sexta-feira, 19 de maio de 2023

De Nuno Costa Santos E Da Sua Arte Literária


Um homem fuma um cigarro à proa de um iate, concentrado no som do ma
r.
Nuno Costa Santos,
Como Um Marinheiro Eu Partirei


A citação em forma de epígrafe aqui é a última frase de uma das mais brilhantes novelas publicada entre nós desde há muito, Como Um Marinheiro Eu Partirei: Uma Viagem Com Jacques Brel. Toda a obra literária de Nuno Costa Santos tem uma firme unidade temática, sem qualquer repetição nas suas variadas formas, desde os iniciais sketch de melancómico: ele a caminho de casa numa indistinta rua lisboeta com um saco plástico na mão numa representação de desamparo, a sobrevivência minimalista, ou de um quotidiano com pouco mais a fazer. Na sua ficção, desde Céu Nublado com Boas Abertas à sua poesia de Às Vezes É um Insecto Que faz Disparar o Alarme, ao seu teatro e crónicas de aqui e ali, entre outras representações públicas, tem sempre as artes como refúgio ou recurso, a música como referência preferencial, um escritor de meia-idade no século XXI em busca de um sentido para melhor se perceber a si próprio, e sobretudo as suas circunstâncias num mundo à deriva e filosoficamente num vácuo que lhe faz retroceder à história fluida e perplexa que o colocou nestes dias, seus e nossos. Entretanto, são poucos os escritores no nosso meio cuja obra se torna um jogo de espelhos, tal como a subentendemos em breves passos autobiográficos. Alguns dos livros de Nuno Costa Santos estão cheios de boas cumplicidades familiares, amizades espalhadas por toda a parte, uma atuação criativa que se contrapõe ao habitual ego doentio dos muitos que esperam palmas e pelo menos os seus quinze minutos de fama em qualquer contexto. Basta lembrar aqui que o anual encontro Arquipélago de Escritores, organizado por ele e pela sua companheira Sara Leal, desdobra-se por várias das nossas ilhas e é um generoso gesto de solidariedade e valorização de tantos outros autores.

Sei pouco da música de Jacques Brel, para além da canção Ne me quitte pas, e pouco mais da sua vida e carreira. Os meus anos de América foram particularmente desatentos à Europa, tirando a vida literária portuguesa e europeia em geral que tinha um lugar proeminente nas nossas faculdades. Só que a presente novela de Nuno Costa Santos é uma peça que naturalmente não requer mais saber sobre o grande artista. A sua condição existencial é precisamente o que nos transmite este livro, desta vez com os Açores (para além de Paris e Bruxelas, naturalmente) como geografia significante dos seus últimos anos quando decidiu interromper a sua carreira e fazer-se ao mar num veleiro chamado Ashoy II, a caminho das ilhas Marquesas e a outras onde acabaria a viver e a fazer bem até à sua morte aos 49 anos de idade em 1978.

Como Um Marinheiro Eu Partirei é feito dessa prosa híbrida que marca agora alguma da melhor literatura da contemporaneidade, todas as formas convergindo num só ato ficcional: à biografia junta-se a autobiografia, o narrador fala de si no encontro com o seu sujeito, o quotidiano de certo desespero artístico por entre a banalidade dos dias vazios e da luta pelo reconhecimento, o autor da escrita revê-se nos versos das letras e poemas musicados e tornados património universal. Para um leitor açoriano tudo isto é relevante, para além da estória de uma voz que muitos embalou na alegria e na tristeza generalizada dos tempos, o cantor ora em agonia no amor, ora na denuncia sem rancor da ordem das coisas que nos enrolam por perto ou à distância. Nuno Costa Santos revisita os passos e as gentes com quem Jacques Brel se encontrou na Horta. Cá temos a história do famoso Peter Sport Café à boca da doca como um centro da universalidade de nós todos – quer lá tenhamos tomado o seu gin, quer somente ter lido sobre. Aliás, a história do Peter’s faz parte da narrativa. A viagem de Jacques Brel é também um inteiro regresso a si próprio, tal como o de Nuno Costa Santos ao deixar Lisboa após ter vivido lá boa parte da sua vida, e eventualmente optar pelo seu regresso aos Açores, à bruma da sua tranquilidade, ao sol da sua infância, o amor fazendo-lhe trocar o Livramento em São Miguel pela Terceira, onde continua à beira da baía de Angra do Heroísmo. Brel sente as saudades dos seus mais próximos em Bruxelas e em Paris, e Nuno Costa Santos sente as saudades dos seus três filhos que ficaram na nossa capital, chamando-os com frequência ao conforto reencontrado na ilha e no amor. Ninguém esquece ninguém – mas partir, como diria o outro, é preciso, para nunca se deixar de chegar a nós próprios. O autor faz-nos acompanhar todos os passos de Jackes Brel durante os seus anos de luta e eventual triunfo nos palcos e nos estúdios de gravação, e depois no Faial após a morte do seu grande amigo e colaborador Jojo, onde aparecem também os primeiros sinais de uma vida em estágio final. Nomeia as personagens conhecidas e menos conhecidas que mantêm com o cantor algum contacto e convivência, e de seguida Nuno Costa Santos convoca a sua própria memória de andanças e relacionamentos casuais ou literários na ilha do vulcão dos Capelinhos, parte do seu território arquipelágico de nascença e destino. Jacques Brel e a sua música desperta-lhe uma outra visão da condição como ilhéu em constante viagem geográfica e emocional.

