quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A cultura nos Açores, hoje

Angra do Heroísmo

                                        I

    Já em tempos escrevi sobre esta mesma questão. Repito-me: a cultura nos Açores está muito bem, e até fulgurante na sua variedade entre géneros e formas, desde a literatura, teatro, música e outras formas diversas de representações mais ou menos ditas eruditas até à continuidade da cultura também dita popular em todas as ilhas. Bem sei que há muitas queixas vindas de certos quadrantes, quase sempre lamentando a falta de verbas públicas. Só que, na minha opinião, essa produção cultural em todas as suas vertentes não pode nem deve estar sempre – digo apenas, sempredependente de órgãos oficializados, tem de partir da sociedade em geral, tem de vir, nascer e renascer da vontade e chamamento interior muito forte de indivíduos, de associações, da sociedade açoriana no seu todo. Todos os governos autónomos dos Açores têm feito o que lhes é possível adentro dos seus conhecidos constrangimentos financeiros, que me recuso a atribuir seja a quem for, Região, Lisboa e Bruxelas inclusive. Temos, por exemplo, uma das mais ricas literaturas de língua portuguesa desde sempre, desde Gaspar Frutuoso aos nomes múltiplos dos nossos reconhecidos escritores modernistas dentro e fora do arquipélago. Serão muitíssimo poucos os escritores que recebem um cêntimo pelo seu trabalho, e se o recebem vem das suas editoras e de mais ninguém. A compra de livros pelo nosso governo nem é um favor obrigatório. Ter crescido e sido formado nos Estados da América do Norte ensinou-me algumas coisas, sem nunca esquecer as condições maiores ou menores das minhas pátrias. Que outros façam o mesmo, e quando receberem alguma colaboração, venha de onde vier, só lhes resta agradecer. Pronto, vou dizer – a minha ideologia, ou a minha própria mundividência, nunca me vai impedir de afirmar que um povo que em algumas décadas passou a depender quase na totalidade do seu Estado não dignifica a nossa noção de liberdade cívica. Não falo dos que caíram na chamada rede de proteção quotidiana. Devem recebe-la, a proteção possível, e para bem de nós todos para que tentemos evitar uma sociedade dividida em duas, uma de fartura ou de relativo bem-estar e outra de miséria. Deveria estar em causa a nossa tradição judaico-cristã, a nossa luta contra a crueldade e a consciência de que todas, todas, as sociedades enfrentaram e enfrentam sempre a mesma condição. O que nos difere de elites porventura egoístas, essas sem o mínimo bater de uma alma limpa, é isto tudo. Sei que estou a falar de “política” aqui, mas não é isso que trará qualquer novidade nos tempos de agora, muito menos dos tempos que vêm de longe. Estou simplesmente a tentar reafirmar a essencialidade da cultura nesta e em qualquer sociedade.

Ilha do Corvo
                        II

    A relação tradição/modernidade está intimamente interligada. Aliás, toda a nossa grande literatura modernista tem necessariamente as suas raízes não só na nossa História, como nos testemunhos vividos por certos escritores nas suas comunidades e nas suas migrações para toda a parte. Esses escritores revitalizam, revisitam e revêm o que lhes foi transmitido por todos os outros em redor das suas vivências, pelo que ouviram dos seus pais, pelas manhãs que os viam sair para terras suas ou de outros numa incansável tentativa de colocar alguma comida na mesa, vestir os seus filhos, permitir-lhes a educação escolar a qualquer nível, ensinar-lhes a dureza da luta contra a pobreza, ou algum conforto das letras e conhecer as coisas de outro modo. Não há Modernidade alguma sem ser a partir dessa Tradição (agora em maiúsculas) que tanto pode ser “castigada” como “continuada” nessas novas versões interpretativas de cada livro ou poema, de certa letra musical, de uma ou outra peça de teatro, do simples e magoado olhar de um vizinho. Fora as formas de governamentalidade que sofremos ao longo da nossa História até décadas recentes, fora de certa pregação-outra no nosso longínquo passado, sempre clamamos pelo que nos trouxe, uma vez mais, a Modernidade: liberdade e justiça primeiro do que tudo, como aliás tem escrito um dos nossos maiores escritores, Onésimo Teotónio Almeida. Uma vez mais: a Modernidade é quase sempre revisionista, critica e expressa outros modos de estarmos e sermos. O resto é mera retórica vazia ou ultrapassada. Outra opinião minha, não sei se transitável para alguns outros. Modernidade, nas suas outras facetas do dia a dia, no seu materialismo e consumismo? Também agora cada vez mais injusta, cada vez mais o domínio da pequena percentagem que se pensa dona de tudo o resto, a vasta maioria dos seres humanos no sofrimento e na devastação do seu quotidiano. Nessa Modernidade, quando retomar a sua consciência e sentido de equilíbrio social, depende toda a sociedade para que possa avistar um futuro um pouco mais risonho e decente.

