quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Um templo dourado na poesia e na memória de Pedro Gomes


J
anelas emperradas, miradas pelo tempo./As camélias tombadas no chão, malhadas/de amarelo oxidado.

Pedro Gomes, Plano de Fuga


    Permitam-me começar este texto com uma experiência muito pessoalizada. Há décadas atrás, quando eu já tinha regressado aos Açores, fiquei responsável por levar os meus pais da sua casa na Ilha Terceira ao aeroporto pela última vez, quando eles voltaram à Califórnia – num regresso atribulado – onde anos mais tarde acabariam as suas vidas enquanto eu continuava a minha aqui em São Miguel. Regressei a casa nessa noite à casa que eles tinham construído nos anos 40, e na qual eu e os meus irmãos, também ausentes no Pacífico desde tenra idade, tínhamos nascido e vivido a algazarra da infância e da juventude. Nessa sua outra partida pela minha mão, eu tinha de voltar àquela casa dos meus mais felizes anos e encerrar todo um ciclo de vida na minha ilha natal, numa solidão sem nome. Foram horas em que um pouco mais tarde um grande fado de Camané, precisamente intitulado Templo Dourado, me faria reviver essa madrugada, e sobretudo dar-me novamente conta de que todas as famílias se parecem na sua felicidade e todas as famílias se parecem na sua infelicidade, como escreveria um dos imortais mestres russos num seus dos mais famosos romances. Citando Camané livremente, quando uma letra de certos fados é pura poesia: olha em redor os quartos do teu passado, olha as fotografias da família e da tua história, olha os pratos nas gavetas e as joias dos que cresceram e viveram aqui, olha tudo isso em silêncio absoluto e relembra, tapa a mobília que também guarda as tuas memórias, sai pela porta de trás, senta-te a fumar um cigarro. Olhei (agora as palavras são inteiramente minhas) a lua cheia que me dava as faias e trepadas da minha meninice, senti o cheiro de uma ruralidade antiga que já na era. Ouvi os sons dos melros, e da restante vizinhança que nunca deixa a vida nem a meio da noite. Depressa saí, e fui dormir na casa de um casal amigo em Angra do Heroísmo, para não sentir mais solidão e a noite quieta. No dia seguinte já se fechava uma vida de andanças. Até hoje.

    A literatura significante é isto: um outro encontro com a nossa própria a vida, ou a experiência de como cada um ou uma ao nosso lado em nada nos são diferentes ou indiferentes. Veio tudo isto à minha mente quando li Plano de Fuga, o primeiro livro de poesia de Pedro Gomes. Fuga, sim, mas sobretudo reencontro. A estreia poética de Pedro Gomes é feita em poucos e breves versos. Não me surpreendeu. Sempre o conheci aqui em Ponta Delgada como homem de poucas palavras, que reage mais às nossas conversas emotivas e ideológicas com a mesma serenidade com que agora nos apresenta ao outro lado do seu ser. Tem páginas em dois ou três versos em que relembra todas as suas saudades e estado de ser e estar perplexo perante todos os seus dias do presente e do passado. Tem poemas um pouco mais longos, na musicalidade de cada verso que lemos como ouvimos uma canção de amor e de desespero ante todas as dúvidas que nos traz o anoitecer e o amanhecer, só ou acompanhado. Em todos eles, em todos ou em qualquer um dos seus poemas vinga a arte da língua e das linguagens que gostaríamos de ter sido as nossas. Eis a nossa comum humanidade num estado de permanência irrequieta, a grandeza dos dias e a perplexidade de estarmos sós – os que se foram e os que nos rodeiam, num saber de que tudo é provisório, tempo contado, a alegria e a perda sempre de mão dada. Aceitação de ausências, celebração de estarmos por enquanto vivos sem deixar a espera de um fim, de qualquer inevitável fim: amanhã desvenda a luz/e a nuvem não era do céu.

    Não falemos aqui de influências, ou das chamadas ansiedades dessas influências bloomianas, mas poucos as vão ignorar. Só lhes ficam bem. Ninguém escreve sem ter lido outros, sem que outra literatura lhe esteja na memória. Só que certos poetas açorianos são aqui relembrados, num único verso que nos é familiar, e ainda por outros poetas mais conhecidos de todos e que ultrapassaram todas as fronteiras e línguas, no original ou em tradução. É tudo quanto acontece na literatura universal, desde sempre. Pedro Gomes é um poeta muito consciente da literatura portuguesa, com ou sem origem nos Açores. Raramente falo de outros poetas ou outros escritores em modo comparativo sobre quem escrevo e aprecio. Todo o mérito é do poeta Pedro Gomes, e que nunca se esquece da tradição artística em que se insere. O poema que encerra Plano de Fuga é o mais longo deste exercício de memória e transfiguração, “Elegia Para Um Dezembro Frio”, longo de mais para uma transcrição aqui. Só que define e sustenta tudo quanto lhe vem antes nestas breves páginas de exorcismo interior, nestas breves páginas de paixão e despejo de limpeza interior, por assim dizer com certa rudeza minha, dessa memória magoada e transcendente que o tempo nunca elimina nem perdoa. Vai por vezes do estritamente pessoal ao que acontece na atualidade a outros que procuram a decência da vida em mares aqui ao lado e diariamente de morte. Esquecer os outros é esquecermos a nós próprios, quando a identidade e história deles se aproxima de nós a cada dia.

Barcos rasgam

o mar apagado do Mediterrâneo

o bilhete tem preço de vida

fronteiras escritas

na encruzilhada da promessa


a esperança gasta-se na espera

o gume do medo corta as vozes


não há lugar para regressar

nem sorte para desejar


amanhã pode não ser outro dia


Apresentação de "Plano de Fuga" - Teatro Micaelense
    Pedro Gomes é advogado em Ponta Delgada desde há muitos anos. É colunista do Açoriano Oriental de longa data, escreve sobre política, mas escreve também com certa frequência sobre cultura em geral, e cita constantemente os mais variados escritores do mundo. Desde há muito que é incitado a publicar as suas crónicas ou mini-ensaios quando faz incursões sobre as artes em geral. Finalmente acontece este bem-vindo Plano de Fuga. Devo só adicionar que, e nível internacional, alguns dos melhores escritores vem de profissões que habitualmente pensamos fora do pensamento humanista, e muito menos poético. Relembro, entre muitos outros casos, mesmo no campo inacessível da ciência, que esses autores recorrem naturalmente à literatura criativa, e com grande capacidade linguística e literária. Tenho os seus nomes aqui por perto na minha estante. Basta só dizer que para além de serem sempre uma referência fundamental, permanecem ou permanecerão na literatura, quer seja de umas ilhas atlânticas ou na mais vasta memória do mundo.

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Pedro Gomes, Plano de Fuga, Ponta Delgada, Artes e Letras Editora, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 15 de setembro de 2023.

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