Tenho
muito medo do futuro. Tenho medo da política do governo e
envergonho-me dela. Tenho medo do fanatismo e da violência crescente
entre nós, e também me envergonho dela. Mas gosto de viver em
Israel. Gosto de ser cidadão de um país que tem oito milhões e
meio de profetas, e oito milhões e meio de messias.
Amos
Oz,
Caros
Fanáticos: Fé, fanatismo e convivência no século XXI
Nota
Prévia: este
texto foi
publicado há alguns anos (2018) nestas
páginas. Um amigo lembrou-me que deveria sair novamente. Aqui vai.
Bem
sei que a epígrafe de acima é um pouco longa, mas estas palavras
vindas de quem vêm não podiam deixar de abrir este meu texto. Amos
Oz
é um dos mais famosos romancistas e jornalistas israelitas, premiado
ao longo da sua carreira nos mais diversos países por inúmeros
romances, muitos dos quais traduzidos entre nós, desde A
Caixa Negra, Uma
História de Amor e Trevas, Judas,
entre muitos outros. Nascido em Jerusalém em 1938, como adolescente,
diz ele num destes seus ensaios, atirava pedras à polícia britânica
que patrulhava as suas ruas antes da independência em 1948, mas isso
antes de fazer amizade com um desses polícias que sabia mais do
Antigo Testamento do que ele, e queria muito o regresso dos judeus à
sua terra histórica e sagrada. Este seu recente livro contém três
ensaios (“Caros Fanáticos”, “Luzes e não uma única luz” e
“Sonhos de que Israel se deve libertar rapidamente”) que são de
uma clareza fulminante – e de maior castigo não para com os
palestinianos, mas sim para com os seus concidadãos após a Guerra
Dos Seis Dias, a condenação do poder em Telavive,
assim como contra os que ele denomina de fanáticos ortodoxos, desde
certos políticos aos colonos israelitas na Cisjordânia, e que ele
advogada a sua retirada imediata juntamente com um diálogo
persistente com os seus vizinhos muçulmanos. Aqui a nossa humanidade
não tem cor, raça, etnia ou crenças religiosas. Tem o dever da
convivência pacífica e justa entre todos. Reclama parte do
território antes da Guerra dos Seis Dias como sendo território
histórico – não só bíblico – dos judeus, mas tudo o resto,
segundo o autor, deve ser feito pela paz, até por uma possível
confederação entre os dois estados, que ele defende sem quaisquer
reticências ou medo. O contrário será a tragédia absoluta, e quem
vai perder novamente, afirma de novo o autor, serão os judeus.
Sempre que enfrentaram grandes potências, relembra-nos, foram eles
que perderam decididamente, desde a Babilónia até aos romanos, já
sem falar no Holocausto europeu do século XX. Não se trata, nestas
suas palavras brilhantes, de culpas ou acusações, antes que
retomemos todos o melhor em nós sem que ninguém seja subjugado ou
martirizado, como estão sendo os seus vizinhos na Palestina. Viver
num mundo em caos, como vivemos, ler estas vozes é um sopro de saúde
e sanidade. Amos Oz,
na sua profunda humanidade e inteligência, mesmo indiretamente, não
fala só do Médio Oriente, fala de nós todos, fala da decência que
nos falta, fala da injustiça que graça no mundo inteiro. Não
abdica da sua ideologia do esquerdismo moderado nem do seu judaísmo,
mesmo que mais laico do que praticante, como não abdica na sua
insistência que só o diálogo e a convivência pacífica será a
nossa única salvação.
|
Amos Oz |
Antes
de mais, uma pausa. Li há poucos tempos o romance de Amos Oz (1938-2018), Judas, e pouco mais tarde Horse
Walks Into a Bar do
grande e também muito premiado israelita David Grossman. Já há
alguns anos li (em inglês) o longo ensaio deste autor intitulado The
Yellow Wind (1988),
em que ele tinha visitado as comunidades palestinianas sitiadas e
dava conta do que viu e ouviu, nos termos mais humanistas e
compreensíveis do sofrimento dos outros, dos “apátridas” em
agonia. Não se trata, nestas palavras brilhantes destes dois
autores, de culpas ou acusações, antes de uma espécie de apelo
para que todos vivam o melhor em nós, sem que ninguém seja
subjugado ou martirizado, como estão sendo os seus vizinhos na
Palestina, e mesmo alguns judeus do Estado de Israel. Viver num mundo
em caos, como vivemos, ler estas vozes, uma vez mais, é um sopro de
saúde e sanidade. Amos Oz,
na sua profunda humanidade e inteligência, não fala só do Médio
Oriente, fala de nós todos, fala da decência que nos falta, fala da
injustiça que graça no mundo inteiro. Não abdica, repita-se, da
sua ideologia de esquerdista
moderado nem do seu judaísmo, mesmo que mais laico do que
praticante, como não abdica na sua insistência que só o diálogo e
a convivência pacífica será a nossa única salvação possível.