Ponta Delgada

                            III

    O que é e deve ser a cultura nos Açores, perguntam-me. Deve ser tudo isto, e algo mais. O corte radical com tudo o que poderá exigir dependência de qualquer Poder local, regional e nacional. Pena não termos mais uns poucos mecenas anónimos nos Açores, como acontece noutros países, que nada pedem ou exigem, em termos políticos e ideológicos, a quem esse apoio é dado sem publicidade alguma. Mas há uma outra exceção. Não acharia nada de errado que um grupo teatral ou de qualquer outra manifestação artística tivesse ou tenha um palco público, ou que os livros dos nossos escritores sejam colocados em todas as nossas bibliotecas escolares e municipais, deixando aos professores a liberdade de escola sobre quem falam ou transmitem aos seus alunos, ou público em geral. Aprendamos a viver com as nossas circunstâncias financeiras, aprendamos a viver com as iniciativas que resultam da liberdade e meios de cada um ou uns que têm o privilégio dos dias livres e sem fome ou falta de teto nos dias e nas noites. Fala aqui quem nunca lucrou com nada oficializado. Quase todos os escritores – e outros ligados à nossa cultura popular – viajam só quando convidados e desempenham o trabalho pedido. Hesito cada mais a qualquer convite que não seja dos meus pares, e ainda mais se souber que alguém com interesses de qualquer espécie – para além da amizade, delicadeza ou respeito pelo nosso trabalho me pague nem que seja um pequeno almoço. Os nossos valores não são estáticos. Passada a juventude, acumulam-se outros ensinamentos. Que as novas gerações dedicadas a todas as áreas culturais pensem mais na liberdade essencial a qualquer representação pública do que em prestígios que duram menos de vinte e quatro horas.

Vulcão dos Capelinhos (Faial)
                            IV

    A cultura dos e nos Açores durante cinco séculos nunca dependeu de qualquer ajuda oficializada. Ergueram-se sociedades da comunidade e filarmónicas, construiram-se palcos para teatros e outro entretenimento, vizinhos e consciência cívica carregavam pedras e tudo o resto, imigrantes enviavam um pouco de tudo, até fardas e instrumentos musicais. Festas comemorativas de padroeiros e padroeiras aconteciam com a maior beleza e cor. Éramos “pobres”. Sim. Ninguém quererá voltar a esse abandono total que mesmo assim celebrava e fazia comunidade. A Cultura nos Açores vai continuar. Creio que todos nós deveríamos entender um pouco melhor a necessidade de iniciativas livres e nunca dependentes do Poder. Quando os seus patrocínios chegarem – e chegam – que nenhum governante descrimine seja quem for, que nunca avalie as coisas pela sua ideologia desde que todas as nossas representações estejam dentro da razoabilidade ética, sobretudo quando exerce a crítica à deriva em que todos nos encontramos.

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Este texto é uma extensão de respostas breves a três perguntas sobre a relação entre Tradição e Modernidade feitas pela CulturAçores-Revista de Cultura, sob o tema “Pensar a Cultura d(n)os Açores”.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 20 de outubro de 2023


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