sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Amos Oz: sobre guerra e paz em Israel e na Palestina


Tenho muito medo do futuro. Tenho medo da política do governo e envergonho-me dela. Tenho medo do fanatismo e da violência crescente entre nós, e também me envergonho dela. Mas gosto de viver em Israel. Gosto de ser cidadão de um país que tem oito milhões e meio de profetas, e oito milhões e meio de messias.  

Amos Oz, Caros Fanáticos: Fé, fanatismo e convivência no século XXI

Nota Prévia: este texto foi publicado há alguns anos (2018) nestas páginas. Um amigo lembrou-me que deveria sair novamente. Aqui vai.

    Bem sei que a epígrafe de acima é um pouco longa, mas estas palavras vindas de quem vêm não podiam deixar de abrir este meu texto. Amos Oz é um dos mais famosos romancistas e jornalistas israelitas, premiado ao longo da sua carreira nos mais diversos países por inúmeros romances, muitos dos quais traduzidos entre nós, desde A Caixa NegraUma História de Amor e Trevas, Judas, entre muitos outros. Nascido em Jerusalém em 1938, como adolescente, diz ele num destes seus ensaios, atirava pedras à polícia britânica que patrulhava as suas ruas antes da independência em 1948, mas isso antes de fazer amizade com um desses polícias que sabia mais do Antigo Testamento do que ele, e queria muito o regresso dos judeus à sua terra histórica e sagrada. Este seu recente livro contém três ensaios (“Caros Fanáticos”, “Luzes e não uma única luz” e “Sonhos de que Israel se deve libertar rapidamente”) que são de uma clareza fulminante – e de maior castigo não para com os palestinianos, mas sim para com os seus concidadãos após a Guerra Dos Seis Dias, a condenação do poder em Telavive, assim como contra os que ele denomina de fanáticos ortodoxos, desde certos políticos aos colonos israelitas na Cisjordânia, e que ele advogada a sua retirada imediata juntamente com um diálogo persistente com os seus vizinhos muçulmanos. Aqui a nossa humanidade não tem cor, raça, etnia ou crenças religiosas. Tem o dever da convivência pacífica e justa entre todos. Reclama parte do território antes da Guerra dos Seis Dias como sendo território histórico – não só bíblico – dos judeus, mas tudo o resto, segundo o autor, deve ser feito pela paz, até por uma possível confederação entre os dois estados, que ele defende sem quaisquer reticências ou medo. O contrário será a tragédia absoluta, e quem vai perder novamente, afirma de novo o autor, serão os judeus. Sempre que enfrentaram grandes potências, relembra-nos, foram eles que perderam decididamente, desde a Babilónia até aos romanos, já sem falar no Holocausto europeu do século XX. Não se trata, nestas suas palavras brilhantes, de culpas ou acusações, antes que retomemos todos o melhor em nós sem que ninguém seja subjugado ou martirizado, como estão sendo os seus vizinhos na Palestina. Viver num mundo em caos, como vivemos, ler estas vozes é um sopro de saúde e sanidade. Amos Oz, na sua profunda humanidade e inteligência, mesmo indiretamente, não fala só do Médio Oriente, fala de nós todos, fala da decência que nos falta, fala da injustiça que graça no mundo inteiro. Não abdica da sua ideologia do esquerdismo moderado nem do seu judaísmo, mesmo que mais laico do que praticante, como não abdica na sua insistência que só o diálogo e a convivência pacífica será a nossa única salvação.

