Boa noite, meu príncipe, são horas de dormir. Durma bem. Bons sonhos.
J. M. Coetzee, O Polaco
Nem sempre será fácil um homem de setenta e dois anos apaixonar-se por uma mulher a rondar os meigos e luminosos cinquenta. É o que leio neste supremo romance de J. M. Coetzee, um dos mestres dos mestres na ficção contemporânea, duas vezes Booker Prize, e o Prémio Nobel 2003. Nascido na África do Sul em 1940, continua a escrever na Austrália, país para onde se mudou em 2002 por razões que não dizem respeito aos seus leitores, só saber que foi um dos combatentes intelectuais contra o que era o nefasto aparheid na sua terra de nascença. O Polaco é o seu mais recente romance. Se toda a escrita é autobiográfica no que dirá respeito a sentimentos e não necessariamente aos factos – como insistem desde há muito certos teóricos e escritores – a verdade é que esta sua prosa vai muito além do amor entre um homem apaixonado e uma mulher casada renitente, mas vivendo um certo vazio e a indiferença vinda com o tempo e a rotina sem mágoa da única relação de uma vida familiar estável, sem sobressaltos e de todo previsível. Coetzee é conhecido pelas estranhas ou formas mistas das suas narrativas, sem que nunca deixem de ser lineares, a analepse uma constante em cada passo e o desenvolvimento da trama encenada. Só que o frouxo encontro de cama aqui precede e segue à chegada de um pianista interprete dos compositores clássicos, com Chopin como figura referencial tanto a partir das suas composições, particularmente os Noturnos, e algum conhecimento da sua história, com chamamentos a outros conhecidos escritores da tradição Ocidental, como Dante e a sua Beatrice, e Octávio Paz e uma obra, particularmente na sua apreciação e tradução de Fernando Pessoa, em busca da sua humanidade individualizada nas circunstâncias de um vasto continente americano. O “amor” acontece no encontro do pianista aqui de nome Witold Walczykiewicz, as consoantes que nos impedem, tal como na própria narrativa, de o pronunciar corretamente. A arte, pois, como referencial dominador dos desejos impossibilitados de se realizarem, as vontades de alma devoradas pelo tempo, a cruel ironia. Witold e Beatriz numa imitação tanto cómica e totalmente inesperada, como trágica na ausência de culpas ou remorsos.
Ele é esse artista polaco viúvo que viaja pelo mundo a convite dos admiradores das suas execuções a solo, ela uma espanhola de Barcelona que pertence a um grupo de senhoras que organizam concertos condizentes com as pretensões culturais da classe social mais ou menos intelectualizada. Está montado o palco para a encenação dos desencontros de um homem no seu ocaso e de uma mulher de vida cheia em todos os sentidos, que aos poucos vai cedendo, ora por pena ora pela sua vontade de estender a mão e o seu corpo inerte a quem a procura insistentemente a partir de várias cidades, por entre as viagens rotineiras e a solidão dos quartos de hotéis. O encontro decisivo acontece numa ilha de férias, depressa passando durante alguns anos ao silêncio mas nunca ao esquecimento. A ausência de dramatismo torna-se a marca principal da narrativa serena dividida por capítulos que vão assinalando a passagem do tempo, e os passos numerados pelo estado dos encontros pessoais ou por postais, pelas propostas dele e pelas recusas dela. A leitura é algo mais do que fascinante, parece ainda mais uma lição sobre a literatura do tudo pessoal e do nada do território social de cada um, da idiossincrasia de geografias perto e distantes como a Polónia e a Europa sulista. A noção de paixão está ao contrário do que pensamos ser as certezas ditas culturais, o desfazer de noções abstratas que temos como essas verdades genericamente “culturais”. Ironia, uma vez mais, e o riso a contrapor-se ao que tínhamos ou temos como “tragédia”. Esqueçamos por agora a erudição que envolve a música clássica, mais do que a grandeza da obra de Chopin como metáfora, é a pessoa real que foi o grande compositor, nas suas dores e morte precoce em Paris, a sua revolta contra a história do seu país natal (Polónia) em consonância com a aceitação passiva do protagonista de Coetzee. O ponto de vista é quase sempre o de Beatriz, a sobrevivente cuja memória é reavivada contra a sua vontade, reavivada por notícias e certos pedidos após a morte do pianista que ela pensava fora da sua vida.
