhos ainda por cumprir: realizar um filme e escrever um romance. Lá chegarei antes dos 50, pelo menos a um deles.
Nos entretantos, tenho dois livros de poesia na gaveta, programas para produzir, espectáculos para fazer, filhos para criar, os Açores para – em ciclo perpétuo – redescobrir. E tenho o privilégio de, quase sempre, poder fazer tudo isto sem gravata, e antes de calções e chinelos (risos)
Se foi um ensaio, não tive consciência disso. E talvez tenha sido melhor assim. Até porque, ironicamente, do meu grupo de amigos com quem aterrei em Lisboa (1995), era o único que jurava voltar a casa logo após ter o canudo na mão. E acabei por ser o único que, passados todos estes anos, permaneceu.
Como é viver constantemente entre Lisboa e os Açores? Encontraste o teu equilíbrio, digamos assim, emocional e apego à terra de nascença e as tuas andanças entre as artes e o jornalismo?
Ainda me falta concretizar a meta final, que será literalmente viver de novo em casa. Sendo que entendo “casa” como qualquer uma das ilhas. Tenho dois filhos muito pequenos, uma mulher apaixonada pelo arquipélago a quem só falta conhecer três ilhas, e o que mais desejo para o Tomé e o Fausto são três coisas apenas: que gostem de ler, que sigam o caminho que muito bem entenderem e, last but decerto not the least, que se sintam açorianos.
No entretanto, e sensivelmente desde há uma década para cá, tenho – dentro do possível – conciliado o melhor dos dois mundos: vivo no continente por obrigação, porque o meio profissional em que me movo assim obriga; e venho aos Açores por devoção. E o melhor de tudo é que, nos últimos anos, tenho concretizado cada vez mais projectos de/sobre/e para a nossa terra. Ou seja, dá-se o privilégio de conciliar na mesma dança trabalho e paixão. De momento, por exemplo, tenho prestes a estrear uma série de 10 episódios chamada “Caixa Negra – Arca de Memórias Açorianas” (protagonizada por idosos das 9 ilhas); estou em pré-produção da 2ª temporada de “Work In Progress” (também 10 episódios), em que vamos ao encontro de artistas ilhéus, sempre de uma arte diversa, e onde tentamos compreender o que os move, inspira, e testemunhamos a criação de uma obra inédita; tenho dois projectos intitulados “Açoriano Universal” e “Embaixada dos Açores” em fase de criatividade; um livro sobre a magnífica Aldeia da Cuada para sair; e, claro, ainda não abandonei o sonho de uma sequela dos Mal-Amanhados – desta vez no mundo, ao encontro da Diáspora Açoriana.
O grande problema para tudo isto é chocar constantemente com aparentes – e crónicas, e nefastas – inevitabilidades: a quantia perfeitamente residual que existe na Região dedicada à Cultura e, talvez até pior do que isso, a burocracia e o tempo absurdo que as decisões institucionais levam a ser tomadas (seja quem for que esteja no poder), prejudicando agentes culturais, associações sem fins lucrativos, e principalmente lesando a energia e vontade de quem quer fazer. Não há território deste arquipélago que não tenha almas valentes e vocacionadas para a criação/divulgação cultural. É fundamental, até para a sobrevivência da identidade açoriana, que não lhes sufoquem o espírito. Receio muito que, a manter-se o estado actual da gestão cultural nos Açores, o cenário se torne pura e simplesmente insustentável. Dou um exemplo pessoal, sabendo e ressalvando que há congéneres com situações muito mais precárias: fiz a primeira temporada de “Work in Progress” por um valor total de 26 mil euros. Qualquer produtor continental a quem eu conte isto fica estupefacto: “Como raio é que produziste de fio a pavio um programa de 10 episódios, 25 minutos cada, que implica ainda por cima viagens por ilhas, estadias e alimentação para a equipa, por um valor desses?”. Bom, consegui, e não fiquei a dever a ninguém. Mas, contas feitas, aquilo que sobrou para mim – por conceber, escrever, apresentar, montar, conduzir a carrinha, já agora – foram… 67 euros. Alguém me ajude a explicar isto à minha mulher (risos).
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 12 de abril de 2024
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