sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Gaza, ou a morte dos inocentes


 a tragédia uivava e a sua/voz era a ruína do mundo.

Raquel Patriarca in O silêncio dos meninos mortos


    O silêncio dos meninos mortos: poemas portugueses contra o massacre do povo palestiniano foi organizado e coordenado por Francisco Duarte Mangas, Presidente da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Que eu saiba, é o primeiro livro de poemas ou prosa criativa que é publicado no nosso país sobre a tragédia em curso na Palestina. Digo “tragédia” como poderia dizer “genocídio”. Bem sei da semântica da palavra (que quase sempre deve ser escrita em letra maiúscula) no seu “significado histórico” vindo do século passado. Só que creio que um genocídio não pode nem deve ser avaliado por números de vítimas, mas sim pela intenção dos que provocam as maiores atrocidades e, digamos, metodologia nefasta. Sei também muito bem que Israel se tornou um país “santificado” pelo o que aconteceu na Europa entre 1933-1945, e que Israel viria a ser um país criado com a bênção das Nações Unidas como refúgio seguro de todo um povo injustamente, cegamente, perseguido neste continente durante muitos séculos. O dia 7 de Outubro do ano passado foi uma ação terrorista levada a cabo pelos resistentes ao lado do território governado por sionistas, e ninguém, no seu perfeito juízo, poderá justificar esse dia, essas horas de terror absoluto. O que se seguiu, e continua ainda sempre, é muito pior: um país sem grande recursos militares ou mesmo financeiros, Israel, deu continuidade ao que vinha fazendo desde 1947: retirar, abusar, matar, roubar um povo que estava há milhares de anos na sua terra, e fazendo-o impunemente com o apoio dos maiores hipócritas poderes ocidentais, cuja consciência magoada desde os anos de chumbo na Alemanha quereriam pagar, redimir os seus pecados, numa mea culpa que já ninguém convence. O ataque à Faixa de Gaza vem de longe, como vem a repressão violenta dos cidadãos da Cisjordânia. Um dos maiores criminosos do Médio Oriente, de nome Benjamin Netanyahu, acusado no seu próprio país de todas as corrupções financeiras e outras, decide declarar o seu país em “guerra”. De vez em quando vai ao campo do crime em Gaza, e veste um colete anti-bala, na cabeça pouco pensadora um capacete que lhe fica mal, a imitar Volodymyr Zelensky, este sim um verdadeiro líder de e em guerra. Tudo no primeiro-ministro israelita é ridículo, inclusive o seu sotaque num suposto inglês nova-iorquino, a sua arrogância um contínuo insulto a qualquer cidadão consciente dentro e fora do seu país, e a afirmar sem vergonha quem pertence ou não aos territórios a dois passos de Jerusalém, berço milenar de judeus, cristãos e muçulmanos.

    Em “guerra” contra quem? Contra os que desde a fundação de Israel foram expulsos das suas casas, dos seus pequenos terrenos, e depois perseguidos por colonos que vieram do estrangeiro e tomaram conta das suas terras, das suas vidas, da sua felicidade, da sua noção de um futuro qualquer? Hoje as bombas, os caças e os carros de combate destroem tudo e todos à sua frente, mães a fugir do terror nas ruas em escombros com os seus filhos e filhas mortas ou mortalmente feridas agarradas aos seus peitos, pais num choro de dor e fome, hospitais, escolas, refúgios das Nações Unidos, tudo numa destruição total e sem qualquer compaixão. Em Portugal, são os papagaios da política internacional da Secretaria de Estado Norte-Americano, em todas as nossas televisões e alguns jornais, que quase me parecem repetir, e apenas isso, o New York Times e o Foreign Affairs. Não são “odiosos”, são simplesmente “patéticos”. Mata-se em massa todo um povo em Gaza, persegue-se violentamente um povo no outro lado da fronteira, e não há mais nada a dizer? De quem é a Palestina? Dos descendentes europeus e das Américas que chegaram lá há poucas décadas, ou até há poucos dias? Com que direito perseguem e matam quem de nunca lá saiu? Uma criança, uma mulher, um homem novo ou velho não têm o direito de viver em paz tal como os israelitas? São todos “terroristas”? Não. São defensores do seu território histórico.

Francisco Duarte Mangas
    Regressemos ao livro aqui em questão, o silêncio dos meninos mortos: poemas portugueses contra o massacre do povo palestiniano. São 47 poetas, quase todos de vários lugares de Portugal. Estão presentes dois açorianos aqui nestas belas páginas de combate poético: Aníbal C. Pires e Ivo Machado. Ainda outros como José Viale Moutinho e José do Carmo Francisco, entre alguns mais que eu conheço muito bem. Abre com Inês Lourenço, que dá abertura ao resto dos poetas e seus colegas nas páginas seguintes.

Não sei se voltarei viva para algum lugar de escombros

que o estrépito das bombas e o zunir dos mísseis

anunciam ou se acordarei num campo de refugiados

entre tendas choros e fedor de excrementos. Às vezes

numa pequena pausa do ribombar monstruoso e longínquo

neste escuro e sinuoso abrigo, invento uma forma

de não enlouquecer, algo que ninguém

pode arrancar da minha memória, o aroma

do mansaf cozinhado pela minha mãe, esse glorioso

arroz de cordeiro assado de que o profeta

não desdenharia. E vou cismando na impossível partilha

[desta terra

com demasiadas pátrias, demasiados deuses, demasiados

[clamores

de vingança na anulação do outro. Está

escuro. Quero sair daqui. Quero um país.


Edward W. Said
O silêncio dos meninos mortos é um testemunho ético e estético português contra o massacre em curso na Faixa de Gaza, e até na Cisjordânia. Num mundo globalizado como o nosso ninguém é já “estrangeiro” no sentido mais lato da palavra, ninguém tem direito à indiferença, ninguém deverá calar a sua voz com medo de contrariar quem detém todo o poder em campo e distorce a chamada “narrativa” dos acontecimentos. Lembremos que uma boa parte dos próprios israelitas e dos judeus da diáspora não concordam e denunciam todos os dias a destruição de um povo, que ou reconhecem ou deveriam reconhecer como irmãos numa trágica geografia comum, herdeiros todos eles de uma longa história de violência e desentendimento. Quase todos os escritores judeus do mundo com identidade bem definida têm escrito ao longo de décadas contra o que nunca se deveria passar entre dois povos vizinhos e cuja fé não se contradiz, ou muito menos justifica a carnificina a que assistimos todos os dias.

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Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, o silêncio dos meninos mortos: poemas portugueses contra o massacre do povo palestiniano (organização de Francisco Duarte Mangas), Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Porto, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 23 de fevereiro de 2024.

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