“Devia ter uma conversa – diz o narrador indefinido mas não omnisciente, quando recebe uma chamada da desconhecida filha de Witold anos depois – com a filha. Ao telefone a filha pareceu fria e descortês, mas talvez seja apenas o fantasma da língua polaca a assombrar o seu inglês. Podia aparecer no seu movimentadíssimo restaurante de Berlim. Olá, Ewa, deixe que me apresente. Sou Betariz, a amiga do seu pai de Barcelona. Se tiver tempo, se não for precisa na cozinha, podemos sentar-nos a ter uma conversa? Provavelmente pensa que eu sou uma daquelas harpias que espetam as garras em homens famosos e lhes sugam o sangue. Bem, engana-se, não sou nada assim. Não fui eu que procurei captar a atenção do seu pai. Foi ele que se apaixonou por mim. Eu podia ter-lhe dado com a porta na cara, mas não dei. Tratei-o bem, tão bem quanto pude. As recordações que lhe deixei foram, na sua maoiria, felizes. Se não acredita em mim, olhe: estão aqui os poemas que ele me escreveu”.
Uma das obras clássicas mencionadas aqui intencionalmente, quanto a significações, é Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Johann Wolfgang von Goethe, e que li ainda jovem na minha faculdade sob o título de The Sorrows of Young Werther (1774), com um pedido professoral: descobre o passo em que toda a narrativa vira ironia, a mais consistente característica da literatura neo-romântica daquele país. O contrário de O Polaco: um jovem apaixona-se por uma mulher casada, o poder narrativo é de tal ordem que as leituras comuns entre os mais novos provocaria, na realidade, muitos suicídios naquela época alemã. O Polaco, tal como num outro romance do século passado, Doutor Jivago, do russo Boris Pasternak, as suas centenas páginas narrativas e as muitas e variadas personagens dizem pouco se os poemas que o encerram não forem lidos a partir de múltiplas perspetivas, a poesia a sintetizar o interiorismo dos seus protagonistas no bravo contexto histórico da guerra mundial que acabara de terminar no tempo narrativo, e a revolução e consequências da nova era soviética.
O Polaco é, como já foi referido, escrito nos nossos dias, é uma tirada artística ao amor e a algo parecido com o (des)amor), mas em confronto-outro e absoluto com o desfecho de Anna(s) Karenina de outro russo, Liev Tolstói, ou de Werther(s) de Goethe, agora numa pós-modernidade que tudo consente, ou faz que tolera, a libertação de cada um exclui, parece, desfechos dramáticos. Só que o coração humano não conhece leis nem obedece aos limites nas relações entre homens e mulheres, ou em qualquer combinação de seres humanos cujas paixões permanecem por natureza própria e em qualquer sociedade. Aliás, o presente romance de J. M. Coetzee é essa ambiguidade entre a vontade de ser e permanecer, a luta da idade do corpo contra o instinto do prazer ou a derrota da dor e da solidão, a beleza da arte em qualquer uma das suas formas uma mera metáfora da nossa própria humanidade. Ou o olhar triste e o sentir a revolta perante o que se torna a nossa fatalidade.
Beatriz não sabia, havia talvez tentado esquecer, que o passado nunca morre, nunca é passado, como também escreveria William Faulkner. A herança do seu amante, do quase-amante, viria depois em palavras deixadas escritas, a poesia de um artista polaco deixada com endereço. Beatriz reagiu ao seu passado, agora literalmente na tradução do polaco para o espanhol. Lê e relê com atenção, avaliando a tentativa de um músico a passar os seus sentimentos, alegria e dor, para versos que ficarão com ela para sempre, e para além do que ela considera versos bons ou menos conseguidos, tal como as execuções do seu amante de um país frio e trágico, a ambiguidade de um relacionamento entre um homem e uma mulher. Não existe mais nada entre a vida e a morte nesta narrativa, nada mais importa do que o prazer do dia a dia, o resvalar para fora de todas convenções sociais nas paixões de uns e num encontro, mesmo hesitante, com um outro ou uma outra em quem imaginamos a nossa felicidade, a casa grande e rica no consolo da rotina nada mais significante do que um velho e pequeno apartamento de um pianista de fama mundial e os respetivos aplausos.
J. M. Coetzee é ainda um grande ensaísta literário, e um dos mais resistentes escritores, como foi numa África do Sul, em tempos idos, um resistente num mundo à deriva, mas em que ele insiste dar sentido artístico e humano, o tudo da beleza – e a rejeição do silêncio e do ruído da nossa atualidade.
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J. M. Coetzee, O Polaco (Tradução de J. Teixeira de Aguilar), Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 16 de junho 2023.
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