sexta-feira, 1 de março de 2024

Breve conversa com Pedro Almeida Maia sobre a novela A Força Das Sentenças

 Já nascemos sentenciados a morrer, para quê mais?

Pedro Almeida Maia,

A Força das Sentenças


    Pedro Almeida Mai
a tornou-se nos últimos anos um dos mais distintos escritores açorianos, e não só da sua geração. O tema que conduz a ficção de A Força das Sentenças é-me caro de mais para que eu sobre ele escreva – por enquanto. Não queria correr o risco das minhas palavras se meterem por entre as de uma obra de arte literária cuja representação continua a ser-me dolorosa. A razão é pessoal, pois, e não poderia ser chamada para estas linhas. Trata-se de uns anos de vida mais cruéis, em que o ser humano vai morrendo devagar e no maior sofrimento, em primeiro lugar para eles próprios, e depois para quem está muito próximo, intimamente, durante anos.

    Basta só dizer aqui que entre uma obra já maior, uma trilogia de Pedro Almeida Maia em curso, começou com Ilha-América e A Escreva Açoriana, a historicidade da nossa terra atlântica em foco, o desejo da saída destas ilhas e a vida na diáspora o centro da suas páginas, para mim, maiores. O terceiro volume, é de supor, está a ser pensado e escrito.

*

        O que te levou a escrever uma novela sobre um tema tão doloroso como a doença mais cruel que eu conheço – Alzheimer?

    Os motivos que me levaram a começar este texto, estávamos no ano de 2016, estiveram ligados às circunstâncias que ocorreram naquele tempo e em determinados lugares por onde passei. Terminara uma temporada de estudos na Universidade de Barcelona, ainda com o ouvido sintonizado no castelhano e no catalão, e encontrava-me a viver em Braga por uns meses, enquanto redigia a dissertação de mestrado em inglês. A tese viria a ser apresentada na Universidade de Coimbra dali a um ano, portanto, tarefa exigente e numa linguagem bastante técnica. Como se a empreitada não fosse suficientemente desafiadora, ia também a meio da investigação para o romance de ficção científica A Viagem de Juno, que viria a ser publicado mais tarde, em 2019: uma narrativa que coloca os Açores num futuro hipotético, de viagens entre ilhas a bordo de comboios subaquáticos. Obrigava-me a pesquisas infindáveis sobre o que poderia vir a ser (e ainda pode vir a ser) o amanhã climático.

    A forma encontrada de escapar a tanta rigidez nos processos de escrita foi iniciar um projeto que não implicasse devorar bibliotecas nem trespassar idiomas, que servisse para mera divagação, reservatório de ideias. Afinal de contas, após o último semestre em Coimbra, aguardava-me ainda uma última fase curricular em Galway, na Irlanda, que se tornaria custosa em termos de adaptação, apesar de excelente profissionalmente. O regresso aos Açores deu-se em 2017 (há paralelismos dessa mudança que podem ser encontrados no texto), numa altura em que havia novos planos pessoais, mais concretamente o de voltar a ser pai (aqui podemos encurtar nove meses de metamorfoses) e a vontade de escrever sobre a emigração clandestina, o que posteriormente resultaria no romance Ilha-América. Foi nesta altura que o texto deixou de ser uma coleção de memórias exclusivamente minhas e passou a consolidar-se no tema da doença.

    O escritor de formação em psicologia levou a este tema, ou foi alguma experiência pessoal ao lado de alguém que a sofreu?

    A decisão esteve relacionada com a notícia do diagnóstico de um parente próximo: tudo indiciava a doença de Alzheimer. A psicologia pode ter desempenhado o seu papel em diferentes momentos (não posso simplesmente desligar o interruptor quando me é conveniente), mas foi a ligação familiar que me impeliu a seguir por aquele caminho, a desenhar aquelas personagens, a tecer aquele enredo. Presenciei a forma como o rótulo danificou a relação do mundo com a pessoa doente, tal e qual uma sentença. Já nascemos sentenciados a morrer, para quê mais? Pareceu-me igualmente relevante interpretar o que acontece ao indivíduo, o que me levou a aprofundar conhecimentos na matéria. Continuo longe de poder abordar o tema de um ponto de vista científico, nem sequer o ambiciono, daí ter optado por narrar na primeira pessoa. No entanto, em determinados momentos, tornou-se angustiante calçar os sapatos do professor Penedo Quental, ao ponto de duvidar se deveria continuar a escrever. É demasiado fácil imaginarmos o que seria se nos calhasse o fado de esquecer tudo, inúmeras vezes projetei essa possibilidade em mim mesmo. Se não nos recordarmos do nosso passado individual, em que pessoas nos tornamos? E, pelo contrário, haverá memórias que descartamos? Sofrimentos que evitamos? Fiz questão de abordar o tema da forma mais descomplicada possível, em certas passagens é possível encontrar até algum sarcasmo ou comicidade, só que não há como evitar o trágico.