Amos Oz
desmonta praticamente não só todos os argumentos do Poder no seu
país, como desmonta o fanatismo de todos os outros que insistem numa
suposta Grande Israel. Escreve ainda com mais coragem quando diz que
certos “direitos” têm de ser esquecidos. Prefere estar vivo
antes de ser judeu, e se ele, os seus filhos e netos assim como todos
os seus conterrâneos nacionais não poderão rezar no Monte do
Templo, pois que assim seja. Avisa ainda, e relembra, que desde a
fundação o seu país sempre dependeu da proteção de uma grande
potência, tenha sido ela a Inglaterra, a França e até, por algum
tempo curto, a União Soviética de Estaline. A crença de que os
Estados Unidos serão sempre um aliado eterno, afirma ele, é um
erro. A política internacional é mutável, e ninguém sabe o que
poderá acontecer amanhã na América do Norte em relação a Israel.
O autor pede dois estados lado a lado, dando tempo aos palestinianos
de se habituarem à
“normalidade”. O futuro pode guardar uma federação económica e
política, a paz sem muros nem ódios irracionais. Ler estas e outras
vozes daquele país é termos a esperança que neste momento todos
negam. Faz um aviso muito contundente: ou dois estados, ou só um, e
esse inevitavelmente seria árabe. Mais de duzentos milhões de
“inimigos”, ricos e alguns armados com armas nucleares não nos
deixam qualquer esperança de uma vitória de um pequeno e vulnerável
país. Amos Oz
não quer viver como minoria subjugada, prefere fronteiras reduzidas
às suas dimensões possíveis, um Estado luminoso, e pelos outros
aceitável mas seguro e normalizado.
“O
facto de os Estados Unidos serem nossos aliados é algo transitório.
Pode mudar. Mas o facto de que os palestinianos são os nossos
vizinhos e de que nós vivemos no centro do mundo árabe e muçulmano
– são dois elementos permanentes da nossa situação. O próprio
perigo nuclear do Irão é um fator transitório, e não permanente
porque mesmo se nós ou outros bombardeemos o seu arsenal nuclear,
não seremos capazes de bombardear o conhecimento que eles detêm. E
mais: o Paquistão nuclear pode tornar-se um estado islâmico mais
extremista ainda do que o Irão. E mais ainda: não é possível
impedir que os inimigos ricos de Israel comprem armas nucleares à
venda e as lancem contra nós. Daqui a poucos anos quem quiser armas
de destruição maciça poderá adquiri-las. Nesta questão também é
obrigatório aprender a distinguir entre o transitório e o
permanente. Permanente tem de ser a capacidade de dissuasão de
Israel, enquanto as capacidades dos nossos inimigos, a nuclear e
outras, são algo transitório, que no final de contas não depende
de nós.”
Não, sou nem historiador nem cientista político. Só que um grande
escritor como Amos Oz sente a obrigação de comunicar com os líderes
do seu país, e eu sinto a obrigação de o ler, de com ele, e
outros, aprender o que pensam e como vivem todos os nossos dias. Ser
cidadão de Israel deve ser viver sempre na iminência de outra
guerra, no ato terrorista e mortífero de um lado e do outro, e no
desgosto absoluto de ver o seu país oprimir um outro povo. Por certo
que o Holocausto da Europa selvagem tem tudo isto como génese e como
tragédia. O grande autor mundial não culpa ninguém aqui, a não
ser os seus próprios conterrâneos, sente o direito de viver em paz
na sua pequena terra, de dar um futuro seguro aos seus filhos e
netos, e a todos os outros, e de permitir aos seus vizinhos que
tenham a mesma vida digna, sem sofrimento nem morte. Só os grandes
artistas entram na nossa alma, vão para além dos números, das
figuras e acontecimentos tantas vezes mais imaginados do que
verdadeiros, sempre sob uma capa supostamente académica, que
depressa esquecemos. Tornam-nos um pouco mais sensíveis a nós
próprios e aos outros. Um ensaio de um grande escritor é mais do
que um relato de “factos” — é entrar no mais profundo do nosso
ser.___Amos Oz, Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2018.
BorderCrossings do Açoriano Oriental de 10 de novembro de 2023.
Amos
Oz,
Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2018. Amos
Oz faleceu em
2018.
Sem comentários:
Enviar um comentário