sexta-feira, 23 de junho de 2023

A Voz E A Permanência Poética De J. H. Borges Martins

 


cada palavra é um mundo/perdido/no fundo encoberto/dos abismos.

J. H. Borges Martins, O Vento Escreve De Viagem


    Um poeta como J. H. Borges Martins (1947-2014) nunca poderá ser esquecido entre nós, e creio que as gerações literárias que nos seguem, estejam onde estiverem no seu futuro, têm dado algumas provas de muita atenção à sua própria tradição literária sem fronteiras algumas. Álamo Oliveira, coordenador deste volume O Vento Escreve De Viagem: poesia reunida é dos poucos escritores entre nós, com grande e diversificada obra própria, que nunca deixou de reconhecer a grandeza dos seus colegas ou companheiros de estrada que nas letras deram e dão conta do lugar no mundo que é o nosso. O organizar e recuperar a obra de um outro é um gesto que vai além da generosidade, demonstra ainda mais do que apreciação de um outro: vem da noção que um escritor só se completa quando sabe que está e faz parte de algo muito maior, integra-se em todo um corpo literário e intelectual dos sucessivos tempos históricos, que arquiva vivamente a passagem de vidas em convivência simultânea com a comunidade imediata, em que o “eu”passa e deve passar ao “nós” no abraço melvilleano que abrange necessariamente o pequeno planeta da nossa humanidade. Boa (e histórica) parte da grande literatura de língua portuguesa saiu dos autores destas ilhas ao longo dos séculos, e não será a ignorância ou a arrogância comum a toda e qualquer nacionalidade que deve definir o alcance literário seja de quem for. Bem sei que estas advertências já cansam também, e espero que nada disto ocorra sequer aos mais novos que já estão aí, e a outros que os seguirão com as suas palavras em qualquer folha ou livro. Esta coletânea da poesia de J. H. Borges Martins muito deve ainda ao professor e poeta Carlos Bessa que dirige desde há alguns anos o Instituto Açoriano de Cultura, na cidade de Angra do Heroísmo. Ao lembrar esta informação paralela mas essencial à recuperação dos nossos escritores mais ou menos esquecidos creio estar a falar da inevitabilidade de trazer de novo à luz do dia obras que nunca deveriam ser esquecidas.

    

    Deixemos de lado as questões teóricas da literatura, a classificação escolástica de formas poéticas, como o surrealismo em que se enquadra muita da poesia de J. H. Borges Martins. A terminologia literária tende a colocar em prateleiras imaginárias os escritores e poetas que poderão ter sido influenciados por também imaginados movimentos no campo das letras, mas foram sempre além dessa arrumação limitativa. A literatura vem sempre de autores perfeitamente conscientes de si próprios, nasce necessariamente desse “eu” que congrega e caracteriza um tempo e lugares, o olhar de dentro para fora, que faz dos leitores não um ser que absorve a palavra de outro no isolamento privado ou mesmo à mesa rodeada de mais vozes, mas entende que faz parte desse ato literário, como que sendo coautor e participante direto das vivências, história, pensamentos, denúncia, revolta, em que cada passo ou verso que reforça o anterior nas mesmas páginas, ou em obediência à multiplicidade dos seres que habitam cada um de nós. É essa a marca e profunda poética da obra de J. H. Borges Martins, o testemunho da sua mais íntima pessoa em busca da larga comunidade humana a que todos pertencemos, dando ou não conta dessa condição, é a luta primordial e perpétua ante os poderes societais cuja tendência é o contrário, e esses poderes somos todos nós dando asas a um Lúcifer (palavra que aparece num dos seus poemas) que tudo desdiz e contesta descaradamente Nas Barbas de Deus, o último título poético que J. H. Borges Martins publicou em vida. Na solidão da sua consciência, o poeta terceirense tanto dá continuidade aos que o precederam em versos, a geografia açoriana permanece como metáfora suprema do nosso interiorismo, os abalos violentos vindos metaforizados e simbolizados exclusivamente nos que fazem dos conflitos sem fim à vista a desculpa da violência mundial e de todas as injustiças ante os que permanecem dobrados, os seus triunfos das espingardas conseguidos nas costas derrubadas da maioria da humanidade. Esqueçamos também a larga experiência do poeta no meio de uma guerra portuguesa em terras distantes, que creio dar voz aos seus gritos de desespero vividos e lembrados numa ilha açoriana. A poesia de J. H. Borges Martins é única entre nós na destreza da sua claridade envolta nessas metáforas e simbolismo que passam de verso em verso numa musicalidade que oscila entre notas de gemidos e gritos melancólicos seguidos pela serenidade de uma ave em voo em busca de poiso e paz.