Amos Oz
    Antes de mais, uma pausa. Li há poucos tempos o romance de Amos O
z (1938-2018)Judas, e pouco mais tarde Horse Walks Into a Bar do grande e também muito premiado israelita David Grossman. Já há alguns anos li (em inglês) o longo ensaio deste autor intitulado The Yellow Wind (1988), em que ele tinha visitado as comunidades palestinianas sitiadas e dava conta do que viu e ouviu, nos termos mais humanistas e compreensíveis do sofrimento dos outros, dos “apátridas” em agonia. Não se trata, nestas palavras brilhantes destes dois autores, de culpas ou acusações, antes de uma espécie de apelo para que todos vivam o melhor em nós, sem que ninguém seja subjugado ou martirizado, como estão sendo os seus vizinhos na Palestina, e mesmo alguns judeus do Estado de Israel. Viver num mundo em caos, como vivemos, ler estas vozes, uma vez mais, é um sopro de saúde e sanidade. Amos Oz, na sua profunda humanidade e inteligência, não fala só do Médio Oriente, fala de nós todos, fala da decência que nos falta, fala da injustiça que graça no mundo inteiro. Não abdica, repita-se, da sua ideologia de esquerdista moderado nem do seu judaísmo, mesmo que mais laico do que praticante, como não abdica na sua insistência que só o diálogo e a convivência pacífica será a nossa única salvação possível. Amos Oz desmonta praticamente não só todos os argumentos do Poder no seu país, como desmonta o fanatismo de todos os outros que insistem numa suposta Grande Israel. Escreve ainda com mais coragem quando diz que certos “direitos” têm de ser esquecidos. Prefere estar vivo antes de ser judeu, e se ele, os seus filhos e netos assim como todos os seus conterrâneos nacionais não poderão rezar no Monte do Templo, pois que assim seja. Avisa ainda, e relembra, que desde a fundação o seu país sempre dependeu da proteção de uma grande potência, tenha sido ela a Inglaterra, a França e até, por algum tempo curto, a União Soviética de Estaline. A crença de que os Estados Unidos serão sempre um aliado eterno, afirma ele, é um erro. A política internacional é mutável, e ninguém sabe o que poderá acontecer amanhã na América do Norte em relação a Israel. O autor pede dois estados lado a lado, dando tempo aos palestinianos de se habituarem à “normalidade”. O futuro pode guardar uma federação económica e política, a paz sem muros nem ódios irracionais. Ler estas e outras vozes daquele país é termos a esperança que neste momento todos negam. Faz um aviso muito contundente: ou dois estados, ou só um, e esse inevitavelmente seria árabe. Mais de duzentos milhões de “inimigos”, ricos e alguns armados com armas nucleares não nos deixam qualquer esperança de uma vitória de um pequeno e vulnerável país. Amos Oz não quer viver como minoria subjugada, prefere fronteiras reduzidas às suas dimensões possíveis, um Estado luminoso, e pelos outros aceitável mas seguro e normalizado.

    O facto de os Estados Unidos serem nossos aliados é algo transitório. Pode mudar. Mas o facto de que os palestinianos são os nossos vizinhos e de que nós vivemos no centro do mundo árabe e muçulmano – são dois elementos permanentes da nossa situação. O próprio perigo nuclear do Irão é um fator transitório, e não permanente porque mesmo se nós ou outros bombardeemos o seu arsenal nuclear, não seremos capazes de bombardear o conhecimento que eles detêm. E mais: o Paquistão nuclear pode tornar-se um estado islâmico mais extremista ainda do que o Irão. E mais ainda: não é possível impedir que os inimigos ricos de Israel comprem armas nucleares à venda e as lancem contra nós. Daqui a poucos anos quem quiser armas de destruição maciça poderá adquiri-las. Nesta questão também é obrigatório aprender a distinguir entre o transitório e o permanente. Permanente tem de ser a capacidade de dissuasão de Israel, enquanto as capacidades dos nossos inimigos, a nuclear e outras, são algo transitório, que no final de contas não depende de nós.”

    N
mães de Gaza, 2023
ão, sou nem historiador nem cientista político. Só que um grande escritor como Amos Oz sente a obrigação de comunicar com os líderes do seu país, e eu sinto a obrigação de o ler, de com ele, e outros, aprender o que pensam e como vivem todos os nossos dias. Ser cidadão de Israel deve ser viver sempre na iminência de outra guerra, no ato terrorista e mortífero de um lado e do outro, e no desgosto absoluto de ver o seu país oprimir um outro povo. Por certo que o Holocausto da Europa selvagem tem tudo isto como génese e como tragédia. O grande autor mundial não culpa ninguém aqui, a não ser os seus próprios conterrâneos, sente o direito de viver em paz na sua pequena terra, de dar um futuro seguro aos seus filhos e netos, e a todos os outros, e de permitir aos seus vizinhos que tenham a mesma vida digna, sem sofrimento nem morte. Só os grandes artistas entram na nossa alma, vão para além dos números, das figuras e acontecimentos tantas vezes mais imaginados do que verdadeiros, sempre sob uma capa supostamente académica, que depressa esquecemos. Tornam-nos um pouco mais sensíveis a nós próprios e aos outros. Um ensaio de um grande escritor é mais do que um relato de “factos” — é entrar no mais profundo do nosso ser.
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Amos Oz, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2018.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 10 de novembro de 2023.

Amos Oz, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2018. Amos Oz faleceu em 2018.

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