I
A
notícia chegou-me
só uns dias depois, mas chegou. Diana Marcum (1963-2023)
tinha
falecido a 10 de Agosto do ano corrente, na cidade de Fresno, a que
desde há muito estava ligada. Escrevia no Fresno
Bee,
o proeminente diário do Vale de São Joaquim, mas haveria de passar,
dado as provas do seu jornalismo, para o Los
Angeles Times,
a voz maior de todo o
oeste
norte-americano, esse diário
que
faz tremer nas suas notícias e editoriais toda a sua vasta área de
circulação, e ainda mais Washington
D.C. quando escreve
na
defesa dos estados ou comunidades onde residem os milhões dos seus
leitores imediatos e diários. O obituário da sua grande jornalista
Diana
Marcum muito
diz sobre ela, mas aqui basta dizer que venceu o Prémio Pulitzer de
Jornalismo (uma espécie de Prémio Nobel naquele país) após uma
série de reportagens sobre a seca no interior agro-pecuário da
Califórnia a meados dos anos 80-90,
em que no centro estão as suas investigações entre
açor-descendentes e imigrantes nossos desde há muito ali radicados
e fazendo pela vida. Falou com eles, conviveu com eles, abraçou-os
pela sua empatia e depois amizade, comeu com eles, continuou na
descoberta até
no
longe das suas ilhas
de origem. Não descansou enquanto não veio viver em direto o
quotidiano
açoriano,
particularmente a Ilha Terceira (onde quis comprar uma casa) e depois
São Jorge, ilha de outras férias e descanso. Tudo isto resultaria
no seu primoroso livro The
Tenth Island: Finding
Joy, Beauty and Unexpected
Love in the Azores,
publicado nos EUA em 2018.
Foi
a versão original que li e recenseei, mas depressa sairia a versão
portuguesa na Cultura Editora (Lisboa), com o título de A
Décima Ilha.
Entre o muito que disse o Los
Angeles Times,
após a sua morte súbita, inclui este passo: “Marcum viajou [nos
Açores] extensamente mas disse que essas ilhas distantes e a sua
gente agarram-na-na
pela alma. Ela descreveu o quanto adorava os seus dias tranquilos, os
seus vulcões ativos, e a abundância do restante mundo distante. E
Marcum abraçou o conceito de saudade”.
Em 2018 eu já tinha escrito
sobre o seu livro açoriano, e fui convidado por Nuno Costa Santos a
entrevistá-la em inglês no Teatro Micaelense, perante uma numerosa
audiência, e no âmbito do primeiro Arquipélago de Escritores.
Antes e depois a nossa conversa em esplanadas e em toda parte em
Ponta Delgada continuou, sempre em momentos de alegria e, para mim,
aprendizagem. Vai aqui um passo do que escrevi sobre Diana Marcum e o
seu inesperado livro, The Tenth Island.
II
|
Diana Marcum |
Cada
livro terá as suas leituras.
Pode ser que a sua
“informação”
não
nos traga nada
de novo. Mas um “olhar” diferente também será sempre a
originalidade das suas páginas. Quando não dizem o que esperamos ou
sabemos, esse olhar nunca deixará de ser original, e tanto melhor
que assim seja. Afinal, toda a literatura é uma repetição do que
já sabemos desde os primórdios. Resta só ver o modo diferente como
se olha um povo, uma comunidade, uma nação. Em quase toda a escrita
sobre os Açores por escritores que estão fora, noto uma atitude
algo estranha. A primeira geração de imigrantes acha que sabe tudo
sobre as ilhas de origem. Depois, desconfiam dos da segunda ou demais
gerações que escrevem sobre
nós em
inglês. Há aqui, parece-me, um certo equívoco, pois a “realidade”
será
sempre a que
lhes são passadas em conversa de cozinha, que lhes vêm de cartas,
de fotos, e da pura imaginação. Isso não significa só a
criatividade linguística
desses escritores e poetas, significa a grandeza da geografia
ancestral, ou uma descoberta mesmo
quase só ao
acaso. Nunca vi um comentário igual sobre asneiras e, sim, racismo
puro de um Mark Twain em Innocents
Abroad
dessas mesmas vozes, que chamou a açorianos, de uma certa ilha, de
“porcos”. Esses escreveram sobre nós
com
uma
certa
hostilidade e
ignorância,
e procuram
logo o pior por falta de melhor entendimento. John
Steinbeck está neste rol de difamadores, não só em As
Vinhas da Ira,
como num outro romance seu sem qualquer qualidade. Como escreveria
Edmund Wilson sobre a obra do autor de Salinas, e ainda por cima
Prémio Nobel: cria personagens como se fossem pequenos
animais
de estimação.
|
Vale de S. Joaquim, Califórnia |
Vem
tudo isto a respeito do recente livro de Diana Marcum, The
Tenth Island, que
aborda de modo racional e em prosa brilhante as nossas comunidades no
Vale de São Joaquim, devido, uma
vez mais,
à seca que tem fustigado aquele estado norte-americano nestes
últimos anos, essa vastíssima terra no interior central da
Califórnia, e que de seguida lhe provoca duas visitas prolongadas
aos Açores, principalmente à Ilha Terceira, e por uns dias a São
Jorge na companhia de um amigo
americano. Escrevia
ela então no Fresno
Bee (tenho
consciência das minhas repetições aqui),
e logo depois passou ao grande e referencial Los
Angeles Times.
Venceu
o Pulitzer Prize, como já referi, por essas reportagens, e nunca
mais a deixou sossegada até não conhecer em direto as “ilhas
distantes” e misteriosas do nosso arquipélago. Poderá não ter
trazido nada de novo sobre a nossa vivência a meio mar, mas trouxe
algo de mais precioso e relevante: esse tal olhar exterior, o modo de
como
nos viu, viveu e percebeu a nossa terra. Em poucos meses ou num ano e
anos posteriores, Diana Marcum não foi apenas uma turista e
escritora. Antes, tornou-se parte de nós. Vivendo na
Serreta e arredores, nem sequer deixou de ir a lançamentos de
livros, como foi o caso de Da
Vida no Campo,
de Joel Neto, em 2014, assim como manteve conversas alongadas
com o grande artista também terceirense,
Luís Bettencourt, sobre a natureza do amor, da arte e de outras
questões humanas. Fez
amizade
com outra
pessoa
local, que lhe guiou na ilha e lhe disse o que deveria ver e
absorver. Fez amizade com vizinhos, viajou pela ilha, tentou um
sentido de pertença de quem havia chegado e fez destas ilhas como
que uma segunda pátria. Raro, muito raro, nos nossos tempos. Não
falo de estrangeiros entre nós há anos. Refiro-me a uma grande
escritora que não
deixava
passar em branco os seus dias felizes numas ilhas até então
desconhecidas por
ela.
No
século XIX eram mero objeto de oportunismo, negócios de laranja ou
responsabilidades diplomáticas. Esses construíram palácios,
jardins, mais
tarde tomavam
conta de cabos submarinos, e tinham escolas privilegiadas paras os
seus filhos alemães, britânicos e americanos. Sim. Mas livros como
este de puro afeto e descoberta, canto a canto, no nosso século, só
este
nos aparece
de surpresa e sem outros motivos para além da gentileza das gentes,
do cheiro e da forma da natureza – e da amizade incondicional
de
que
também
somos capazes.
___
Diana
Marcum, The
Tenth Island: Finding Joy, Beauty, and Unexpected Love in the Azores,
New
York, Little
A, New York,
2018.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 22 de setembro de 2023
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