Os dias – diz o narrador a propósito de si e dos seus filhos, que estão também predestinados às partidas e regressos, à sorte lusa nas ilhas como no continente – estão organizados com amor e método, a melhor forma de calendarizar uma temporada estival curta e que se quer intensa , vivida. Deixar o Verão à sua sorte, no seu talento maior de tornar mais lentas as horas e de estender a preguiça, mas também programar o que se quer fazer e como se quer fazer para dar ao Verão o Inverno de que precisa...

Além dos mergulhos no Calhau, houve passeios de barco a ilhéus e voltas de buggy. Mas o mais importante foi estarem aqui. Senti como que uma desdramatização da situação. Estou cá,, estão ali. Podem vir. Não é longe. Vão crescendo. Quem sabe, poderão passar temporadas aqui. Quem sabe, poderão namorar aqui.

Já conhecem o desenho do lugar onde o pai decidiu viver. É um começo. Um recomeço”. O autor quando já não é jovem, passe o trocadilho joyceano, no seu labirinto emocional, na sua perfeita consciência de que o passado nunca é passado, de que a sua arte não é mais do que um reflexo de uma vida ou vidas que não obedecem ao que pensamos destinar e seguir, apenas reagem às circunstâncias nunca programadas mas decisivas. Na palavra de um escritor ou na voz de um cantor, é só na geografia do coração que vivemos. Jacques Brel chega aos Açores fumando o cigarro da sua morte na proa de um veleiro. Só que está bem vivo entre quem encontra na terra nova a meio atlântico, recorda a garrafa e as mulheres do seu velho continente, faz-nos rir da ironia de nunca se desligar dos que na Bélgica e na França chamava de flamingants, e cuja língua dizia recusar a falar enquanto no seu país, e muito menos cantar: “O meu nome é Jacques Brel, repetiu em flamengo para uma plateia agora marítima. Vive la République/Vive les Belgiens/Merde pour les flamingants”. Reencontra no Faial – a ironia acompanha-nos a todos – alguns representantes dos seus “antepassados”, com destaque para um médico de aguda consciência social e de nome Decq Mota, tão do nosso conhecimento nas ilhas no Triângulo e no resto do arquipélago. Mais os Brum e os Goulart, o próprio nome da cidade da Horta decalcado e a lembrar os primeiros flamengos chefiados por Joss Van Herten, que lá chegaram no século da descoberta. “Amava o seu país – relembra-nos o autor – com a sua meteorologia humana e com o seu céu. Os belgas e a Bélgica – criticava-os mais dentro dos portões do que fora. Era também clássico nessa forma de lealdade”.

Como Um marinheiro Partirei: Uma Viagem Com Jacques Brel é mais uma prosa em poema, um poema em prosa, a autenticidade de um artista, e, para nós, de um agora inesquecível momento nos Açores, o resumo de uma vida imortalizada pelo seu desassossego de alma, pela sua voz, e ainda pelo seu fim a fazer bem a todos numa pequena e esquecida ilha do Pacífico. Nuno Costa Santos deixou tudo à curiosidade e ao prazer do texto a cada leitor. De resto, trata-se de uma edição que é um objeto de arte: em cor, textura de capa, tamanho perfeito para uma leitura que poderá ser de poucas horas, ilustrado com fotos desses momentos do artista na ilha. É para ser saboreado vagarosamente, a significação de cada passo a representar uma vida que pensávamos conhecer apenas pela letra-poesia, e em que, afinal, nos revemos, tal como me parece ser o caso de Nuno Costa Santos em primeiro lugar. Aliás, tem sido ele o autor, em livro ou por outros meios, de outras biografias dos que estavam num certo limbo do esquecimento, como Fernando Assis Pacheco, Ruy Belo, Rui Knopfli, e J. H. Santos Barros. Participou ainda no programa da RTP e depois em forma de livro, Mal-AmanhadosOs Novos Corsários das Ilhas, que lembraram os que não conhecíamos nos esconderijos dos Açores.

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Nuno Costa Santos, Como Um Marinheiro Eu Partirei: Uma Viagem Com Jacques Brel, Lisboa, Penguin Random House Grupo Editorial, 2023.


BorderCrossings do Açoriano Oriental, 19 de maio de 2023.

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