sexta-feira, 26 de maio de 2023

Cody Caetano, Um Half Bad Açor-Canadiano Apresenta-se

 


Never let distorted realities that make thriving and itinerary suvivalists of us all oust you from joy and imagination and from your story/Nunca deixes que as realidades distorcidas que nos tornam a todos sobreviventes itinerantes e a prosperar te separem da tua felicidade e imaginação e da tua história.

Cody Caetano, Half Bads in White Regalia


HalBads? Como traduzir isto? Uns “meio-maus? Talvez. De qualquer modo, trata-se de um alegre e perplexo “mau” descritivo de personagens tão singulares na nossa literatura em língua inglesa que suponho só poderiam vir de um autor como Cody Caetano, filho de mãe canadiana indígena da nação Anishnaabe e de pai açor-canadiano e neto de um avô originário de São Miguel, que emigrou para o Canadá nos anos 60. O narrador diz-se metaforicamente vestido de um branco pertencente a uma espécie de realeza, ou dos que sobrevivem a uma família que chamaríamos de “disfuncional”. Basta aqui de aspas. Half Bads in White Regalia vem denominado como sendo um livro de memórias, na capa um menino assim vestido, de pau na mão e rodeado de campos e florestas, nessa outra natureza exuberante do Canadá. Na verdade, é isso e muito mais, é um romance como ato de não-ficção criativa, que raramente acontece entre nós, uma firme memória que nos fala e que – só podia – inventar diálogos que enriquecem brilhantemente a criação das personagens que o rodeia ou que ele convoca do passado. Estamos nos anos anos 90 até aos tempos correntes, quando uma mãe de nome Mindimooye descobre quem são os seus pais e irmãos, após terem sido adotados nas décadas a meio do século passado contra a sua vontade, as famílias e crianças indígenas perante os quais aquele país hoje tenta redimir-se com desculpas e indemnizações. O pai do narrador é chamado de O Touro/The Bull, o avô de Velhote, a açorianidade de ambos subentendida através de alguns títulos de capítulos e por outras expressões e passos narrativos que o menino foi absorvendo e reproduzindo durante a sua infância.

É o Cody adulto que recorda os seus anos de menino e jovem, com o que isso implica para a sua memória dos dias e das noites no aconchego instável dos seus pais, vizinhos e amigos. De casa em casa, da vida entre um irmão e uma irmã, de escola em escola, de dias de alguma fome e sós a comer o que restava no frigorífico, de um pai as mais das vezes de cerveja na mão e em andanças e abandonos constantes, sempre, no entanto, a trabalhar aqui e ali, a maior parte do tempo ausente por desavenças matrimoniais, uma mãe que se recusa a viver sem o amor de um homem ou dos seus filhos, mas também deixando-os frequentemente à sua sorte – eis a família nas nossas sociedades contemporâneas (muito mais comum do que pensamos) e o triunfo demasiado humano da sua, uma mais, sobrevivência e eventual felicidade. Cody Caetano é hoje altamente formado em estudos humanistas e escrita criativa, e agente literário ligado à Penguin Randmon House Canada, tendo escrito este seu livro com a orientação da sua falecida e conhecida mentora, Lee Maracle, da Universidade de Toronto, também ela pertencente a outra nação indígena canadiana. Apresento um pouco de informação biográfica aqui porque entre nós raramente se entende que a grande arte vem de qualquer quadrante humano, por mais escondido que nos parece e supostamente improvável para o nosso mais ou menos persistente eurocentrismo. Eis a natural grandeza literária da bela e muito lusa mestiçagem humana. Cody Caetanto, para mim, na vem sequência do nativo norte-americano N. Scott Momaday, em House Made of Dawn e The Ancient Child, e do também muito premiado açor-nativo americano Michael Garcia Spring, de Blue Crow e inside the sound/dentro do som, numa tradução de Maria João Marques. É parte desta literatura que também nos define como a nação diaspórica que felizmente somos, é esta uma das mais ricas e belas literaturas dentro ou em volta de uma outra lusofonia que por enquanto nos parece distante.

