Pedro de Mendoza, Cântico Das Ilhas
O terceiro livro de poesia de Pedro de Mendoza, Cântico Das Ilhas, segue dois outros livros de prosa publicado ainda há relativamente pouco tempo, um conjunto de crónicas-ensaios respetivamente intitulados Tudo O Que Não Se Pode Dizer e Café Royal, assinados com outra parte do seu nome, Pedro Arruda. Em ambos os casos essa escrita foi publicada no Açoriano Oriental numa colaboração semanal. Já nesses dois livros, a sequência de pensamento estruturado sobressai em linguagens a um tempo escorreitas e significantes sobretudo quando abordam os mais complexos temas enquanto trazem a público um dos nossos mais distintos intelectuais. Todo o seu passado entre Lisboa e os Açores é convocado neste longo poema em cinco secções ou capítulos, cada uma deles interligando o “eu” poético, lírico, com a história não só das ilhas como com a sua capacidade de integrar em cada verso ou estrofe a sua herança intelectual e literária de outros escritores açorianos do nosso arquipélago com os mais destacados pensadores nacionais e mundiais, uns seus contemporâneos outros já fazendo parte da História universal.
Só que algo mais, e para mim de maior capacidade poética, astúcia de pensamento e relevância serve de fio condutor: a questão sempre em aberto da açorianidade, a tentativa de uma definição sobre o que é “ser-se” açoriano, que a minha geração reavivou em todas as formas literárias antes e depois da fundação da nossa democracia. O que é que nos faz parte inteira da nação portuguesa, o que nos diferencia como comunidade politicamente autónoma ou mesmo cultural? Cântico Das Ilhas ergue-se aqui como um dos mais profundos questionamentos que desafia todos nós a repensarmos e a reequacionar o nosso lugar histórico perante o restante país e o mundo, e isto em todos os quadrantes da vida. Recordo aqui que Onésimo T. Almeida tanto afirmou como questionou toda esta questão em vários volumes da sua obra ao longo da sua carreira. “A nossa geografia vale tanto quanto a nossa história”, como escreveria Vitorino Nemésio? Talvez. Só que o mundo está cheio de ilhas e geografias semelhantes, umas mais agrestes do que outras. A nossa diferença é que não tínhamos cá ninguém antes da chegada lusa. De resto, a Natureza difere pouco de algumas outras geografias semelhantes. Pedro de Mendoza reafirma constantemente as palavras de outros autores, inclusive os da nossa diáspora, como já referi, para de seguida tentar perceber um lugar diferente, no modo como ele próprio entende a noção de “cidadania”, de “pertença”, do sentir quotidianamente tudo que lhe rodeia, desde a visão do mar quieto ou revolto a partir da sua janela, à terra em volta, às tradições que nos mantêm como “povo unido” e com certezas pela maioria supostamente inquestionáveis, mesmo que de ilha para ilha as nossas diferenças sejam “óbvias”, desde o sotaque e culinária à visão que uma e outra tem da noção de região integrada – só pela geografia e o projeto político e administrativo reinventado a partir da revolução de 1974.
A originalidade da poesia de Cântico Das Ilhas, creio, parte da capacidade do autor, uma vez mais, de colocar a nossa maneira de ser ante o que os mais diversos autores do mundo disseram de si e da exigência de cada um de nós em toda a parte – a necessidade de se sentir parte integrante de um povo, de uma geografia, de um modo de ser e estar que nunca conseguimos, ninguém consegue, definir por palavras. Recorrer a outros poetas ou escritores nossos ou de fora em nada torna claro o que queremos dizer quando dizemos ser açorianos, portugueses, ou outra nacionalidade qualquer. Salman Rushdie intitulou um dos seus livros Imaginary Homelands/Pátrias Imaginárias. Ele que era muçulmano numa Índia maioritariamente Hindu, e depois cidadão britânico, mais tarde cidadão também americano. Nem geografia nem história definia quem ele era na sua caminhada de vida. Poderão acrescentar que nós portugueses sempre tivemos um destino comum, a mesma língua e depois uma religião dominante. Diz muito, mas não diz o essencial – quem sou “eu” num país em que a maioria dos açorianos não conhecia até há algumas décadas recentes? Só conheci o continente português já como adulto e de dupla nacionalidade a meados dos anos 70. Entretanto, definia-me perante outros como português – que um amigo judeu de experiência verdadeiramente internacional conhecia em direto e eu não, tinha passagens e vivência para os lados de Cascais. Quando comecei a regressar à minha Ilha Terceira, era mais americano do que qualquer ideia de filho da minha terra natal. Quem sou eu perante a história e o destino de toda uma comunidade? Como continuava a considerar-me português dos Açores? Foi a geografia ou a história que fez os meus pais levar-nos para a Califórnia? Eis aqui o questionamento de Pedro de Mendoza em Cântico Das Ilhas, que numa das mais eloquentes apresentações de um livro em Ponta Delgada diria que ainda hoje alguns indígenas de cá chamam-lhe de “português” por ter por Lisboa como ponto de partida na sua vida, sem contar com a sua opção de continuar essa mesma vida numa ilha dos pais e de extensa família bem conhecida.
Bem sei que que tenho descurado neste texto a beleza dos seus versos, em Cântico Das Ilhas. Direi só que estamos nestas páginas entre poesia e uma forma de prosa poética. O fascínio deste livro é que nos interpela constantemente sobre tudo o que mencionei em linhas prévias. Uma comunidade é um ato da imaginação muito mais do que a geografia e a história, somos parte de quem escolhemos ser parte. Açoriano, português ou americano é de quem escolhe a sua própria identidade ou identidades.
A poesia, como toda a escrita consequente, íntima, serve em primeiro lugar para despertar em nós pensamento, melhor entendimento da nossa condição existencial, que no seu fundo desperta a consciência planetária, a igualdade na diferença de cada ser humano ou nacionalidade expressa num cartão de cidadão.
Desde o primeiro homem a pôr o pé neste solo
que estas ilhas foram morada de exilados e de cativos
conversos e arrenegados
homens em fuga de si próprios
homens em busca de redenção e
de refúgio.
Cântico Das Ilhas traz-nos ainda as últimas páginas que não são nada comuns na nossa escrita poética, ou outra. Como as referências históricas da fundação humana dos Açores e essenciais ao tema dominante de uma poema lírico e narrativo, o autor encerra o seu livro com um distinto glossário, que lemos como se fosse parte do poema. Nomes de poetas e outros escritores e as obras referidas em sucessivos versos, acontecimentos históricos na povoação dos Açores e o que levou à chegada das caravelas, conceitos sobre açorianidade e o mundo em geral que enfrenta os mesmos dilemas, as mesmas angústias, as mesmas certezas incertas. Em 1951 a primeira tradução em inglês no Reino Unido de Os Lusíadas, pela impossibilidade de transcrever os versos de Camões para essa língua, levou o tradutor a fazer uma espécie de romance, e que lemos como tal. Esta obra de Pedro de Mendoza poderá ser feita nessa mesma forma a partir do original, ou como uma história pessoal e universal. Se há livros que merecem ser passados para os nossos luso-descendentes ou açor-descendentes, esta é definitivamente uma delas.
O poeta no seu labirinto. A história açoriana como epopeia ou anti-epopeia no conjunto das regiões e nacionalidades. Afinal, a açorianidade imaginada na sua mais eloquente e problemática literatura, sempre aberta às mais diversas interpretações, lugar do pensamento e do prazer puro da arte literária.
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Pedro de Mendoza, Cântico Das Ilhas, Ponta Delgada, Edição de Autor, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental de 10 de novembro de 2023.
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