sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Em Praga, com a escrita de Milan Kundera

 

A história pouco feliz e descontinua da nação checa que passou pela antecâmara da morte permitiu-lhe não sucumbir perante esta ilusão enganadora.

Milan Kundera, Um Ocidente Sequestrado

    Milan Kundera, o grande escritor checo, faleceu a 11 de Julho de 2023. Duas semanas antes ou depois o seu livro Um Ocidente Sequestrado: Ou A Tragédia Da Europa Central foi publicado no nosso país. Não podia ter vindo para a nossa língua em tempo mais relevante e dramático. A Ucrânia já estava, como ainda está, sob fogo russo num ato de guerra muito europeu: a violência total e indiscriminada, como têm sido todas as guerras na Europa, talvez o mais violento de todos os continentes ou terras do planeta. A “Europa sequestrada” vem desde milénios, e quase sempre pelos próprios europeus, Napoleão sendo o mais “modernista” ou “iluminista” agressores da nossa mais viva memória. Deixo tudo isto aos historiadores e aos atuais e abundantes comentadores da nossa suposta comunicação social por via de todos os meios, os que tanto comentam com saber aparente um motim ou tiroteio nos confins de qualquer continente ou ilha como o massacre de todos os nossos dias em Gaza. Bem sei que Milan Kundera foi sempre um escritor polémico, particularmente desde A Insustentável Leveza do Ser (1984 na versão portuguesa) e de O Livro do Riso e do Esquecimento, também publicado no nosso país em 2015. Li os dois em inglês uns anos antes, mas interessa-me mais aqui o segundo romance que menciono. Da sátira erótica e sempre entre a luta de um cidadão ao assalto dos que já haviam tomado os destinos do seu país. A minha experiência é pessoal, aconteceu-me um ou dois anos logo depois da caída da União Soviética e da independência dos países pertencentes à sua esfera de influência e regimes submetidos, quando finalmente visitei o país que já tinha deixado de ser chamado Checoslováquia, e estava agora à procura do seu lugar numa outra Europa.

    Cheguei à agora República Checa ido da Holanda, e no aeroporto havia um humilde posto para turistas em busca de estadia provisória. Desde logo percebi o acolhimento mais do que simpático, a exímia educação dos seus funcionários, a alegria com que nos recebiam, toda a informação sobre hotéis e pensões. Pedi algo de mais barato, mas perto do centro. O endereço foi entregue de imediato. Perto do que lá também se chama a Praça Velha (sou terceirense), pareceu-me bem. Não tinham ainda meios para um cartão de crédito, e eu não tinha a moeda deles. A senhora comunicou-me por sinais que não havia problema, e deu-me a entender que havia bancos muito próximos, deu-nos um quarto limpo, e dali a pouco recebia um pequeno almoço com todo o requinte desejado. Poucos falavam inglês. Depois eu perguntava já sentado num bar-café esta dificuldade na nessa minha outra língua: falamos melhor, disse-me um jovem, na língua dos nossos inimigos: alemão e russo. Ri-me, e ele riu-se comigo. Dali um pouco apertei-lhe a mão, e agradeci o momento. Passeei-me pela Praça Velha, em êxtase por estar numa das lindas e históricas cidades que vi até hoje, com gente que me dava as boas vindas e queria falar, falar do seu país e do meu, falar de ideias e da sua redescoberta de si próprios.

