sexta-feira, 2 de junho de 2023

Do Paraná Para Cá

 


Era o fim de fevereiro e, como em um drible de Garrincha ficava para trás a minha primeira infância.

Celso Costa, A Arte De Driblar Destinos


Não, não se trata aqui de futebol, e o nome do famoso jogador brasileiro é mencionado num único e pequeno passo do romance A Arte De Driblar Destinos, de Celso Costa. Entretanto, para quem conhece a vida do jogador poderá justamente conceber outras conclusões temáticas, o próprio título do livro não terá nada, suponho eu, de inocência ou escrito ao acaso. Não irei nem tenho de ir por aqui, não entendo nada desse jogo, não sei nada acerca de Garrincha para além de ler ou ouvir alguma coisa sobre a sua grandeza em campo, e assumo que veio do pouco para uma vida em cheio, de renome e memória mundiais. É o que acontece com o protagonista deste romance, que me parece e talvez seja totalmente autobiográfico dado as informações biográficas, e principalmente pela magnífica prosa de um autor até agora, creio, desconhecido como escritor e muito ao contrário da sua distinta carreira internacional como matemático da Universidade Federal Fluminense. “A sua área de pesquisa em matemática – escreve-se na nota biográfica – é Geometria Diferencial. Na sua tese de doutoramento descobriu as equações de uma superfície mínima, a qual atualmente se designa por Superfície Costa ou Costa’s Surface, descoberta que resolveu um problema com 206 anos de existência”. A Arte De Driblar Destinos traça as suas origens mistas no interior do Paraná, de descendência indígena e europeia, a odisseia pessoal e familiar vinda do mato e do nada que o haviam destinado ao seu estatuto de vida que também acabo de parafrasear do presente volume de memórias, da realidade e ficção que compõem este distinto e segundo romance. De página a página, viajei de um mundo para mim quase totalmente desconhecido no hemisfério sul, por vezes pensando, no entanto, que estava na minha freguesia de nascença, imaginem, da Ilha Terceira. Personagens, referencial social, gente trabalhadora, bados e mentirosos, intrigas e falsidades, famílias e discursos privados e públicos, uns em paz e outros em desavenças, a pequenez do lugar e de tudo, no caso brasileiro, no meio da grandeza do território à beira do rio ou da ribeira, a terra cultivada e a terra queimada, a resignação lado a lado ao sonho de outro destino – a grandeza de alma e a loucura, aqui literalmente de circo e até de uma tourada, o trabalho de arado e de serraria conjugado com a curiosidade saída da leitura de livros e dos poucos que alimentavam uma coisa e outra. É um romance que estava, parece, predestinado numa linguagem genial, que passa da ciência dos números e geometria para as palavras tão sábias como cómicas, tão trágicas como triunfais.

