Vasco Medeiros Rosa |
verdadeiramente relevante é os Açores serem sempre esquecidos pela imprensa de Lisboa e Porto. É um velho problema de miopia e indiferença...
Vasco Medeiros Rosa, colaborou desde cedo no extinto semanário O Independente e hoje é um conhecido e respeitado colaborador literário do jornal Observador a partir de Lisboa. Tem sido um coordenador de antologias de escritores portugueses, entre os quais estão as obras de Ruy Cinatti, Miguel Esteves Cardoso, José Cardoso Pires, Victor Cunha Rego, José Cutileiro, Pierluigi Bragaglia, e Raul Brandão, que poucos entre nós conhecerão tão profundamente como ele a relação do grande autor de Húmus e muito especialmente de As Ilhas Desconhecidas. Tudo isto inclui também o seu trabalho, entre outros mais, em três volumes de Dispersos de Vitorino Nemésio que vão ser reeditados pela Companhia das Ilhas e a Imprensa Nacional. Desde há muito que tem a cultura nos Açores sob a sua atenção, com uma dedicação de todo informada e refletida sobre a cultura nos Açores em geral, e muito especialmente a nossa literatura. Começou a colaborar na imprensa açoriana há uns bons anos, o que tem vindo a intensificar com os seus artigos-ensaios no Diário dos Açores, Diário Insular, Baluarte de Santa Maria, Tramela Aberta (Corvo), e as revistas Transeatlântico e Grotta, ambas dirigidas por Nuno Costa Santos. Foi ele, juntamente com Urbano Bettencourt, que dinamizou uma prolongada homenagem a Pedro da Silveira no ano passado, com a sua presença cá em conferências e colóquios, e sobretudo com a republicação da obra do poeta florentino, incluindo um extenso livro de ensaios de Pedro da Silveira, Só o Esquecido é Passado. Prosa Reunida.
Foi sobre tudo isto que lhe pedi uma breve conversa por escrito e em viva voz. Não podia deixar passar em branco nem a sua pessoa nem esta sua obra aqui no Açoriano Oriental, em que ele publicou alguns dos seus primeiros trabalhos entre e sobre nós. “Sem essa receptividade, eu não teria maneira – diz-me a dada altura – de tentar dar projecção pública aos centenários de Pedro da Silveira e de João Afonso, à revisitação de Madalena Férin, em colaborações seriais que recoloquem essas figuras na actualidade”.
Como é, como foi, que um distinto colaborador (as palavras são minhas) do Observador se interessou, se interessa tanto, pela vida literária nos Açores, esta sempre com pouca projeção no Continente.
Descobri — com uma ajuda preciosa — o pulsar cultural nos Açores, que vai muito para lá da literatura, pois inclui fotografia, arquitectura, editoras emergentes e mais, e gosto muito de estar atento em permanência a essa vitalidade discreta e de aprender com ela. O facto de lhe dar alguma atenção na crítica de livros no Observador nada tem de relevante. Verdadeiramente revelante é os Açores serem quase esquecidos pela imprensa de Lisboa ou Porto. É um velho problema de miopia e indiferença, que a vitalidade cultural açoriana agora emergente veio agravar exponencialmente. Talvez seja desejável, e venha a suceder, que a internacionalização chegue antes — e até melhor — que a percepção dita continental do que aqui se passa ou potencialmente se pode passar. Seria até bom que os Açores desenvolvessem uma «diplomacia cultural» própria, sem esperar (sentados) que a República os represente no quadro global. O apoio do GR à tradução literária de autores açorianos é, aliás, já uma boa medida nessa direcção. Falta imaginar e pôr em prática outras.
A sua colaboração em jornais açorianos tem sido uma grande fonte de informação, e muito mais ainda de reflexão séria e profunda sobre tudo o que diz respeito à nossa vida intelectual e, uma vez mais, literária a meio atlântico. Fale-me também sobre esta sua disponibilidade.
