O que mais interessava às pessoas, e a Viktor, em particular, era viver, custasse o que custasse, viver.
Andrei Kurkov, A Morte E O Pinguim
A Morte E O Pinguim é o segundo romance do escritor ucraniano Andrei Kurkov a ser traduzido em Portugal. Enquanto Abelhas Cinzentas (2019) retrata o seu país durante a ocupação russa no leste e na Crimeia nos anos seguintes a 2014, e por inferência nossa na urgência da guerra atual, recuamos agora aos anos 90, logo após a queda do regime comunista em Moscovo e a consequente independência ou regresso à soberania desta e de outras nações. O protagonista de A Morte E O Pinguim não entra pelas tribulações atuais no relacionamento da nova realidade beligerante com os poderes em Moscovo, apenas refere de passagem que “as negociações” vão acontecendo durante aqueles primeiros tempos muito incertos. Não sei se o autor adivinhava o que viria a acontecer algum tempo depois, e que o mundo inteiro atualmente testemunha através de vários ângulos e interpretações históricas. A presente narrativa está entre a comédia pura e a tragédia anunciada, pelo menos no isolamento da sua sociedade à procura de um rumo e em fuga à deriva nessa transição radical deixando os seus cidadãos à mercê dos poucos que se haviam apoderado das maiores riquezas e tratavam todos os outros como serventes das suas fortunas descaradamente roubadas – toda uma população no silêncio de sobreviventes, por entre bolhas humanas de resistência ou passividade fatalística. Viver a história, como neste romance, é, acima de tudo, manter a humanidade de cada um no seu equilíbrio fundamental, o riso das ou perante as pequenas coisas, esperar pela primavera e pelo degelo da terra, arriscar ações pela liberdade e dignidade enquanto espreita constantemente a morte a rondar na sua ceifa. Nenhuma obra de ficção requer profundos conhecimentos diretos da “realidade” em foco. A obra lida contém toda a esfera humana que se não conhecíamos passamos a conhecer, a dita universalidade da literatura em geral é precisamente o que aproxima cada leitor das personagens e da respetiva trama na descoberta ou reconhecimento melvilleano de outros e dos seus mundos.
A Morte E O Pinguim tem Viktor como protagonista quarentão, e depois Misha, o pinguim que lhe havia sido oferecido pelo zoológico local quando ficaram sem dinheiro para manter este e outros animais. Vivem a sós num apartamento de Kyiv, com a criatura da Antártida a passear-se pelos quartos à espera do seu dono abrir o frigorífico e lhe dar o peixe congelado a que tem direito. Viktor é um escritor frustrado que tem o sonho de vir a ser um autor de romances e contos, mas acaba por ser contactado por um grande jornal da capital em busca de um necrológico mais ou menos criativo mas obediente à Direção. A assinatura de cada peça tem de ser anónima. Começamos, comecei eu, a rir em voz alta: “Grupo de Camaradas” liderados por um Camarada Chefe, já se sabe. Não vos vou dar muito mais do que dizer que cada peça para a necrologia dessas páginas são encomendadas antes da morte dos visados, particularmente as grandes figuras da sociedade – os novos e pouco fiáveis magnatas, altas figuras do Estado, políticos eleitos ou não, a nova classe dominante. Por outras palavras, os que mais se distinguem na corrupção em curso e a todos os níveis. Havia começado a limpeza ou a vingança, a cada dia um caixão de luxo, dourado, descia à terra acompanhado de cantos litúrgicos e seguido por faustosos banquetes. A vida quotidiana do cidadão comum segue na normalidade possível e escondida nesse grande momento do tudo e do nada, a solidão em cada casa limitada às coisas que a todos acontecem obrigatoriamente entre o almoço e a cama, os sonhos adormecidos ou fantasiados à luz do sol ou no gelo daquelas partes. A linguagem prima pela surpresa a cada instante, pela clareza de pensamento, pela rejeição da metáfora ou de qualquer simbolismo forçado. As figuras amigas vão aparecendo aos poucos, e desaparecendo do radar ainda mais depressa por múltiplas contingências da vida em qualquer parte. A ameaça a estes é sempre indefinida, inesperadamente presente. Ver cada dia nascer, tomar um copo e adormecer quieto, dar a mão ao vizinho ou a quem necessita, é a vida toda. Pressentimos o perigo de uma sociedade no processo de libertação, como rimos com a aceitação da sorte de cada um ou uma. A “humanização” do bicho pinguim é a única metáfora da humanização vinda do mais profundo de cada ser aqui inventado. Ao conhece-los, damo-nos conta de que a solidão e os sonhos por realizar não têm geografia nem língua, é a condição comum de qualquer ser vivo e consciente de si próprio.
