sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Jénifer, uma vez mais


N
uma ilha, as coisas esquecem-se mais depressa. É a única maneira de fazer o tempo andar para a frente.

Joel Neto, Jénifer, ou a Princesa da França


    Primeiro, a grandeza literária da novela do Joel Neto, Jénifer, ou a princesa da França. A ficção deste género, para ser grande, tem de obedecer a alguns protocolos teóricos. Saber contar uma breve “estória” com princípio meio e fim, criando personagens que o leitor percebe por inteiro, a sua interioridade, a sua realidade total, como se fossem alguém com que nos cruzamos ou quem nos identificamos de imediato. É um dos géneros mais difíceis de um escritor conseguir. Tem de ser breve, tem de saber manipular as suas linguagens, tem de saber fazer o leitor sentir que sabe tudo sobre os seres inventados, reinventados. Um escritor nunca parte do nada – parte de si e das suas experiências, parte dos que lhes foram próximos ou observou com cuidado, com quem se relacionou, cada um parte do saber da sua sociedade, da sua história, da sua pertença feliz ou infeliz. A novela de Joel Neto é a sua visão que nos relembra, que nos recria, que nos confronta tanto com o passado, como sobretudo com a nossa contemporaneidade. A arte literária é sobretudo a nossa consciência reativada, tudo o que permite o chamado prazer do texto. Não literatura sem esta memória, sem o testemunho de um tempo, não há literatura sem a angústia coletiva, não há literatura ou qualquer outra forma de arte sem respingar a miséria humana ou angústia do se ser e estar num tempo e num lugar, sem os seus sofrimentos, sem as suas felicidades e infelicidades vividas ou imaginadas. Jénifer tem os Açores como fundo geográfico, histórico e político, como poderia ter qualquer outra ilha ou terra mais extensa. Ofende? Tanto melhor. Jénifer passa a ser a nossa personagem, a sua história a nossa vergonha, a sua vida e os seus sonhos com meio milénio de idade a confirmação do que são e sempre foram os Açores e o seu povo. O paraíso na terra para alguns – e para os outros?

    Jénifer, ou a princesa da França provocou alguma celeuma entre nós. Pudera. Eu por mim li a novela de imediato sem qualquer complexo. Acharam alguns que dava uma “má” imagem dos Açores, como se a realidade pudesse ser escondida de todos e para sempre. A grande ficção tem esta outra característica – é a mentira verdadeira, a tal reinvenção do que vivemos e vimos, do que sabemos. A pequenez de uma qualquer comunidade é quando acusa um artista seja do que for. Só que Jénifer nasce de outras fontes muito seguras – da inteligência de um grande escritor açoriano, um dos mais distintos da sua geração e de nós todos, e de uma outra que parte da sua própria vivência quotidiana e de um estudo de uma das maiores e mais distintas fundações investigadora da realidade portuguesa dos nossos dias, nada menos do que a prestigiada Fundação Francisco Manuel Dos Santos. Tudo quanto Joel Neto ficciona – que se apresenta corajosamente como narrador da sua novela, nada de novo na literatura universal – está fundamentado na realidade. Jénifer representa a vítima da nossa História, a inteligência dos que sempre sofreram o seu tempo e os nossos dias, dos que sofreram a terra dos capitães-generais, dos capitães-donatários, em que ainda hoje só servem para que na cabeça deles pousem as garças e os melros pretos em certas praças municipais nossas. A grande literatura portuguesa, principalmente a dos anos trinta, a de todos os nossos anos de chumbo, transfigurou do mesmo modo toda a sociedade portuguesa. No caso açoriano, insinuaram esses nossos supostos nobres fundadores, sempre e ainda figuras que nunca puseram os pés nas nossas ilhas, simplesmente receberam, herdaram, as terras que não eram deles e recriaram aqui os feudos aristocráticos da suposta mãe-pátria.

    Os homens e mulheres que hoje nos governam são diferentes? São. São os nossos governantes, agora sim, legitimados pela democracia centralizada em partidos políticos. Falta saber se a sua imaginação poderia ir um pouco mais além dos séculos da fundação – das caravelas que cá chegaram com os desgraçados e desgraçadas à beira do rio Tejo, e sem mais escolha no reino, os caídos no reino.

    Não sei de outras ilhas. Conheço as minhas, mais ou menos, como todos os outros. O que conheço do passado é da minha freguesia açoriana, de onde saiam quase todos os que podiam. Estamos nos anos 50, com caminhos de lama, com água sem ser tratada em depósitos para os que tinham a possibilidade mínima de esse “privilégio”, da eletricidade que ainda vi chegar às ruas e depois à casas mais ou menos de uma classe média sempre à rasca, de uma pequena elite que não conhecia na “cidade”, e agora sei que não queria conhecer, de um ano no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo, sem saber que estava destinado aos crimes dessa mesma estirpe, quase toda ao serviço da então Ditadura Nacional. Enverguei, sem saber o seu significado, a farda da Mocidade Portuguesa que vesti aos doze anos de idade – era para que eu fosse mais um criminoso do regime dominado por um cidadão rural que calçava botas pretas e tinha vindo de uma aldeia qualquer. Agradeço à minha geração por ter desmontado na literatura toda esta farsa, demasiado universal, não só portuguesa. Agradeço ainda mais à geração que nos segue por não ter esquecido nem dar tréguas a nada desta história, agora numa democracia também viciada, oportunista, corrupta, ambiciosa e a querer ser dona de isto tudo, como agora se diz de outra figura de família muito “honrosa”, muito conhecida entre nós, e já sem memória de nada.

    A suprema novela de Joel Neto, Jénifer, ou a princesa da França, traz o subtítulo de As ilhas (realmente) desconhecidas. Sublinha o que restou a Raul Brandão e a Vitorino Nemésio dizerem. Escreveram o que hoje resta aos amados e e bem-vindos turistas – nada de mal nessa prosa de descoberta e saudosista nos anos 20 e 40. Só que a minha e as novas gerações de escritores têm outros projetos ou ideias em tudo que toca à nossa terra a meio mar, à terra de outros que quiseram e querem partilhar connosco por uns dias ou por toda a vida. A nossa nova elite já não vai passar despercebida, num caso ou outro respeitada, ou simplesmente como personagens do nosso riso e desprezo

    Eis a razão de toda arte. Recriar o que temos por realidade, reinventar a outra realidade que a maioria deseja, e que uma minoria ignora em proveito próprio, os nossos novos capitães-generais. Jénifer, ou princesa da França: As ilhas “realmente” desconhecidas é um dos mais eloquentes e belos testemunhos da vergonha da minha própria geração.

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Joel Neto, Génifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas, Lisboa, Fundação Francisco Manuel Dos Santos, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 26 de janeiro de 2024.




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