sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Mar e Mar e América e América por todos os lados

 


O meu país era uma terra plantada em pátria nenhuma, com água no mar e maré cheia nos olhos.

José Francisco Costa, Mar e Tudo e Outros Casos


    Releio Mar E Tudo e Outros Casos de José Francisco Costa e reencontrou-me – é-me um estado perpétuo desde sempre nas minhas leituras açorianas e diaspóricas – por vezes contra a minha vontade do momento, com o meu próprio passado. Não quer isto dizer que as nossas estórias pessoais e destinos de vida tenham sido ou sejam sempre iguais ou em consonância vivencial desde o nosso nascimento e infância aqui nas ilhas ou sequer no rumo que cada um de nós tomou ou toma na inevitável embarcação real ou imaginária que tem sido a sorte da vasta maioria dos que nestas ilhas nasceram. Para nós filhos do mar, olhar a oriente com sentido pátrio é um ato por vezes ambíguo, é a nossa comunidade nacional imaginada e por alguns vivida, foi durante séculos reduto de minorias ricas e ricaças, a memória supostamente aristocrática desses poucos que, como outros já escreveram, pertenciam ao topo minúsculo da pirâmide (primeiro descrita por Onésimo Teotónio Almeida) que sempre retratou a condição social do nosso arquipélago. Entretanto, deve-se reafirmar que não existem geografias mais universalizadas do que as pequenas ilhas espalhadas por todo o planeta, como aliás afirmou continuamente Édouard Glissant em quase toda a sua obra de teorização de literaturas insulares (mesmo a partir de Paris), a sua ilha natal de Martinica nas Caraíbas como outro exemplo de se estar em casa no mundo. A escrita de José Francisco Costa é esse exercício de escrita híbrida que combina exemplarmente biografia, memória do tempo e das suas gentes micaelenses com as suas andanças entre as Capelas do seu nascimento, o seminário de Angra do Heroísmo, seguido dos estudos superiores em Lisboa e subsequente docência nos arredores da capital, tudo seguido, diria eu inevitavelmente, com a sua partida para os Estados Unidos da América (Providence em Rhode Island, no seu caso) na companhia da mulher quase no fim dos anos 70 do século passado. Aí completaria o seu doutoramento sobre a obra de Jorge de Sena e dava início a uma longa carreira como professor universitário, pormenor que me parece aqui de viva importância para algumas das suas próprias narrativas no presente volume – a memória que nos aparenta um realismo literário mas que contêm si e subrepticiamente variados passos de um surrealismo ameno perfeitamente apreendido no contexto maior de todos estes contos quando passam dos mistérios da ilha para a portugalidade simultaneamente clara e ambígua no eventual aconchego na grande e complexa sociedade norte-americana – necessariamente num estatuto intelectualizado com as fábricas ao lado onde pagaram historicamente todos o seus pecados a maioria dos seus e nossos conterrâneos.

    Como é que a boa ou grande ficção se torna necessariamente um retrato coletivo, reentra no espírito de um tempo e de um lugar, convoca a história comum de uma comunidade? Criando protagonistas e outras personagens que nos relatam em discurso direto ou indireto a sua vivência, as suas paixões, a sua felicidade ou infelicidade, a sua aceitação ou rejeição do seu destino, sobretudo esses estados de alma nas mais conhecidas ou inesperadas condições de vida. Para um ilhéu açoriano a pequenez da terra e das mentalidades raramente se conjuga com a vastidão do seu mar-passadeira. Daniel de Sá escreveu uma vez que "emigrar é a pior maneira de ficar na ilha" ao que Onésimo Teotónio Almeida retorquiu: "Se calhar é a melhor". Depois reimagina-la na dor da saudade que permanece mas que dará lugar ao seu também imaginado esplendor para além da Natureza exuberante, enquanto guarda na memória tudo quanto constitui os seus ritos sagrados e profanos por entre os cheiros da terra e do mar, o colorido das flores, a beleza dos seus matos – a humanidade a um tempo cercada em tempos idos, tornada livre pela partida. O imigrante nunca regressa, não pode regressar, nas palavras de um outro escritor nosso já aqui mencionado, ao que nunca deixou. Todos estes textos de Mar e Tudo e Outros Casos tornam-se numa só narrativa transnacional, por assim dizer. Nem uma só descrição ou transfiguração da vida-outra na América está livre do passado, das origens, a força das raízes nunca cede à alienação que os que nunca saíram julgam que a distância provoca a quem por ela só optou fisicamente. Que nunca se chame a estas literaturas, lusas ou qualquer outras numa sociedade diversificada como a americana, “de minorias”. Pelo contrário, a arte literária dessa América estaria incompleta sem esta outra definição de “América”, mesmo que outros leitores por lá não deem por nada. A partir dos nos 90, o ato literário luso na imigração começou a ser acompanhado por substanciais obras em inglês de lusodescendentes. Eles “regressam” continuamente ao que pouco conhecem em direto, mas reconstituem as lembranças indeléveis dos avós e pais, e até de antepassados mais longínquos.

