sexta-feira, 7 de julho de 2023

Cartografias Literárias

 


Sempre mantive a curiosidade sobre Queiroz, mas o meu preconceito contra traduções tem-me impedido até hoje de o ler. O me teres enviado estes livros, no entanto, torna-se-me agora obrigatório.

Edmund Wilson, Letters on Literature and Politics

I

    Por certo que a literatura açoriana sempre ocupou um espaço nestas páginas para mim inevitável pelo meu percurso como crítico ou apreciador das obras do meu tempo e de várias outras gerações. Desde há muito que nunca me faria sentido olhar portas adentro sem com a mesma intensidade olhar portas afora. Talvez não sejam estes os termos mais corretos sobre o que quero dizer, pois a minha caminhada de vida levou-me a várias outras geografias humanas que nunca mais saíram de mim, assumo-as como parte da minha identidade híbrida, a América do Norte como outra pátria vivida e imaginária. Por isso mesmo, estão aqui continuamente os escritores, poetas e dramaturgos da nossa Diáspora norte-americana, o mesmo que dizer dos Estados Unidos da América do Norte e do Canadá. Tenciono continuar a dar conta dessas minhas origens académicas e intelectuais. Aliás, foi pela literatura americana, principalmente a literatura sulista (que durante muito tempo até à segunda metade do século passado existiu num certo vácuo das atenções no seu próprio país) que regressei à casa açoriana, do mesmo modo que antes já havia regressado ao meu imaginário português continental. Formado em Estudos Latino-Americanos na California State University, Fullerton, cedo o Brasil tornou-se-me esse outro “território do coração” sob a orientação da minha mentora e muito amiga Nancy T. Baden. Creio que a todas estas influências tenho dado persistente atenção, dentro do tempo possível comum a cada um de nós. Algumas dessas outras vozes aproximaram-me das mais variadas literaturas, a condição humana como um percurso que só diverge nos enquadramentos históricos e culturais de cada povo, a arte literária nunca deixando de nos relembrar a pequenez do nosso planeta, a representação dos anseios e desejos de todos os representados num círculo de povos como que num baile redondo de mãos dadas, levando o grande e canónico crítico Edmund Wilson a intitular um dos seus livros de ensaios The Shock Of Recognition quando citou em epígrafe Herman Melville: “For genius, all over the world, stands hand in hand, and one shock of recognition runs the whole circle round/O genial, em todo o mundo, mantém-se de mão dada, e o choque do reconhecimento percorre todo o círculo”.

Edmund Wilson
    A literatura do mundo sempre ocupou esse lugar privilegiado nos Açores, ou entre os que na sua vida da mente reconhecem essa representação universal do coração humano, como diria William Faulkner, “em conflito consigo próprio”. Tento dar voz a algumas dessas representações sem qualquer aflição de alma, e para além do suposto torpor açoriano. Estamos vivos e bem atentos a tudo o que nenhum horizonte fecha em parte alguma, nem sequer nas ilhas que o escritor americano John Updike celebrou num dos seus poemas traduzidos por Jorge de Sena há uns bons anos, “Açores/Azores”. Avistava ele uma ou outra ilha açoriana na distância de um navio. Grandes navios verdes/eis que navegam/ancorados, para sempre; sob as águas. Pena não ter conhecido por perto as nossas imparáveis viagens reais e imaginárias.


II

    A citação em forma de epígrafe neste texto vem daquele que foi sempre a minha suprema referência na crítica e no ensaísmo literário, Edmund Wilson (1895-1972), a partir do momento que comecei pela leitura de Letters on Literature and Politics, publicado postumamente. Viria depois e durante anos a leitura de toda a sua obra, e de tudo quanto sobre ele foi escrito até hoje. Cultivava ele a maior abertura perante a literatura do mundo enquanto apresentava aos seus leitores norte-americanos o modernismo europeu e o modernismo literário que nascia no seu próprio país com grande fulgor. Wilson foi dos primeiros críticos de língua inglesa a prestar atenção a obras vindas de escritores pertencentes a minorias étnicas e nacionais. Estranhamente, também manteve um preconceito absolutamente irracional contra a literatura hispânica em geral, afirmando a certa altura que não percebia a grandeza de D. Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Por outro lado, uma carta em que se refere a Eça de Queirós foi uma resposta já em 1970 ao grande contista e crítico literário britânico V. S. Pritchett, que lhe havia enviado um ou dois livros do nosso autor. Wilson foi ainda amigo íntimo e companheiro de estrada de John Dos Passos, referindo noutra carta o “descobrimento” das origens lusas do autor de Manhattan Transfer e do colossal romance simplesmente intitulado U.S.A. em três volumes: The 42nd Parallel, 1919 e The Big Money. Ironia: Wilson passava boa parte do seu tempo na sua casa de Wellflleet, em Cape Cod, rodeado de luso-descendentes e pedalava diariamente para uma padaria portuguesa onde comprava o seu pão. O próprio John Dos Passos viria a descobrir o Brasil nos seus últimos anos de vida, pela afinidade que ainda não se chamava “lufona” e resultaria em prolongadas visitas ao grande país, seguidas de um conjunto de ensaios empáticos reunidos no livro Brazil on the Move. Numa das suas biografias, Dos Passos: A Life, de Virginia Spencer Carr, aparece uma foto com ele a receber o Reconhecimento (Medal) Peter Francisco em Nova Iorque atribuído pela Portuguese Continental Union. O seu sorriso, o seu contentamento e orgulho não desmentem a sua grandeza na literatura norte-americana, o ter sido ainda um dia considerado pelos seus pares a “consciência” ética do modernismo nos anos 20. O ponto aqui é muito simples: de onde vêm as nossas influências intelectuais e literárias para além do nosso território-pátrio, da vida que vai desde Nova Iorque ou Los Angeles a cidades ou aldeias em qualquer parte do mundo? Como nos chega a literatura – nas palavras de Ezra Pound – como “notícias” da nossa humanidade comum?

    

    A tradição literária nos Açores nunca foi diferente de tudo o que em literatura tem acontecido no mundo. Os nossos melhores autores estiveram quase sempre atentos às mais próximas e distantes geografias literárias. O primeiro tradutor de William Faulkner não foi Jorge de Sena, foi Manuel Barbosa (1905-1991), um dos nossos intelectuais aparentemente esquecidos, nascido em Ponta Delgada, e depois residente e professor na Ribeira Grande após a sua formação em Direito na Universidade de Lisboa. A literatura açoriana deve ser vista e entendida no seu contexto nacional e no vasto mundo de língua portuguesa, quer nos diferentes países, quer na sua Diáspora – e definitivamente num contexto global, mesmo que só uns poucos leitores, académicos e intelectuais dispersos um pouco por toda a parte a conheçam e, nalguns casos, desde a Eslováquia, Japão a alguns países de língua inglesa, a traduzam sem que por cá se dê por isso.

Se Edmund Wilson chegou a ler algum romance do autor de Os Maias, não sabemos. Sabemos que nunca escreveu uma palavra sobre ele. Estava a dois anos do seu falecimento, e, como sempre, teria outros projetos entre mãos. Sabia ele, pelo menos, que se tratava de um dos grandes escritores europeus – pertencente a uma das melhores cartografias literárias do seu e nosso tempo.

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Edmund Wilson, Letters on Literature and Politics: 1912-1972 (3ª Edição) New York, Farrar, Straus and Giroux, 1977. As traduções aqui são da minha responsabilidade.

BorderCrossings no Açoriano Oriental, 9 de julho de 2023

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