sexta-feira, 15 de março de 2024

Conversa com Carlos Bessa, poeta e dinamizador da cultura nos Açores

 


A cultura é isso, não é, ousar, questionar, problematizar? Sem esquecer que a cultura tem, em democracia, direitos.


    Tudo o que eu poderia dizer aqui nesta brevíssima nota de abertura está dito por Carlos Bessa no decurso da nossa conversa por escrito e em direto. Poeta maior, professor, presidente desde há muitos anos do Instituto Açoriano de Cultura (IAC), com sede em Angra do Heroísmo, a sua obra total ergue-se como uma das mais distintas nos Açores modernos. De outros mais, no noutro lado mar, sei que consideram a revista Atlântida a melhor do país. Sem nunca entrar em auto-elogios, só o seu quase incrível trabalho intelectual fala por si.

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    Há anos que estás responsável pelo Instituto Açoriano de Cultura, em Angra do Heroísmo. Como tem sido essa experiência da atividade contínua juntamente com as tuas responsabilidades de docente numa escola na Praia da Vitória?

    É verdade… Tive a triste lembrança de aceitar, em 2017, o convite que me foi feito para dirigir uma instituição com tantos pergaminhos e com uma história tão rica. Mal sabia no que me estava a meter. O Instituto Açoriano de Cultura (IAC), fundado em meados da década de 1950, leva já várias décadas de atividade ininterrupta, desempenhando um papel de relevo nos Açores. Por ter sabido manifestar, desde logo na sua própria designação, uma abertura ao mundo, relevando a importância do diálogo, da troca e da partilha na afirmação e desenvolvimento da cultura da região e sendo, por isso, um instituto açoriano de cultura e não apenas de cultura açoriana. Ao mesmo tempo que assumia, creio que pela primeira vez e de forma bem explícita, a vontade de pensar os Açores como um todo, não sendo, por isso, apenas instituição de uma cidade só, como aconteceu com outras instituições da mesma época. Essa dimensão de abertura e de diálogo foi sempre complementada por uma ação que se pautou pelo questionamento, ou seja, por um anseio de interrogar e compreender as particularidades das nove ilhas do arquipélago, pensando-as como um todo. Ação que os fundadores desejaram pudesse alavancar, como agora se diz, o desenvolvimento económico e social dos Açores. Ora, quando fui eleito para presidir à direção do IAC, o meu trabalho foi o de, conjuntamente com os demais membros da mesma, dar continuidade a esse desiderato. Não é um trabalho fácil, até porque cada um de nós trabalha e muito por amor à camisola, como se diz. Fazemo-lo porque todos desejamos viver num arquipélago que conheça não só o seu passado, como também, e sobretudo, que seja capaz de encontrar caminhos para o seu futuro. Não faz sentido vivermos para sermos tão-só servidores de um turismo de massas. É, por isso, urgente termos uma classe política que não se limite a repetir e mastigar banalidades e que seja capaz de valorizar os criadores das mais diferentes áreas que aqui nasceram, bem como os que aqui e agora vivem. Ora o que é a criação? Será repetir o que outros já disseram e fizeram ou, pelo contrário, interrogar e transfigurar o presente em obras que o reflitam? A cultura é isso, não é, ousar, questionar, problematizar? Sem esquecer que a cultura tem, em democracia, direitos. Desde logo o de receber uma fatia do bolo orçamental. Não pode ser amesquinhada por uma contabilidade ultrapassada e estéril. Quem conhece outros arquipélagos sabe como a região está atrasada, neste e noutros domínios, e carece de mais e de melhor investimento. Nós, no IAC, tentamos fazer o máximo, apesar de sentirmos que olham para nós com desconfiança, porque não servimos clubes nem partidos, nem trabalhamos para servir egos. Muitos ainda olham para o IAC como se fizéssemos parte da orgânica governamental. Não. Somos uma associação cultural privada. Fazemos muito com muito pouco. Temos estado presentes em várias ilhas e levado a cabo parcerias com várias associações e instituições dessas ilhas. Cuidamos de uma parte do património literário da região. Por exemplo, criámos uma coleção de poesia para reunir obras dispersas de relevantes poetas açorianos, como Pedro da Silveira, Mário Machado Fraião, J.H. Borges Martins ou Madalena Férin. Iniciámos a publicação de guias práticos da fauna e flora terrestres e da geodiversidade, bilingues (em português e em inglês), suprindo uma falta enorme, como se tem verificado pelas vendas. Publicamos, uma vez por ano, aquela que muitos consideram a melhor revista que se publica no nosso país: a Atlântida, onde damos espaço a novos criadores e onde estabelecemos pontes com a Macaronésia (Cabo Verde, Canárias, Madeira), mas também com outros lugares. E poderia falar ainda da divulgação de novos valores nas artes plásticas e perfomativas e na fotografia. Ou na atividade regular de promoção do livro e da leitura, sobretudo do livro entendido como lugar de inquietação, de dúvida e de invenção. Ou, ainda, na parceria estabelecida com a RTP Açores para a realização do programa Lugares de Escrita, que mostrou a aliança entre os lugares e a obra de nove autores açorianos de agora. Gostaríamos de poder fazer outras coisas, mas para isso seria necessário que finalmente se entendesse e apoiasse a sério o trabalho dos agentes culturais.