O título de um dos capítulos deste romance define perfeitamente a sua geografia predominante, “Sertão do Ribeirão do Engano”, fundado ou colonizado mais ou menos a princípio do século passado, tal como sobressai não de datas precisas, mas de outros sinais, como carros e camiões e mentalidades condizentes. Os nomes de famílias e das suas personagens aqui são muitos, o início das classes sociais e burocráticas que vão ascendendo ou sobrevivendo à miséria, e ainda mais à normalização de vidas em casas maiores e de barracas entre árvores ou à beira de estradas que levam aos maiores centros do grande país que é o Brasil, ainda hoje o remorso português sem atenuação, mesmo que tenhamos entregue aos então luso-brasileiros, de mão beijada, mais de sessenta por cento de todo o território sul americano. Há sempre um menino ou menina que escapa ao destino sertanejo, tal como nós ao destino português. A beleza deste romance é a um tempo simples e intrincada: um autor adulto, que nunca se define como tal, recorda a sua meninice e todos os seus passos e traquinices no meio pequeno em que lhe foi dado nascer e tornar-se um jovem que trai o seu destino quando dá entrada em escolas secundárias e superiores em Curitiba, a capital do estado, e que hoje associamos com admiração mais a outros grupos nacionais, que não ao nosso. Só que o nome Celso Costa não nos é estranho, e com isto não insinuo aqui coisíssima nenhuma. Leiam cada passo desta magnífica e cinematográfica narrativa, e verão o portuguesismo híbrido dos trópicos, tudo o que poderemos considerar e traduzir pelas melhores palavras como pela trafulhice dos nossos recomeços em terras e tempos que nunca nos foram assim tão distantes. Há sempre quem resista, para depois contar a história. É-me fascinante que cientistas, filósofos e matemáticos recorram eventualmente, uma vez mais, a palavras e a linguagens tão claras como a resolução dos mistérios dos números ou do pensamento. Recordo aqui o britânico Bertrand Russel como exemplo de outros na literatura ocidental em qualquer um dos seus géneros. São mestres na fluência das palavras sem dicionário, tiradas da boca das mais improváveis personagens da vida e da arte. Ler Celso Costa é, ou era, como estar sentado em volta de um adulto que nos contava as estórias e feitos de lugares desconhecidos, com gente e bichos pelo meio, como o cowboy das pradarias que espreitávamos num pano branco descaído em palcos pobres nos anos 50, e muita vez ao contrário por estarmos escondidos na retaguarda de um palco proibido da freguesia ou da aldeia. O romance de Celso Costa é isso para mim – e muito mais. É a representação de tempos antigos na literatura da nossa língua. Li aqui alguma terminologia de que já não me lembrava: ninguém no Sertão do Ribeirão do Engano ia a mercearias – iam todos, por exemplo, “à venda”, os mais novos bebiam “pirulitos”. Um grande escritor brasileiro devolve-nos muito do nosso passado, relembra-nos os nossos sonhos, reafirma-me a rebeldia da luta por outro destino.

Naquela noite de sexta-feira, o professor Vardin era esperado para uma última aula. No ar flutuava uma inquietante eletricidade – escreve o narrador em “Convite de mudar destino” – que aumentou em potência quando ele entrou na sala e depositou sobre a mesa o maço de folhas. Deu o tradicional boa-noite, apagou o quadro e passou a percorrer as carteiras, uma a uma, distribuindo as provas corrigidas. Entre nós os humores oscilavam, alguns resmungos, umas caras fechadas, uns rostos iluminados, afinal era a disciplina mais temida, e o professor não aliviava na cobrança da matéria… Venha até minha casa, domingo agora. Quero lhe mostrar alguns livros de matemática, é importante pra você ter a visão de outros autores”.

O destino do menino-rapaz ficava traçado pela mão e bondade de um grande professor originário da classe de fazendeiros dominantes. Há sempre alguém que resiste. Muitos de nós vivemos o mesmo com grandes e raros professores num país então adormecido perante o mundo e perante si próprio.

A Arte De Driblar Destinos é esse romance que ultrapassa a realidade e a ficção numa mutação para a arte literária pura, para o jogo de espelhos que reflete “o território do coração”, todos os que lembramos nitidamente nas nossas vidas desde a venda à escola, às terras trabalhadas, aos gritos das mães, ao pai irado e cheio de razão, ao vizinho que tanto dá como tira, aos palhaços que tanto nos fazem rir como nos incomodam, aos forasteiros que despertam desconfiança e olhares perplexos. A literatura dita urbana chega a cansar – o dor fingida, a insinuação de intelectualidade que raramente deixa de ser falsa numa leitura mais atenta, as multidões indiferentes mas cada um isolado na sua história desconhecida e pouco relevante para quem passa ao lado, o discurso existencialista e egoísta, o jogo linguista absolutamente esvaziado de significado, o quarto solitário com “o homem subterrâneo” no desespero da sua gaiola citadina.

Eis em A Arte De Driblar Destinos o contrário narrativo de tudo isso. A nossa humanidade na sua mais irrisória face por entre a reafirmação da vida dura no seu melhor, a vida vivida sem rancor nem acusação, o espelho de um sorriso que apenas agradece o se estar vivo, ser sobrevivente, e grato a quem nos amou e ama – esse destino driblado até ao pontapé decisivo.

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Celso Costa, A Arte De Driblar Destinos, Lisboa, LeYa, 2023. Venceu o Prémio LeYa 2022.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 2 de junho de 2023

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