    Dei uma volta na dita Praça, e encontro a vitrine de uma livraria. No centro, um livro de Fernando Pessoa! Claro que entrei imediatamente. O jovem falava inglês vagaroso, mas mais do que suficiente para nos entendermos perfeitamente. Quando lhe disse que era português, apertou-me o braço, sorriu, e passou a mostra-me alguns livros na sua língua e de outras. Eu encolhia os ombros, como quem dizia, não conheço. Veio-me de imediato à mente O Livro do Riso e Do Esquecimento, que lhe mencionei no título em língua inglesa – The Book of Laughter and Forgetting. Disse-me que não tinham essa edição. Respondi que o já tinha lido, e queria saber um pormenor. O romance desafiador do poder comunista abre com a tomada do poder em 1948 precisamente nessa Praça Velha, quando o Secretário-Geral do Partido Comunista checoslovaco, Klement Gottwald, faz o seu discurso decisivo. Sabia que tinha sido por ali perto, segundo a minha leitura de Milan Kundera. Em que prédio aqui isso aconteceu? Olhou para mim com toda a sua surpresa e, uma vez mais, perplexidade pela minha pergunta. Deu-me sinal para sair com ele da livraria. Saímos. Nem demos mais um passo. Apontou com a mão a varanda no primeiro piso acima da livraria. Fiquei estonteado. A História, disse-me ele perante o meu olhar sem definição, está muito perto de nós todos. Tinha sido daquela varanda. Então a ficção de Milan Kundera é ficção ou ensaio? As duas coisas, respondeu-me.

    Apontou-me a mão e perguntou-me se queria visitar a casa-museu de Franz Kafka. Olhei-o novamente espantado. Está ali, disse-me, no outro canto na Praça. O cemitério dos judeus também a pouca distância, e lá disse as curvas que eu deveria tomar. É claro que fui. Baixei a cabeça em memória e a honrar a sua coragem, a perseguição então em curso durante os primeiros assassínios dos nazis, da uma morte indigna. Nunca a literatura tinha sido tão viva para mim, nunca a mentira da verdade tinha sido tão real. Nunca os representantes de todo um povo, a geração seguinte, tinha sido tão educada e dialogável comigo, nem sequer no meu próprio país. Nunca, até hoje, um país fora do meu, tinha sido tão lindo e acolhedor. Nunca um livro de país algum, para além do meu, me tinha transmitido a ideia de que um povo consciente de si e da sua história era indomável.

    Um passo do ensaio “Um Ocidente Sequestrado ou a tragédia da Europa Central” de Milan Kundera no livro aqui em foco, e a lembrar os destino dessa Europa no pós- Segunda Guerra Mundial:

    Em 1956, no mês de setembro, o diretor da agência de imprensa da Hungria, alguns minutos antes de o seu gabinete ter sido arrasado pela artilharia, enviou por telex para o mundo inteiro uma mensagem desesperada sobre a ofensiva russa, lançada nessa manhã contra Budapeste. O despacho terminava com estas palavras: ‘Morremos pela Hungria e pela Europa’”

    Literatura, realidade e história. Milan Kundera morreu num longo exílio francês, de 1975 até ao seu falecimento o ano passado, e nunca cedeu. Ninguém esquece as suas origens, ninguém minimamente consciente esquece a sua história. Tinha participado muito ativamente entre todos os indivíduos e grupos da cultura na chamada Primavera de Praga de 1968 liderada pelo comunista (ironias…) Alexandre Dubcek. A Europa sequestrada? Tem sido sempre. Só que agora está sequestrada por outros poderes: o poder económico, os bancos centrais, o liberarismo desenfreado que nega os direitos da sua população mais vulnerável, esquecida nas ruas do frio e da fome.

    O Livro do Riso e do Esquecimento já não deveria ser o testemunho só da opressão imperialista. É um livro da nossa própria traição aos indefesos, aos de sem voz, aos caídos absolutamente. Um Ocidente Sequestrado Ou a Tragédia da Europa Central trespassa o seu tempo, fala para nós como um aviso trágico. Poderá já não ser tão político. É mais do que isso. É tudo isso e mais para nós todos, ante a corrupção e o descaramento. A sem vergonha de quem nos governa, de Lisboa aos Urais.

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Milan Kundera, Um Ocidente Sequestrado Ou A Tragédia da Europa Central, Lisboa, Dom Quixote/Leya, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 2 de fevereiro de 2024.


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