sexta-feira, 29 de setembro de 2023

24 horas, 24 escritores, ou uma inusitada maratona literária

 

O nosso objetivo foi, desde o início, elevar e promover a cultura e a cidade de Ponta Delgada, ampliar conhecimentos e aproximar o público mais intimamente dos nossos escritores.

José Ernesto de Chaves Rezendes na introdução a 24 Maratona Literária


    A Letras Lavadas Editora promoveu o mais original acontecimento literário em Ponta Delgada, para além dos inúmeros encontros culturais que nos acontecem todo o ano e todos anos. Para vos falar a verdade aceitei de boa maneira o não-convite, devem ter pensado que alguém teria de ficar em casa durante uma longa noite, nem que fosse só para depois dar conta do acontecimento. Foram vinte e quatro escritores ligados à editora a quem se atribuiu a tarefa de ocupar e escrever, a diferentes horas da noite e do dia e nos sítios previamente escolhidos em Ponta Delgada conforme a temática continuada de cada um deles e delas. Teriam de escrever um texto, em qualquer umas das formas a eles associadas: ficção, poesia e ensaio. Teriam de escrever a sua prosa breve e enviar de imediato para a Nova Gráfica pertencente ao mesmo grupo editorial, e a impressão seria imediata, o livro pronto e completo pouco depois do raiar do sol. Artistas plásticos e desenhadores em geral acompanhariam cada escritor, a cores ou a preto e branco, e reproduzir uma representação no processo da escrita meio às escuras meio iluminadas, também tudo enviado para as máquinas a rolar agora em modo de cores e retratos interpretativos de cada artista. A verdade é que muito rapidamente, poucas horas depois, o livro era apresentado publicamente, suponho que perante a surpresa de quem nunca fez a mínima ideia de como se juntam folhas que constituem um volume de escrita tão variada. Pela minha parte, abri o livro de formato elegante, impecavelmente impresso, de viva cor na capa e das cores que o encerram. Ainda hoje me questiono de como é possível um feito destes, com cada texto sem gralhas ou pontuação mal colocada, e algo mais em certos casos. Entre estes vinte quatro escritores estavam professores universitários, um padre, um especialista em gastronomia, e uma conhecida psiquiatra, todos eles também muito conhecidos entre nós.

    

Os textos? Variam, necessariamente, na sua qualidade artística, e os temas são os que cada um deles e delas tem cultivado ao longo dos anos – ficção e realidade e arte pictórica conjugam-se aqui num ato, para mim, perfeitamente surrealista, como surrealista foi a ideia do próprio editor, conhecido desde há muito por ideias literárias que a poucos outros ocorreriam. José Ernesto já fez um livro com a altura do próprio autor. Já fez o mais pequeno livro do mundo em formato, que acabou no famoso e estranho Guiness World Records. Já fez um só volume que junta cinco espessos volumes do meu meu borderCrossings, numa homenagem que me comoveu, naturalmente. Esperem mais um pouco para verem o que vem aí em termos editoriais. Sim, os textos? Com algumas e inevitáveis exceções, eu diria que certas páginas me foram uma surpresa agradável, levantando-me outra questão. Como foi possível fazer isto mesmo em frente a igrejas, numa torre da Matriz em Ponta Delgada, numa sinagoga, em esquinas ou praças históricas da cidade (o banco de Antero não me surpreendeu), em sítios de trabalho como a lota de Ponta Delgada, e, pois, em frente a um cemitério maior que não autorizou a entrada do escritor Hélder Medeiros, que assina um dos melhores textos de ficção nesta coletânea? Não sei, mas sei que eu não seria capaz de escrever um texto de apreciação crítica literária a qualquer livro nestas condições e em vinte quatro horas, mesmo sobre qualquer um dos livros que ocupa um lugar de destaque na minha coleção privada. À minha admiração, pois, junta-se a perplexidade acerca de como isto foi ou pode ser feito, mas sei que foi – para além de qualquer questionamento de admirador surpreendido por tal feito. Para além de tudo o mais, cada peça é antecedida pela foto de cada escritor. O mesmo que dizer, dar a cara por estar aqui e por ter escrito a uma hora e num lugar escolhidos pelos organizadores da editora em questão.

    Há cidades míticas, – escreve Aníbal C. Pires no seu texto simplesmente intitulado ‘Lota’ – cidades património, cidades ordenadas e desordenadas, megacidades, cidades capitais económicas e financeiras, políticas e culturais, cidades comerciais, cidades industriais, cidades do pecado e do prazer, cidades de oportunidades, cidades tranquilas, cidades seguras e inseguras, cidades com alma e sem alma e há… a nossa cidade onde nascemos e crescemos e nunca enjeitámos, a cidade onde vivemos por opção ou por uma paixão que o acaso espevitou e se transformou num grande amor que nos prende a esta, e não a outra, cidade”.

    Ponta Delgada. Eis aí o testemunho de um ilhéu continental, como é o autor aqui citado. Antes e depois deste passo, denuncia as condições de trabalho e exploração sem vergonha dos que arriscam a vida para colocar peixe nas nossas mesas todos os dias. Noutras páginas há fantasmas, sinos tocam, memória da grandeza anteriana, a historicidade que naturalmente provoca um forte militar aqui por perto mas agora museu de armas e tempos idos, tema de uma académica de renome, poesia meio confessional meio metafórica que sinaliza a tentativa da originalidade, ora bem sucedida ora nem tanto, a arte a cores e outra que nos faz olhar demoradamente, ou provoca a viragem de páginas. O que resta é este projeto arrojado por parte de todos, mesmo que permaneçam algumas perguntas por fazer da minha parte.

    Não julguem que a surpresa foi só minha e de uns outros tantos. A conversa de Café raramente é sublime na sua generosidade, o que pouco me interessa. 24 Maratona Literária: 24 horas 24 escritores quebra, pelo menos, o silêncio de outros, destrava línguas corrosivas, alimenta curiosidade literária. Tenho a certeza que a outra novidade foi a publicidade que despertou numa televisão nacional de grande alcance, tendo tudo isto sido comentado num programa a hora nobre, e depois dado como notícia inesperada noutro telejornal, na SIC/Notícias. Vi e ouvi reclinado na minha cadeira com um sorriso absolutamente inocente, ou melhor, com um sorriso de ver pelo menos uma vez em cada década os Açores e a sua literatura mencionada com espanto e, pelo que percebi na cara do jornalista, certa admiração. Uma regra jornalística é que só uma notícia é notícia quando o homem morde o cão. Neste caso, foi a literatura açoriana sem sono, espalhada pela cidade, levada a sério por cada um que nela participou ativamente, computador ou esferográfica na mão, a olhar as estrelas que teriam brilhado naquela noite ou madrugada, um artista ao lado com os seus lápis e pincéis a tentar captar a cara do escritor e os segredos obscuros de uma rua, igreja ou cemitério.

    Seja o que tenha sido, o livro está por aí, num formato magistral, a preto e branco e a cores, com fotografias nas quais cada autor mostra a alegria do seu projeto sem antecedentes, a segurança de quem sabe o que tem de fazer no maior espetáculo literário – que eu saiba – na história dos Açores.

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Vários autores, 24 Maratona Literária 24 horas 24 escritores, Ponta Delgada, Letras Lavadas Edições, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 29 de setembro de 2023

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