    Em resumo, o professor reformado Penedo Quental, que mantém a ambição de se tornar escritor (mesmo em idade avançada), perde a esposa e recebe o dito diagnóstico. Obriga-se a sair da casa no Alentejo, onde viveu a maior parte da vida, e a mudar-se para Coimbra, para mais perto da filha única. Passa a partilhar os seus espaços e rotinas íntimas com uma cuidadora problemática, além de adotar um cachorro, mas a relação dele consigo próprio altera-se e dificulta o processo. Numa cama de rede que aparece misteriosamente no quintal, começa a recordar-se do passado e vai anotando tudo o que pode, convidando o leitor a participar na terapia. Esta fase da escrita implicou conversas profundas e revisitações ao passado, minhas e das pessoas envolvidas, à minha volta. Em inícios de 2021, ainda com o fantasma da pandemia a pairar (começava a redigir A Escrava Açoriana), decidi colocar um ponto final na história do professor Quental. Planeei retomar futuramente, mas alguns meses depois deu-se o pior. Fez com que não quisesse voltar a olhar para o texto durante quase dois anos.

    Foi já em 2023 que surgiu o anúncio do Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes. Ponderei bastante e acabei por submeter a candidatura. De entre 120 concorrentes sob pseudónimo, saiu vencedor por unanimidade, o que trouxe especial satisfação. Fui magnificamente recebido em Portimão, fiz amizades e conheci novos leitores. Não posso negar que trouxe também alguma agitação inesperada: tenho-lhe dedicado tempo adicional.

        Bem sei que esta novela, A Força Das Sentenças, é, em primeiro lugar, arte literária. Deixa algum aviso, alguma mensagem, à nossa sociedade atual, que enfrenta novas e cruéis doenças?

A mensagem é evidente, apesar de não ter sido intencional à partida (foi surgindo juntamente com o evoluir do exercício), e está relacionada com a questão dos rótulos. É certo que, como seres humanos, sentimos uma necessidade intrínseca de classificar o mundo: dar nomes a objetos, identificar-lhes características, apontar-lhes parecenças. No fundo, fazemo-lo porque há uma pressa aflitiva em atribuir significados, uma urgência em fazer sentido do caos. No entanto, algumas das maiores injustiças da sociedade acontecem ao exercermos essa prática sobre outros seres humanos, principalmente quando a finalidade é discriminatória. Assim começa o conflito, por vezes escalando ao patamar da guerra. Uma doença não deveria comportar um rótulo, e isso aplica-se também ao país de origem, à cor da pele e à religião. Ao atribuirmos dísticos, estaremos a permitir a generalização, impedindo a individualidade; estaremos a promover a estigmatização, ao invés de aliviarmos o fardo; estaremos a limitar a vida e a atrasar o seu contínuo potencial. Somos seres racionais e conscientes com grandiosas conquistas, mas contribuímos para um inconsciente coletivo que teima em acorrentar-se a hábitos irracionais. Muitos não aprenderam com a pandemia, continuaram a viver em piloto automático; outros aprenderam (e muito), mas pagaram o preço mais elevado. Como membros de uma civilização evoluída, deveríamos ser capazes de inverter essa tendência: apreciar as rugas de um ente querido sem condená-lo, abraçá-lo sem necessitar de um motivo específico, amar sem julgar. É desta forma que eu gostaria de imaginar o futuro.

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Pedro Almeida Maia, A Força das Sentenças, Portimão, Câmara Municipal de Portimão / On y va, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental 1 de março de 2024.

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