“Uma semana – diz o narrador de certo momento, já desconfiado do destino dos seus escritos, ainda não da sua pessoa – passou, durante a qual Viktor dactilografou novos textos, satisfeito com a primavera e o Sol. A vida parecia-lhe fácil e despreocupada, não obstante alguns momentos difíceis e evocações, cada vez mais raras, da sua cumplicidade com qualquer negócio obscuro. Obscuro? De que escuridão se poderia falar num mundo escuro? Trata-se apenas de uma parcela pequenina de um mal desconhecido que existia à sua volta, mas que não o tocava pessoalmente, nem a si nem ao seu mundo restrito. Esta sua cumplicidade com algo de escuro, de que ele próprio não tinha uma noção clara, servia-lhe, evidentemente, como uma certa garantia de inviolabilidade e paz”.
A Morte E O Pinguim, quando escrito há anos, não poderá ser lido como previsão alguma dos nossos dias, só que lê-lo agora parece esclarecer o muito do que se desenrola naquela geografia da Europa. O abalo histórico com a queda do Muro, real e metafórico, passou de teatro político para a trágica rota da reconstrução de uma sociedade que tentava levantar-se do chão, ainda na expressão de outros, por qualquer meio necessário, assustadores, creio, para toda uma geração que se pensava finalmente livre de carros de combate e de cidades inteiras a arder continuamente como que no rescaldo de um fogo que renasce continuamente, a História numa repetição mortífera.
O romance de Andrei Kurkov é a literatura contemporânea no seu melhor, como que uma hilariante metaficção do seu próprio destino – sem nada disto preencher as suas páginas, sem especulações de acontecimentos porvir. Só a arte, neste caso literária, nos pode representar o invisível, os estados de alma, os abalos interiores de seres humanos que na generalidade permanecem na nossa imaginação, são inevitavelmente símbolos vivos do que também são os nossos quotidianos numa modernidade irrequieta e dominada por todas as incertezas. Acontece neste romance apenas uma imitação do amor entre um homem e uma mulher, que se encontram quase ao acaso e separam-se por força maior. Não encontramos a maquinação desses poderes obscuros para além de suspeitas e sinais crípticos. A linearidade e andamento da narrativa, o humor de cada movimento e ação, a ironia transportada das palavras para o que nos parecem “realidades” paralelas à vivência que todos querem sem surpresas, sem sobressaltos. Repetidamente, as personagens desejam o Sol e a neve a desfazer-se em pingos de água a escorrer pelas janelas, a pingar de folhas verdes nos quintais da sua quietude e descanso. Ninguém fala em nada, sabendo que a selva fica a dois passos, numa irremediável aceitação do que poderá vir ou não. Nada e ninguém desfaz esses “sonhos”, que poderá ser um escritor a cunhar uma obra-outra ou a pensar numa casa de campo. uma mulher ao lado e uma criança em brincadeiras inocentes. Trata-se de um romance com tanta plausibilidade dos dias normais na anormalidade, a insistência humana e bárbara, no entanto, numa história de rapinagem e violência. Ironia: Moscovo aparece nesta narrativa como a capital de refúgio profissional em certos casos, relacionamentos entre uns outros noutras circunstâncias. O próprio autor nasceu em São Petersburgo, mas vive em Kyiv desde a sua infância. Já não há dúvida alguma nas suas declarações públicas recentes nem na sua obra de que lado está o seu destino, e até em que língua daqui para frente escreverá. Seja como for, o leitor português merece conhecer todos os livros de uma obra maior, a representação de homens e mulheres numa sociedade que deixou de nos ser estranha pelos acontecimentos em curso, a representação que agora seria de mísseis e bombas a rebentar sobre cidades e aldeias, a condenação dos habitantes no seu do dia a dia desfeito.
A prosa de Andrei Kurkov é um magnífico antídoto ao que desde há mais de um ano vemos nas televisões ou lemos nos jornais – a literatura redentora e a realidade brutal
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Andrei Kurkov, A Morte E O Pinguim (Tradução de Alexandre Bazin), Porto, Porto Editora, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 9 de junho de 2023.
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