    A prosa de José Francisco Costa acrescenta à sua beleza e contundência temática, na sua incursão pelo passado reinterpretado e pelo seu foco de iluminação colorida sobre como se está longe sem se sair do território-pátrio, algumas das linguagens que os regressantes temporários nos trazem e que tanta confusão provoca nos que sempre só tiveram o horizonte fechado e o céu nublado como visão do seu pequeno mundo. O deixar cair um termo ou outro português agora americanizado atesta a riqueza das coisas e da mundividência que cá nunca existiu, a língua viva reinventada por uma vida também corajosamente reinventada. Sem obras como esta a literatura açoriana estaria decepada, mais limitada e, sim, para desgosto de alguns, menos universalizada. Esta é uma literatura que raramente se dirige aos leitores anglo-americanos, dirige-se a nós cá dentro e a nós lá fora. Relembra-nos o que olhamos mas não vemos, apresenta-nos, isso sim, à ilha estendida por todos os mares que vão dar a ocidente, à pátria alongada que tem sido quase só a nossa única salvação histórica.

    Ainda no parque de estacionamento, – escreve o narrador sobre uma das suas personagens no conto que abre a secção intitulada Em cada ilhéu/um barco/na linha dos olhos – Duarte deu de caras como o manager que, numa arenga aportuguesada, não perdeu a oportunidade de lhe perguntar, pela milésima vez, quando é que deixava a cara séria que vestia sempre que chegava à fábrica. Duarte respondeu com um next time tão seco de azedume que o outro se limitou a um desconcertado abanar de cabeça. O encarregado nem teve oportunidade de indagar sobre como corriam as aulas do segundo ano de engenharia que Duarte andava a frequentar na universidade. Era mais uma noite de fábrica, daquelas em que as horas se enovelam como onda que se agiganta e morre sobre si mesma, sem quebrar na rocha. O tempo aqui era sempre igual. Para Duarte, a única diferença neste limiar da primavera consistia num pormenor que, para ele, era sempre uma descoberta que o arrancava à monotonia em que se instalara: os dias iam crescendo mais, encurtando assim a noite. Restava-lhe a tímida esperança do findar deste longo turno e o tão apetecido day-off”.

    Se já disse da clareza e da ironia de outros passos em cada uma destas páginas, falta dizer do humor, em tons mais ou menos trágicos, com que cada ser aqui representado se expressa ou entende este seu mundo feito de um passado que nunca chega a o ser, e de um presente que vai em direção para quase todos a um conforto e desafio de um mundo novo, à realização pessoal e familiar outrora sonhado na outra e brava margem do Atlântico. Somos aqui um outro povo pessoano, a tentar o equilíbrio dos vários seres que nos habitam, na multiplicidade da nossa experiência e das linguagens da nossa identidade fluida – a que nos transmite toda a literatura mais relevante e espelhadora da nossa ou de qualquer outra história. Literatura americana, literatura portuguesa, literatura açor-americana, literatura lusodescendente.

    Em boa hora Onésimo Teotónio Almeida e Santos Silva (Presidente da Assembleia da República) fundaram ou adicionaram esta Coleção Comunidades Portuguesas da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de que Mar e Tudo e Outros Casos é o segundo volume. José Francisco Costa, pelo seu lado, tem uma extensa obra de ficção, ensaio e poesia, e tem-se dedicado ao letrismo para vários artistas nos dois lados do Atlântico, assim outros contributos de vária ordem para o teatro que se faz na nossa Diáspora.

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José Francisco Costa, Mar e Tudo e Outros Casos (Prefácio de António Rego), Lisboa, Coleção Comunidades Portuguesas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2022.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 6 de outubro de 2023


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