sexta-feira, 30 de junho de 2023

Bento de Goes E Um Outro Destino Açoriano

 


De olhos cerrados, avistava o futuro, enquanto tinha a certeza de estar vivo também para o presente.

Henrique Levy, Bento de Goes: Uma Longa Caminhada Na Ásia Central


    A interação de nomes neste recente romance de Henrique Levy, Bento de Goes: Uma Longa Caminhada Na Ásia Central, é quase tão extensa como os do Velho Testamento, aliás o texto ancião que mais parece o seu fundamento temático nos Açores do século XVI, precisamente em Vila Franca do Campo, aqui em São Miguel, uma vez totalmente destruída e logo reerguida após a histórica catástrofe vulcânica em 1522. Nada desta estrutura narrativa impede a nossa leitura linear de incidente após incidente naquele lugar e tempo, sempre à espera de outras personagens e particularmente de vidas regidas mais pela loucura e peripécias da sobrevivência do que por uma sociedade isolada, pobre, de alguma generosidade e mais ainda de invejas e subjugação a meio dúzia capitães-generais, imaginários, ouvidores e alcaides, cuja única alegria para os restantes era a chegada de uma nau vinda e ida para o reino, mantimentos, saudades, e novidades do outro lado mar. O resto eram essas terras mais ou menos senhoriais, e a fome generalizada. Aqui está uma pequena comunidade em construção imitando todas as virtudes e vícios da humanidade em toda a parte. Mesmo que atualmente possamos admirar a estátua deste açoriano na praça central de uma das mais sólidas e elegantes vilas marinhas nossas, Bento de Goes era esse ser múltiplo na sua origem e nos seus sonhos. Já na fase de jovem adulto, foi beatífico e aventureiro como mais ninguém na nossa história a meio atlântico. Bento de Goes é só comparável, estou em crer, ao Fernão Mendes Pinto, ainda hoje extremamente relevante por ter sido, na tese do grande livro da judia-americana Rebecca Catz, A sátira social de Fernão Mendes Pinto: análise crítica da Peregrinação, a primeira denúncia europeia das nossas cruzadas imperais no extremo Oriente. Eis Bento de Goes como contraponto, a real andança à descoberta de Cataio-China, de cristãos que lá não estavam, de geografias percorridas entre montanhas geladas e desertos tórridos, de encontros pacíficos e amedrontados e trocas de informação sobre uma e outras civilizações que já se haviam habituado à convivência e comércio com o Ocidente. Deixemos de lado por agora toda esta contextualização histórica. Bento de Goes, nome adotado após a sua ida para Goa e integrado na Companhia de Jesus em 1584, nasceu com o nome de Luís Gonçalves, e de imediato foi escondido por uma moleira de nome Hemantina. A trama que o autor investiga dentro dos arquivos, estava parcialmente montada para um notável romance, tanto histórico como peça da imaginação pura.

    Bento de Goes: Uma Longa Caminhada Na Ásia Central consegue o que o melhor da literatura nos proporciona como comunidade: a mítica das nossas origens, e as exceções da “rebeldia” que primeiro são choradas e depois elevadas – na brumosa memória entre as elites – a vagos heroísmos cuja função é devolver-nos o que passa, uma vez mais, de loucuras a grandes feitos que legitimam uma espécie de orgulho pátrio, quer se trate de uma pequena ilha ou de um grandioso reino. O grande feito narrativo de Henrique Levy nesta obra é que toda a caminhada de Bento de Goes no Oriente é imaginada em delírios do protagonista ainda em Vila Franca do Campo, temendo alguns que ele acabasse como bruxo perante o Santo Ofício, e as consequências conhecidas, tal o seu ímpeto para abandonar as miseráveis povoações que então constituíam a ocupação das terras açorianas. O pormenor com que o narrador reconstrói o que permanece só nas visões orientais do ainda Luís Gonçalves exige um profundo conhecimento dessa geografia distante e na altura por poucos explorada, da história possível hoje arquivada, da força religiosa mas tolerante que move certas figuras dos que nos eram os reinos escondidos, mesmo o Império do Meio. Bento de Goes vai à busca de míticos cristãos que lá estavam, e nunca com o propósito de conversões de outros, se bem que cada rei ou príncipe, após ouvir sobre um só Deus torna-se um admirador filosófico, poupando a cabeça dos seus visitantes, apoiando salvo-conduto ao contrário dos que naquelas naquelas partes, onde alguns missionários portugueses já haviam chegado ou estavam a chegar, cortavam-lhes a cabeça. A cruz aqui não é o primeiro golpe em conquistas, mas sim a transmissão de paz e empatia que alguns levavam em si.

