E continuo a perguntar-me, quem sou eu? Aonde pertenço se nasci num lugar mas vivo noutro? Sou daqui ou sou de lá, dos dois lados ou sou de lugar nenhum?
Esmeralda Cabral, How to Clean a Fish And Other Adventures in Portugal
A epígrafe deste texto é uma tradução minha do inglês do novo livro da luso-açor-canadiana Esmeralda Cabral, How to Clean a Fish And Other Adventures in Portugal. Trata-de do que na literatura anglófona formalmente se denomina “creative nonfiction”, neste caso uma muito expressiva e magnífica narrativa de memórias que nos leva brilhantemente a questionar uma vez mais a questão de identidades e sentimento de pertença a várias geografias e conjugação de culturas que nos tornam a todos, inevitavelmente, como que heterónimos de nós próprios (Fernando Pessoa nunca é esquecido neste livro), passando da angústia interior que nos assola na longa caminhada da vida para o conforto e riqueza de nos sabermos integrados em dois ou mais mundos, em duas ou mais línguas, a distância geográfica entre dois países, entre regiões dentro desses dois países, uma dádiva em que os “outros” se tornam “nós”, a universalidade não apenas uma noção intelectual e desejada mas sim uma realidade vivida quotidianamente entre os nossos mais próximos e queridos. Esmeralda Cabral emigrou aos sete anos de idade da Lagoa, em São Miguel, com a sua família para o Canadá, onde hoje vive em Vancouver com o seu marido e filhos, sem passar um único dia da sua vida sem sentir a saudade de tudo que lhe era bom na sua ilha de origem, e mais tarde de todo o seu país natal, que visita periodicamente revertendo o mesmo sentimento e estado de alma quando do Canadá se ausenta em trabalho ou em lazer, o verão limpo e o colorido do Outono à beira do Pacífico irremediavelmente a chamar-lhe de volta. Esta é uma mera tentativa de síntese minha de um livro de quase trezentas páginas numa linguagem escorreita e de significação abrangente que caracteriza a melhor literatura norte-americana. Para mim, como leitor, toca bem perto a minha experiência de dualidade nacional e cultural, ainda por cima eu que também emigrei dos Açores para os EUA em tenra idade, e desde há muito a viver esse ser repartido tanto numa pátria também separada pelo mar, e pelo mesmo mar separada do meu outro país a ocidente.
How to Clean a Fish And Other Adventures in Portugal/Como limpar um peixe e outras aventuras em Portugal poderá parecer um título estranho, só que expressa com precisão o ato da autora reivindicar para si e para os seus, os já nascidos no Canadá sem nenhum deles dominar o Português, incluindo o seu marido, Eric, de descendência britânica, a lusitanidade do seu ser, os sabores e os cheiros, as cores, as formas e a vivência das suas gentes deste lado do seu destino, as artes que se juntam ao seu território e ao modo subtil com que comunicam a sua existência e navegam em terra uma História de meandros íntimos e públicos nem sempre facilmente apreendidos mesmo que se sintam a casa com a naturalidade de pertença que querem por inteiro, a dupla cidadania e noções culturais e linguísticas apenas um outro pormenor, que nem o desconhecimento da língua por parte dos mais novos impede a firme vontade de relançar as raízes que são suas. O viveiro nemesiano plantado e replantado sem nunca deixar de ser a mesma árvore ou flor, há cinquenta anos o cravo da nossa liberdade como um símbolo maior. Eis a profunda essência da narrativa, ora alegre, ora perplexa, de Esmeralda Cabral quando nos anos de chumbo entre 2011-2015 vem para cá viver por uns meses prolongados com o seu marido e filha, Georgia, e mais tarde com Matt, o filho que havia ficado a completar mais um semestre na sua faculdade em Vancouver. Chega à Costa da Caparica, fazendo da pequena vila marinha a sul de Lisboa o centro nevrálgico e de reaprendizagem de tudo o que a autora decide reabsorver na condição de portuguesa que dissolve, como tantos outros, a distância e geografia, junta sem qualquer conflito os seus dois “territórios do coração”, a fluidez da sua identidade em constante redescoberta, a convivência na