Half Bads in White Regalia prima pelas suas linguagens de rua de uma infância e pela cultura mediática que Marshal Mcluan disse ser a mensagem determinante da nossa e sucessivas gerações, estas criadas por escolas de toda espécie e denominações, e agora por vídeo jogos e o mundo Plasma e música condizente, pela liberdade isolada entre quatro paredes ou em aberto nas ruas, a tal aldeia global. As memórias de Cody Caetano situam-se em pequenas cidades suburbanas da província de Ontario, Happyland e Sunshine City, com Toronto antes e depoisos nomes geográficos da ironia e contra-ironia como outro detonador de toda a significação desta soberba narrativa. Por entre os abalos emocionais de todas as personagens, a palavra resiliência no próprio texto define o resto dos que por tudo passam para acabar em vidas convencionais mas livremente escolhidas, casa adentro e nas suas diversas profissões. Nunca se acusa ou se julga seja quem for, a prosa é uma de descrição simultaneamente próxima e distante, o destino de cada cada personagem sendo o que é, quase nos fazendo relembrar o nouveau roman de Alain Robbe-Grillet. “Obrigado – escreve Cody Caetano nas últimas páginas de Agradecimentos a todos que condicionaram a sua vida – ao meu pai. Obrigado por construires comunidade onde quer que estejas, pela tua entrega à reconciliação, e pelo que me transmites”. Uma família canadiana na luta? Creio que em nada a separa da experiência vivencial dos nossos dias em qualquer grande país metropolitano – ou numa freguesia ou cidade açoriana, o mundo à nossa porta, o passado esse país estrangeiro que permanece nublado, mas mesmo assim permanece. O inglês respingado de expressões lusas.

Antes de O Touro’s O Touro. Velhote. Conheceu relembra Cody num capítulo precisamente intitulado “The Bull” – e casou com Avó Maria, era tão só um portuense nativo que sonhou com laranjas melhores para espremer e mudou-se para São Miguel para as encontrar. Mas ele próprio tornou-se azedo e foi desfalecendo no magma das falhas vulcânicas, um refugiado em freguesias e vilas construidas em pedaços de pedra estendidas e esfriadas ao longo de exuberantes fendas na terra, não era a sua ideia de uma vida boa. Porque o Velhote não agarrou a vida pelos cornos. O Velhote era os próprios cornos.

No verão de 1962 em São Miguel, Avó Maria deu à luz O Touro numa bacia, e depois o gémeo num quarto de cama. É o que diz O Touro.

Seguiu-se o terceiro bebé um ano depois. No ano seguinte, num dia de oferendas a criados, Avó Maria voou com os seus filhos para Montreal, e depois mudou-se para uma casa em Kingston Market em Toronto. Tiveram o quarto bebé dois anos depois”.

Por certo que algo se perde em qualquer tradução, mas o original está ao alcance de todos com um clique no teclado. De uma língua para outra algo se transforma, mas nunca o sentido do original, o imperativo ético de qualquer leitura. As linguagens de Cody Caetano, como tudo o resto nesta sua prosa, é simultaneamente dura e meiga, a linguagem da memória pura e a poesia da alma generosa, grata para além de todas as tribulações de se estar vivo na modernidade ambígua de todos nós. Este livro foi largamente comentado no Canadá, secções dele premiado por uma associação nativo-canadiana em 2020, Indigenous Voices Award for Unpublished Prose. A tradução no nosso país não seria favor algum, seria antes uma exigência literária de quem sabe muito bem que a portugalidade vai muitíssimo além do retângulo trágico e das suas ilhas distantes e sempre desconhecidas no seu todo. A nossa desatenção é velha, para não utilizar outras palavras menos apropriadas. Cody possivelmente não sabe nada da nossa passividade literária quando se trata de certa temática multicultural, numa contínua e patética auto-negação de quem historicamente somos, de como nos deveríamos assumir sem complexos ou manias nacionais.

Cody Caetano tem como companhia desde há muitos anos outros grandes escritores e escritoras luso-canadianas que escrevem no inglês do seu país natal, e para quem a ancestralidade lusitana é uma constante na sua literatura. Erika de Vasconcelos em My Darling Dead Ones, que nos leva à memória de outro Canadá e de terras lisboetas e arredores, e Anthony de Sá, com raízes na Lomba da Mais em São Miguel, outro romancista no ativo, autor, entre outros romances posteriores, de Barnacle Love, traduzido com o título de Terra Nova para a nossa língua. outros possivelmente fora das nossas antenas, mas não para sempre. A antologia literária Satúrnia: Autores Luso-Canadianos, de Manuel Carvalho, regista quase tudo o que precisamos de conhecer sobre uma das mais vigorosas literaturas dos nossos descendentes num dos maiores e mais importantes países da nossa navegação – e feito outra pátria ao longe.

____

Cody Caetano, Half Bads in White Regalia: A Memoir, Toronto, Penguin Random House Canada, 2022. Todas as traduções aqui são da minha responsabilidade.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 26 de maio de 2023.

Sem comentários:

Enviar um comentário