    A tua poesia e prosa-outra têm estado à nossa espreita. Quanto mais tempo vamos esperar pelo poeta e a sua poesia?

    Como a minha resposta anterior foi longa, aproveito para me referir agora à minha atividade profissional, a docência, que, juntamente com o IAC, me deixam pouco tempo para mim e para a poesia. Entendo a poesia como uma das artes mais nobres e, no caso da nossa língua, aquela onde conseguimos grandes feitos, entenda-se, obras notáveis que nos retratam e que evidenciam as potencialidades do português para expressar pensamentos, ideias, reflexões, fantasias. Para criar é preciso ócio e não tenho tido muito. Mesmo assim, lá encontrei maneira de reler os livros de poesia que fui dando à estampa, depois de ter recebido um convite da Tinta da China para publicar a minha poesia reunida. A saída do livro está para breve, creio que para inícios de abril, e inclui um livro novo que, espero, encontre leitores na região. Como nunca fui de publicar muito e o último livro saiu há já sete anos (o anterior saíra dez anos antes), nem sei se ainda há quem tenha interesse pelos meus versos. Talvez possam encontrar pelo menos um ou dois leitores. De resto, não cuido da minha obra. E isso leva-me à outra parte da tua pergunta, o poeta. Gosto de poetas que olham de frente para o coração da realidade, sejam quais forem as formas e os sons que ela assume. Ora isso não é algo que seja apreciado pela generalidade das pessoas. Como as pessoas vivem escravizadas por valores que as diminuem, que lhes fecham as portas da alegria e passam a maior parte do seu tempo em tarefas que as afastam de si próprias, não têm paciência para a poesia. Embora esta continue a andar à solta por todo o lado, até na fala das gentes. Eu não sei se chego a ser poeta, mas tento que os meus versos meçam a temperatura do coração de que falava há pouco. Não escrevo para saciar a lisonja e a tagarelice, mas para fazer perguntas e tentar olhar de frente para a morte. E faço-o maioritariamente com palavras banais, do dia a dia, procurando preservar um pouco dessa música.

    

    Fala-me um pouco das tuas origens continentais e da tua adaptação e vida em ilha. Quando vieste para cá?

    Vim no século passado, no início da década de 1990. Vim para me deslumbrar com cada uma das nove ilhas. E acabei por ficar numa delas, na Terceira. Encantado com o sentido de humor das pessoas e com a sua maneira peculiar de saber dar a volta aos desatinos da sobrevivência. Vim para aprender e descobrir as especificidades do ser ilhéu e viver em solos vulcânicos. Depois de ter crescido suburbano, assistindo à voracidade com que se trocavam árvores e campos por prédios e alcatrão. É curioso recordar isso, pois houve um tempo em que se dizia que os seres humanos teriam de trabalhar menos e ter mais tempo para si mesmos, mas, apesar da robótica e de tanta maquinaria, continuamos sem tempo nem condições para viver uma vida plena. Nas ilhas encontrei um saber viver devagar, um gostar de estar à mesa com amigos e até com desconhecidos que se me afiguram extremamente poéticos. Além disso, posso encantar-me com os dias de densos nevoeiros e recordar Novalis, “toda a cinza é pólen”, ou com o murmúrio incessante da luz vívida das manhãs e tardes de sol.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 15 de março de 2024.





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