sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Em memória e homenagem a Diana Marcum

I

    A notícia chegou-me só uns dias depois, mas chegou. Diana Marcum (1963-2023) tinha falecido a 10 de Agosto do ano corrente, na cidade de Fresno, a que desde há muito estava ligada. Escrevia no Fresno Bee, o proeminente diário do Vale de São Joaquim, mas haveria de passar, dado as provas do seu jornalismo, para o Los Angeles Times, a voz maior de todo o oeste norte-americano, esse diário que faz tremer nas suas notícias e editoriais toda a sua vasta área de circulação, e ainda mais Washington D.C. quando escreve na defesa dos estados ou comunidades onde residem os milhões dos seus leitores imediatos e diários. O obituário da sua grande jornalista Diana Marcum muito diz sobre ela, mas aqui basta dizer que venceu o Prémio Pulitzer de Jornalismo (uma espécie de Prémio Nobel naquele país) após uma série de reportagens sobre a seca no interior agro-pecuário da Califórnia a meados dos anos 80-90, em que no centro estão as suas investigações entre açor-descendentes e imigrantes nossos desde há muito ali radicados e fazendo pela vida. Falou com eles, conviveu com eles, abraçou-os pela sua empatia e depois amizade, comeu com eles, continuou na descoberta até no longe das suas ilhas de origem. Não descansou enquanto não veio viver em direto o quotidiano açoriano, particularmente a Ilha Terceira (onde quis comprar uma casa) e depois São Jorge, ilha de outras férias e descanso. Tudo isto resultaria no seu primoroso livro The Tenth Island: Finding Joy, Beauty and Unexpected Love in the Azores, publicado nos EUA em 2018. Foi a versão original que li e recenseei, mas depressa sairia a versão portuguesa na Cultura Editora (Lisboa), com o título de A Décima Ilha. Entre o muito que disse o Los Angeles Times, após a sua morte súbita, inclui este passo: “Marcum viajou [nos Açores] extensamente mas disse que essas ilhas distantes e a sua gente agarram-na-na pela alma. Ela descreveu o quanto adorava os seus dias tranquilos, os seus vulcões ativos, e a abundância do restante mundo distante. E Marcum abraçou o conceito de saudade”.

    Em 2018 eu já tinha escrito sobre o seu livro açoriano, e fui convidado por Nuno Costa Santos a entrevistá-la em inglês no Teatro Micaelense, perante uma numerosa audiência, e no âmbito do primeiro Arquipélago de Escritores. Antes e depois a nossa conversa em esplanadas e em toda parte em Ponta Delgada continuou, sempre em momentos de alegria e, para mim, aprendizagem. Vai aqui um passo do que escrevi sobre Diana Marcum e o seu inesperado livro, The Tenth Island.

II

Diana Marcum
    Cada livro terá as suas leituras. Pode ser que a sua “informação” não nos traga nada de novo. Mas um “olhar” diferente também será sempre a originalidade das suas páginas. Quando não dizem o que esperamos ou sabemos, esse olhar nunca deixará de ser original, e tanto melhor que assim seja. Afinal, toda a literatura é uma repetição do que já sabemos desde os primórdios. Resta só ver o modo diferente como se olha um povo, uma comunidade, uma nação. Em quase toda a escrita sobre os Açores por escritores que estão fora, noto uma atitude algo estranha. A primeira geração de imigrantes acha que sabe tudo sobre as ilhas de origem. Depois, desconfiam dos da segunda ou demais gerações que escrevem sobre nós em inglês. Há aqui, parece-me, um certo equívoco, pois a “realidade” será sempre a que lhes são passadas em conversa de cozinha, que lhes vêm de cartas, de fotos, e da pura imaginação. Isso não significa só a criatividade linguística desses escritores e poetas, significa a grandeza da geografia ancestral, ou uma descoberta mesmo quase só ao acaso. Nunca vi um comentário igual sobre asneiras e, sim, racismo puro de um Mark Twain em Innocents Abroad dessas mesmas vozes, que chamou a açorianos, de uma certa ilha, de “porcos”. Esses escreveram sobre nós com uma certa hostilidade e ignorância, e procuram logo o pior por falta de melhor entendimento. John Steinbeck está neste rol de difamadores, não só em As Vinhas da Ira, como num outro romance seu sem qualquer qualidade. Como escreveria Edmund Wilson sobre a obra do autor de Salinas, e ainda por cima Prémio Nobel: cria personagens como se fossem pequenos animais de estimação.

Vale de S. Joaquim, Califórnia
    Vem tudo isto a respeito do recente livro de Diana Marcum, The Tenth Island, que aborda de modo racional e em prosa brilhante as nossas comunidades no Vale de São Joaquim, devido, uma vez mais, à seca que tem fustigado aquele estado norte-americano nestes últimos anos, essa vastíssima terra no interior central da Califórnia, e que de seguida lhe provoca duas visitas prolongadas aos Açores, principalmente à Ilha Terceira, e por uns dias a São Jorge na companhia de um amigo americano. Escrevia ela então no Fresno Bee (tenho consciência das minhas repetições aqui), e logo depois passou ao grande e referencial Los Angeles Times. Venceu o Pulitzer Prize, como já referi, por essas reportagens, e nunca mais a deixou sossegada até não conhecer em direto as “ilhas distantes” e misteriosas do nosso arquipélago. Poderá não ter trazido nada de novo sobre a nossa vivência a meio mar, mas trouxe algo de mais precioso e relevante: esse tal olhar exterior, o modo de como nos viu, viveu e percebeu a nossa terra. Em poucos meses ou num ano e anos posteriores, Diana Marcum não foi apenas uma turista e escritora. Antes, tornou-se parte de nós. Vivendo na Serreta e arredores, nem sequer deixou de ir a lançamentos de livros, como foi o caso de Da Vida no Campo, de Joel Neto, em 2014, assim como manteve conversas alongadas com o grande artista também terceirense, Luís Bettencourt, sobre a natureza do amor, da arte e de outras questões humanas. Fez amizade com outra pessoa local, que lhe guiou na ilha e lhe disse o que deveria ver e absorver. Fez amizade com vizinhos, viajou pela ilha, tentou um sentido de pertença de quem havia chegado e fez destas ilhas como que uma segunda pátria. Raro, muito raro, nos nossos tempos. Não falo de estrangeiros entre nós há anos. Refiro-me a uma grande escritora que não deixava passar em branco os seus dias felizes numas ilhas até então desconhecidas por ela. No século XIX eram mero objeto de oportunismo, negócios de laranja ou responsabilidades diplomáticas. Esses construíram palácios, jardins, mais tarde tomavam conta de cabos submarinos, e tinham escolas privilegiadas paras os seus filhos alemães, britânicos e americanos. Sim. Mas livros como este de puro afeto e descoberta, canto a canto, no nosso século, só este nos aparece de surpresa e sem outros motivos para além da gentileza das gentes, do cheiro e da forma da natureza – e da amizade incondicional de que também somos capazes.

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Diana Marcum, The Tenth Island: Finding Joy, Beauty, and Unexpected Love in the Azores, New York, Little A, New York, 2018.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 22 de setembro de 2023

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