Costa num mercado de peixe com várias vendedoras e vendedores, num restaurante à beira mar com as ondas a bater por perto, nas conversas ouvidas num autocarro ou numa rua, nas andanças na baixa de Lisboa e arredores numa apreciação de tudo que grita História e idiossincrasia lusa, o tomar um pastel de nata com um café, o fazer amizade para a vida com os que então lhes eram desconhecidos – o já decantado labirinto da solidão e da saudade, que o fado lhe transmite desde criança nos Açores até hoje. Desemboca tudo e todos na alegria de uma refeição de peixe que ela aprende a preparar pela primeira vez, na alegria da bondade dos que a rodeiam e em pouco lhes adotam a todos como vizinhos que se expressam em duas línguas e olham o que vai em volta de outra maneira ante a admiração e aceitação dos que de cá nunca saíram. No meio da barulheira portuguesa em toda a parte, nuns anos de medo e raiva no nosso país, o senhorio da casa que a autora tinha arrendado leva toda a família para a sua aldeia nas imediações da Serra da Estrela para um dia, outra vez, de boas refeições e, sempre, amizade, sem mais nenhum motivo do que esse gesto representa – a generosidade de parte a parte, o outro lado mais reconhecido de como somos e queremos ser sempre. Quando uma senhora qualquer confunde Esmeralda e as suas companhias familiares num elétrico a subir a Alfama como “turistas” e desata a mal trata-los em voz alta por virem ocupar, “comprar” o resto da cidade, o condutor de um desses famosos e históricos elétricos para e vem dizer à senhora que cesse de imediato a sua diatribe contra os que ela pensava serem “estrangeiros”, e que o fossem – diz o condutor do elétrico que será ela a ir para rua se não se calar. Bem-vindos à nossa casa comum.
“Tenho-me sempre dado conta – escreve a narradora a dada altura – que sou de dois lugares e de duas culturas. E isso é a minha difícil condição de imigrante. Eu sou o hífen entre portuguesa e canadiana. A integração em nenhum dos meus lugares nunca será perfeita. Mas alguma vez é? Será mesmo alguma vez? Mesmo para aqueles que não são imigrantes, aqueles que estão sempre “em casa” em qualquer um desses seus lugares?”
Estão sim, como sei da dualidade da nossa experiência. Lembro-me perfeitamente do dia em que eu me encontrava na minha casa da Costa da Caparica, num tempo de profunda dor para mim, e tomei um copo – eu um copo, eles um café, se a memória não me falha – e falamos sobre tudo isto e algo mais. Fiquei a saber numa esplanada em redor da Praça Padre Manuel Bernardes que a universidade de Eric em Vancouver lhe tinha proporcionado vir como professor universitário por um semestre ao campus na margem sul da Universidade de Nova de Lisboa fazer investigação científica na sua área de especialização, semelhante à dedicação da sua mulher ao meio ambiente, à natureza em geral. Tinham trazido consigo Maggie, um dos famosos Cães de Água portugueses. O problema de Esmeralda foi sempre o mesmo: a tradução para Eric e outros visitantes do Canadá do que falavam, o que na narrativa deste livro a autora se queixa por todo o lado que visitavam, e entre todos com quem conviviam. Só lhe ficava ou fica bem.
Leio agora que a autora enviava várias caixas de livros portugueses para o Canadá, mas que ler aí na nossa língua também comum era-lhe mais difícil do que lê-los em Portugal, na sua terra natal, na terra onde tinham sido escritos ou pensados. Não se preocupe, cara autora, a portugalidade pode e vai ser sempre continuada em qualquer língua. Os seus filhos são a prova do que acabo de escrever. Não creio que eles passem toda a vida sem se lembrarem da sua rica herança bi-nacional. Quando, como foi sempre o seu caso, ouvirem Amália ou Carlos do Carmo, Lisboa e Portugal no seu todo, no continente ou a meio mar nas ilhas, vão surgir continuamente na sua mente e na alma.
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Esmeralda Cabral, How to Clean a Fish And Other Adventures in Portugal, Edmonton, A
BorderCrossings do Açoriano Oriental de 3 de novembro de 2023.
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