    Mais do que um ato imaginativo sobre um homem açoriano de grande coragem que do reino segue para essas terras distantes e desconhecidas, é um romance que tem a vida das nossas ilhas em foco durante o tempo do fogo e construção de um Portugal ao longe. Capítulo após capítulo estamos num compasso de espera pela saída de Bento de Goes – e levados pelo fascínio nada menor de como um escritor imagina ou reinterpreta o que então já era escrito numa comunidade ainda entre a recriação da civilização a que o seu país pertencia na Península Ibérica, e à quase selvajaria tão comum a sociedades em novos mundos – em vez de infernizar a vida de indígenas que cá não existiam, infernizavam a vida dos seus na luta quotidiana e imparável entre pobres e ricos, vontades privadas e corrupção pública a todos os níveis, a ignorância do diz-que-diz, o trabalho feroz das terras e do mar, e o roubo quase mútuo entre todos quando a fome apertava, e apertava bem. A sequência narrativa que está enformada por um estilo muito próprio do autor, a reprodução das suas palavras e pensamentos numa prosa corrente sem aspas nem outros artífices que não a comunicação direta, linguagens límpidas e estórias significantes do todo temático do romance. Permanece, no entanto, o destino de Bento de Goes, em momentos transcendentes e depois na concretização da sua partida e viagens.

    Incrédula, a mãe de Luís interrogou Cisalpina. Meu filho – pergunta a mãe à mulher que o tinha criado para manter o segredo das circunstâncias em que ele havia nascido – contou-te isso? Será que, tal como alguns santos, Luís morreu, e do Céu avistou o futuro? Voltando até nós para anunciar os poderes do Altíssimo?! Cisalpina contrapôs. Não mulher. O teu filho nunca deixou este mundo. Parece fadado para visitar tempos vindouros. Não deve ficar por muito mais tempo na nossa ilha. Só o embarque para o reino ou para terras de Vera Cruz o salvará de ser julgado como herege. A mãe de Luís Gonçalves afligiu-se. Persignou-se. Disse uma oração ininteligível e desatou um choro convulsivo. Que vá! Se Deus lhe destinou uma outra vida, deve cumprir a vontade do Senhor, mesmo que para nós esses desígnios sejam tristes, misteriosos, obscuros”.

     A partida como salvação perante o choro dos que ficam, ou não entendem a rebeldia que também do mito se tem tornado realidade ao longo dos séculos para todos os açorianos, é simbólica de toda a nossa existência açoriana. Bento de Goes é uma figura única da nossa história na aventura que foi a chegada, e logo depois a vontade, a necessidade, da partida, o horizonte que pensamos ver no beijo do mar e do céu nunca limitou nem a nossa imaginação, nem nossa fúria por recomeçar novas vidas, outros modos de se estar entre outros, sem nunca deixarmos de ser quem somos, a força das origens aparentemente a raiz do triunfo e da tragédia de todo um povo, negação do destino, a afirmação da vida. A obra açoriana de Henrique Levy tanto parte de formas originais como dá continuidade à nossa tradição literária. A literatura é esse grandioso gesto artístico que abre as páginas sobre o que estava escondido e esquecido – para nos relembrar de onde viemos, quem temos sido, quem somos.

    Em Bento de Goes: Uma caminhada Na Ásia Central, como em toda a sua obra desde que chegou aos Açores para ficar, é a voz da mulher que predomina na narrativa, é voz da mulher que afirma e reafirma a história em contraponto aos escrivães do passado, e tem recuperado ainda as vozes das poucas mulheres que até há bem poucas décadas estavam relegadas à cozinha ou ao piano de palacete. Isto é o escritor na sua oficina, the writer at work. A História revista, o lançar um novo olhar sobre o que tínhamos por verdades imutáveis, o futuro a ser previsto pelo olhar atento do presente – como o de Luís Gonçalves/Bento de Goes, o real e o conjeturado por estas palavras, por esta imaginação.

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Henrique Levy, Bento de Goes: Uma Longa Caminhada Na Ásia Central, Ponta Delgada, Letras Lavadas Edições, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 30 de junho de 2023.

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