É, antes de mais, uma disponibilidade recíproca, e refiro-me aos jornais e revistas que acolhem o que escrevo: o Diário dos Açores é o principal, mas também o Baluarte de Santa Maria, o Diário Insular de Angra do Heroísmo e o Tramela Aberta do Corvo, e duas revistas de Nuno Costa Santos, Transeatlântico e Grotta. Também publiquei na Atlântida as palestras que fiz no IAC sobre Raul Brandão e Vitorino Nemésio. E lembro — grato — que algumas das minhas primeiras colaborações foram feitas no suplemento do Açoriano Oriental que o Vamberto e o Álamo coordenavam. Sem essa receptividade, eu não teria tido maneira de tentar dar projecção pública aos centenários de Pedro da Silveira e de João Afonso, à revisitação de Madalena Férin, em colaborações seriais que recoloquem essas figuras na actualidade.
Gradualmente beneficiei do encontro mais alargado com pessoas de outras áreas, que ouço com enorme curiosidade e com quem me é prazeiroso conversar. Há excelentes cabeças nos Açores... Por tudo isso, estes anos de observação e intervenção levaram-me a escrever sobre política cultural da Região, tentando suscitar um debate de grande alcance que julgo ser absolutamente necessário. Vindo de fora, julguei — ingenuamente — poder espicaçá-lo. Neste particular e por enquanto, admito ter falhado redondamente.
O seu empenhamento na homenagem do centenário do nascimento de Pedro da Silveira durante mais de ano, com intervenções presenciais e publicações da obra do nosso grande poeta florentino, foi mais do que notável, e foi para além de quase nós todos aqui nas ilhas. Fale-me deste seu trabalho, deste mais profundo conhecimento da nossa literatura.
Não conheço assim tão bem a literatura açoriana... Há mesmo quem diga que ela está ainda por descobrir, em particular aquela que ficou esquecida em velhos jornais. Manuel Zerbone (1856-1905), por exemplo, é um cronista delicioso, que Urbano Bettencourt está agora a tentar reabilitar.
Pedro da Silveira diz-me muito e há muito tempo, como investigador literário exemplar — na verdade, um grande mestre do ofício que é também o meu (hélàs!). Quis que a longa campanha a que pude deitar ombros servisse para resgatar essa figura esquecida (e maltratada), e ao mesmo tempo se tornasse modelar pela constelação de acções conjugadas (artigos, palestras, livros, colóquios) e pela conveniente antecedência com que começou. Não fui ainda plenamente sucedido, pois há ainda um volume de c. 700 páginas pronto a imprimir há um ano e meio, mas não vou desistir dele, ao contrário do editor, que manifestamente falhou a um compromisso assumido e parece viver bem com isso (eu é que não sei como). Este segundo volume da Prosa Reunida de Pedro da Silveira é importantíssimo para se avaliar a largueza dos seus interesses e a profundidade das suas inquirições, que o afirmariam como uma das figuras culturais de referência canónica em qualquer país ou região. Não pode continuar a ser, como ainda é para muitos — infelizmente —, o autor dum livro só, A Ilha e o Mundo, como Nemésio foi imprudente e injustamente reduzido a Mau Tempo no Canal e um programa de televisão.
Foi,
de resto, através de Pedro da Silveira que cheguei a João Afonso,
que desconhecia quase por completo e me está a surpreender
fortemente à medida que o leio e inventario o que deixou disperso. É
outra figura que importa trazer à linha da frente, panoramicamente,
e pode até servir de guia pelo modo tão sagaz como conjugou
jornalismo e revisitação cultural com vertente museológica e
bibliográfica, em particular no contexto autonómico. Pode também,
como há dias escrevi, inspirar o funcionalismo público instalado em
museus, bibliotecas e arquivos açorianos a uma maior intervenção
na imprensa local, o que se me afigura muito conveniente, pois
colocaria na ordem do dia temas como a defesa do património e a
singularidade cultural açoriana, nas inúmeras declinações em que
ambos se manifestam.Pedro da Silveira
Tanto Silveira como Afonso ajudaram-me a entender a falta de estudos de recepção na cultura dos Açores, um instrumento fundamental de re-ligação intergeracional, sobretudo tendo em memória os suplementos literários e artísticos dos jornais na segunda metade do século passado. É por isso que me deixou feliz o livro que publiquei o ano passado, É Preciso Romper o Amanhã: Madalena Férin revisitada (Companhia das Ilhas). O título é um verso da mariense, e o título da prosa reunida de Pedro da Silveira, Só o Esquecido é Passado, é também um verso dele. Juntando os dois, como intencionalmente fiz, lancei ao ar todo um programa de «atenção ao que falta fazer», que é, precisamente, um dos meus lemas. E não apenas nos Açores.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 8 de março de 2024
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