de mãos atadas, hás-de sair deste sobressalto,/com sete palavras ardidas,/e o corpo armadilhado.
Emanuel Jorge Botelho, O Livro Das Coisas Ardidas
O que mais impressiona nesta outra suprema poesia de Emanuel Jorge Botelho, O Livro Das Coisas Ardidas, é uma insistente visão do fim, ou melhor dito, de um fim que nós todos adivinhamos mas não tememos necessariamente. Por certo que as geografias dos seus afetos continuam aqui presentes quase de verso em verso, mas também em nota maior a sua condição interior, a segurança que os anos nos trazem entre família e outros, o saber que só nas palavras e nos gestos quotidianos reside a única memória que ficará entre quem nos lê e entre quem connosco partilha os dias e as noites da nossa vivência quotidiana, fora de supostos holofotes que nenhum grande poeta ou escritor deseja ou procura. Em toda esta sequência de poemas aparecem, por vezes sós ou em continuidade nas mesmas estrofes, mas repetidamente numa significação temática que não pode passar despercebida, três palavras: sombra, silêncio, medo. A outra palavra que sublinhei foi morte, o que nos desperta tanto para a angústia do poeta, como para a sua aceitação de todas as leis de uma vida vivida entre quem ama e amou, consciente de cada momento que conjuga a alegria do amor com uma outra visão de um futuro que se aproxima, ou pensamos que se aproxima em pouco ou a longo prazo. A obra de Emanuel Jorge Botelho, creio que toda ela, é este exercício de palavras contidas e versos contidos que relembram todo um passado, que celebram os instantes em que o olhar de um pai, de uma mulher nossa, de um filho ou filha são a única redenção que resta na longa caminhada do poeta, de nós que o lemos ou recitamos, de todos os que nele se reconhecem, se revêm, não num percurso que foi só dele mas em tudo o resto que poderemos chamar de estados de alma ou na sentida humanidade que nos é comum. A poesia de Emanuel Jorge Botelho não é uma mera ou brilhante representação da sua vida – é a sua vida em conjunto com os seus mais próximos, é a nossa vida por mais diferenciada que nos pareça. Poucos entre nós terão esta sensibilidade, muitos entre nós a reconhecerão intimamente. A grande literatura é feita disto e de muito mais: a palavra certa em consonância com que as que lhe precedem ou seguem, é o rumor que ouvimos em silêncio, é a mão estendida a todos, as sombras que o rodeiam como que numa mensagem em que nada acabará nunca, quase contradizendo, na ambiguidade que caracteriza a grande literatura, o medo que é tão-só outro sinal de estarmos vivos.
No
seguimento deste parágrafo resta-me ainda dizer que O
Livro Das Coisas Ardidas
continua, sempre, o seu diálogo com os seus pares, com os seus mais
próximos, ora numa dedicatória, ora em alusões a outros poetas e
demais artistas do mundo. A ilha da sua nascença permanece como o
palco universal de tudo que é humano, de tudo que nos junta nas mais
diversas condições de vida, nas línguas e linguagens de outros,
nas geografias que só pensamos ser distantes. No cenário planetário
estão no centro a euforia da vida e a melancolia não de nos
sentirmos findáveis, mas sim já
a
saudade que
inevitavelmente nos virá
na
separação
das
viagens para outras dimensões, para o que queremos acreditar ser
outras dimensões, enquanto os que nos seguem farão por não nos
esquecer nesse
tal círculo interminável de mão dada: eu
queria morrer devagarinho,/com o silêncio certo/que a tua mão me
dá./ter uma rosa era bom, se ma trouxesses,/para eu a pôr ao lado
do teu nome.
É o poema “Prece” com a dedicatória “para a minha Lorena”,
a sua esposa de sempre e para sempre. Quem
não sente um momento perante o homem ou a mulher que amamos, esse ou
essa que definiu toda a nossa felicidade, e nunca parte em qualquer
circunstância? Dizê-lo assim, com estas imagens, com este sentir é
a
fala
que gostaríamos de ter com tanta claridade e força interior, o
presente e o passado que passam a ser o futuro – para sempre. Para
que serve a poesia? Para dizer o que
queríamos
e não sabemos dizer.
Se há alguma coisa que diferencia a grande poesia de outra escrita é
esta ausência do pudor da mente e a força da palavra sem mais
subterfúgios metafóricos.Emanuel Jorge Botelho
As
imagens de Emanuel Jorge Botelho, uma vez mais, são recorrentes. A
ilha, também uma vez mais, é o mundo. Ser ilhéu é ser filho do
mar, quer o vejamos ou não, quer o aceitemos como extensão do nosso
ser, ou neguemos por o ver como limite ou cerco. Emanuel Jorge
Botelho sempre o viu como a
outra representação
do mundo à beira da sua casa, olhando-o ainda pelo outro lado como
no poema intitulado precisamente “Ilha”: o
mar é a nossa cicatriz.
A dor da ferida, a cura que nos salva e afina a memória e a
consciência de sermos quem somos. Um outro poeta dizia que nenhum
homem é um ilha. Poderemos afirmar com toda a segurança do
conhecimento que todo o homem é uma ilha, aliás o mundo é ele todo
uma ilha, nenhum continente existe sem estar rodeado de mar por um
ou
todos os lados. A
poesia de O
Livro Das Coisas Ardidas
é como uma arpão atirado ao assombroso
mistério
do mar que se vira contra o arpoeiro. A sua poesia nunca foi uma da
insustentável leveza do ser, como na ideia irónica de certo
escritor checo recentemente falecido. Estes
são os curtos versos de um poeta maior num ato de balanço de uma
vida intensamente vivida através da palavra e dos poderosos gestos
quase invisíveis – sombras
e silêncio.
Que
somos e o
que somos ou pensamos ser,
nunca deixando
de expressar só o que a sua pessoa sentiu e sente perante si
próprio, perante um
medo
que deverá ser
comum,
a inominável inevitabilidade de qualquer vida.
foto de Aníbal C. Pires
Resta-me, talvez, a minha sombra,
essa espécie de risco benfazejo,
com que a alma dá guarida ao desencanto.
Digo sombra, como quem diz trevo, ou ousadia,
e dou-lhe uma madeixa muito antiga.
Talvez seja assim que o medo perde o tino,
e a memória guarda, quase impune,
o desenho, quase inteiro, do meu corpo.
Resta-lhe
agora a palavra limpa deixada para sempre, e a certeza da sombra que
restará da
viagem futura. Isto é um ato maior na poesia de língua portuguesa.
Há algo aqui, e noutros livros seus, que me surpreende: a ausência
dos seus anos na faculdade em Lisboa. Para
um poeta universalista poderá ser que, sem qualquer contradição,
está todo concentrado nos pequenos lugares, no lar e nas suas
estantes. A ilha em terra (como diria outro poeta açoriano e que
passou a vida na América), mais mar menos mar, contém toda a
humanidade olhada e entendida num relance da noite ou do dia, tudo
visto na sua lucidez ou
na
loucura individual e coletiva, na sua lealdade e na sua perfídia, na
sua felicidade e na sua infelicidade. Como também o disse com a
mesma
sábia clareza um outro
escritor que permanece entre os
maiores do cânone ocidental.
foto de Aníbal C. Pires
A obra de Emanuel Jorge Botelho é extensa. Quase sempre publicada ao longo dos anos em pequenos livros, constitui agora um dos maiores e mais poderosos volumes da poesia portuguesa dos séculos XX e XXI.
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Emanuel Jorge Botelho, O Livro Das Coisas Ardidas, Lisboa, Averno, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 13 de outubro de 2023
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