Trago a noite encarcerada no meu

peito como astro de luz

que as garças deixaram

sobre as ondas ao

amanhecer.

E a via láctea acende-se

no céu

como castiçal de prata

que os deuses deixaram

florir no interior

da noite.

E a noite liberta-se

do meu peito

com nuvens de fogo.


    O Vento Escreve De Viagem: poesia reunida traz um bom número de poemas que permaneciam inéditos, e que Álamo Oliveira coloca como última secção do livro. A unidade temática e formal mantém-se, o que não deve ser surpresa num poeta que desde o início manteve a linha de pensamento ante o mundo em ebulição militarista e sempre numa condição que ele considerava de injustiça a ser contestada sem amarras pelo verso, pela palavra certa entre todas as suas palavras certas. A poética livre permitiu-lhe estruturações variadas de estrofe para estrofe, a sua solidão redimida à luz noturna de um quarto na cidade. É-me agora a memória doce de uma noite com J. H. Borges Martins num bar das Velas, em São Jorge, aquando do 4º Encontro de Escritores Açorianos, em 1996. Estava eu cá de regresso definitivo há poucos anos, e nunca tinha conversado com ele tão intensamente e tantas horas, esquecidos os dois das ricas sessões literárias que decorriam ali perto. Tocava o meu braço com carinho e como que num reencontro com um cúmplice na literatura em geral, nunca falando da sua própria obra. Falávamos um pouco de tudo, dos nossos amigos comuns e dos seus livros, da política internacional a que ele estava sempre atento, das razões do meu regresso aos Açores. Mantinha-se nos seus pontos de vista sobre tudo e todos que o rodeavam ou que ele acompanhava ao longe, mas como se lhe dissessem respeito direto, pessoal, o seu compromisso com um momento solidário, a sua raiva contra os lucíferes em toda a parte. Não conhecia o seu passado no além-mar africano de língua portuguesa, de aviões e espingardas. Interessava-lhe o presente, e a amizade incondicional.

    

    Falo assim dele, como escrevo sobre a sua obra, que o distingue num espaço poético absolutamente original, a sua grandiosidade ao lado de alguns outros poetas que o rodeavam em pessoa ou em espírito. Em muitos dos seus versos pensa – ou prevê – a morte, sem que esses momentos negassem a vida corrente fechada numa ilha, o voo das garças repetidamente metaforizado nos seus versos do princípio e do fim da sua caminhada entre nós. Supremo na sua normalidade quotidiana, na sua loucura de poeta indignado: “morro devagar/(de camisa e de ideias)/no meio dos meus versos/morro devagar/longe das pedras e das nuvens/no instinto da multidão...”.

    J. H. Borges Martins deixou ainda uma desusada obra em prosa e de investigação histórica, da qual sobressai parte da cultura popular da sua ilha. A justiça da noite na ilha Terceira resultou de uma aturada investigação e conversas com alguns mais velhos, que lhe transmitiram saberes pessoais, casos que haviam acontecido nas noites de medo e brutalidade. Ao escrever também sobre cantadores populares e ao reunir cantorias de famosos improvisadores, o poeta praticava o que agora se fez neste resgate de sua obra – a generosidade, a valorização de outros artistas que eram conhecidos localmente e que permaneciam na memória indelével de quem os ouvia em silêncio e no riso que o reconhecimento das suas próprias vidas despertavam em cada um. Para que é preciso a poesia? Para tudo, ou melhor, para quem sabe que um povo sem memória coletiva, do seu e de outros tempos, passa à inexistência – ainda em vida, e decididamente na morte sem testemunha.

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J. H. Borges Martins, O Vento Escreve De Viagem: poesia reunida, (Coordenação de Álamo Oliveira), Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2022.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 23 de junho de 2023


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